Zemaria Pinto
Eu estava às voltas com uma playlist, cujo eixo é a
composição “Muito romântico”, de Caetano Veloso. Nunca um tema foi tão
aderente: do samba-canção ao iê-iê-iê, da bossa-nova ao sertanejo, do bolero ao
tropicalismo, do baião ao rock, do samba ao manguebeat, de Itamar Assumpção a
Odair José – cabe de tudo na minha nova lista. Em tempos de isolamento, trocar
ideias sobre música é um prazer redescoberto. Mandei à Rubi o link, pedindo-lhe
sugestões. Rubi é especialista em fossa, dor-de-cotovelo e gêneros afins.
Trabalhou na noite, por muito tempo. Agora, mantém um Salão bem animado, no Zumbi
dos Palmares, com um conceito muito atual: enquanto passam horas em minuciosos
tratamentos de beleza, as/os clientes vão bebericando e petiscando, sempre ao
som de músicas românticas – brasileiras e latinas. O happy hour das sextas e
sábados é sempre um acontecimento. O cabaré se inflama, diz Rubi, citando
Lupicínio, uma de suas paixões. Por conta da pandemia, o salão está fechado há
três meses, com previsão de poder reabrir pelo final de junho. Mas Rubi não
parou: atende em domicílio. Delivery de cabelo, ela diz, pronunciando as letras
dê e ele com aquela entonação tipicamente cearense. Flor, marido de Rubi, é
motorista de Uber. A queda no movimento não o intimidou: trabalha de 12 a 14
horas por dia, para fazer sobrar alguma coisa, além do aluguel do carro e das
taxas escorchantes do aplicativo. Os dois são uma pintura: ela, magra, pequena,
loura platinada, os olhos azuis; ele, um atarracado índio Baniwa de São Gabriel
da Cachoeira, onde Rubi, procurando um Xamã para curá-la de uma tristeza infinda,
o encontrou. Arranhando o inglês e o espanhol, Flor era guia turístico numa
cidade de raríssimos turistas, quase sempre mochileiros. Florismar, Flor para
todo mundo, para ela é Florzinho. Dolores, seu nome de batismo, Rubi quer
esquecer. Nome de gente sofredora, ela diz, completando com um cruz-credo. No Salão,
Flor a chama respeitosa e carinhosamente de Dona Branca. Nas nossas rodas de
conversa, violão e cerveja, comandadas por Mestre Pinheiro, é Branquinha. Não
têm filhos. Não quiseram ou não puderam ter. Mas sua casa, lá mesmo no bairro,
é um autêntico viveiro: jabutis, pacas, coelhos, marrecos, papagaios, araras,
tucanos, além de cães e gatos. Todos em liberdade e convivendo pacificamente,
no amplo quintal. Flor diz que são os xerimbabos deles.
Estranhei a demora na resposta de Rubi, sempre tão disposta a
conversar fiado. Chequei, ela nem lera. Liguei, não atendeu. Liguei para Flor.
Também não atendeu. Diabo. Passava das 10 da noite. Fui até lá. O bairro estava
calmo, para um domingo. Na casa, ninguém. Os cachorros latiram, ao perceberem
minha presença. Uma vizinha achegou-se e sem muita conversa informou que ambos
foram hospitalizados naquela tarde. Caralho. Estão lá no Delphina. Do outro
lado da cidade. Eu estava sem máscara. Não iam me deixar entrar. Voltei em
casa. Cheguei no hospital quase meia-noite. Movimento intenso, embora menor do
que eu imaginara. Depois de algum tempo, consegui localizá-los. Rubi estava
respirando artificialmente, na UTI. Flor, na enfermaria, sedado. Se voltasse no
dia seguinte, talvez conseguisse falar com ele, me disseram. Cedinho estava lá,
de volta. No final da manhã, me deixaram entrar na enfermaria onde estava Flor.
Sedado, uma enfermeira me falou por cima dos ombros. Notei a dificuldade dele
em respirar. Consegui ver Rubi, pelo vidro da porta. Aparentemente, dormia.
Voltei ao hospital no dia seguinte: nenhuma novidade. Na quarta-feira, me
informaram que Rubi estava com pneumonia. Tentei interferir, sem saber
exatamente o que poderia ser feito. Na quinta-feira, feriado, passamos o dia no
hospital, eu e Mestre Pinheiro, impotentes, nada havia a fazer, além de esperar
que a medicação fizesse efeito. Conversamos muito. Mestre Pinheiro é uma
enciclopédia de música brasileira. Flor agora estava respirando por aparelhos
também. Disseram que era por precaução. Saímos do hospital, a noite ia alta,
quase sexta-feira.
Em casa, insone, coloquei a playlist, que eu não ouvia desde domingo.
Não sei quantas músicas tocaram no modo aleatório. Não estava concentrado,
pensando mil coisas ao mesmo tempo. Mas a voz de Dalva de Oliveira me prendeu a
atenção. Mandei repetir uma, duas, três, quatro vezes, até que o toque do telefone
interrompeu a reprodução. Passava das duas horas. Puta que pariu. Não consegui
conter um grito rouco, de dor abafada. Rubi jamais me diria o que achava da
lista, nem me daria indicações. Porra. Mil vezes porra. Eu já estava no
hospital quando me informaram que Flor também não resistira. Não foram
testados. A causa formal de ambos foi pneumonia. E as estatísticas? Li depois
que a morte por “problemas respiratórios” aumentou em mais de 1.000% em relação
ao mesmo período do ano anterior. Aliás, começou a aumentar na proporção
inversa à diminuição da morte causada pela pandemia. Filhos da puta.
Rubi e Flor foram enterrados lado a lado, numa cova só deles.
Dia 12 de junho. Rubi, com seu humor amargo, diria que até na morte estiveram
sob o signo do amor. Ligo a playlist. O algoritmo inteligente já sabe o que
procuro. A voz de Dalva ecoa na sala escura: ...o amor é simplesmente o
ridículo da vida.[1]
[1]
Fragmento da canção “Bom dia”, de Herivelto Martins e Aldo Cabral, gravada pela
primeira vez por Linda Batista, no início da década de 1940. Mais de 20 anos
depois, Dalva de Oliveira, que fora esposa de Herivelto, daria à canção sua
interpretação definitiva. (Colaboração: Mestre Pinheiro)