Amigos do Fingidor

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O ridículo da vida



Zemaria Pinto


Eu estava às voltas com uma playlist, cujo eixo é a composição “Muito romântico”, de Caetano Veloso. Nunca um tema foi tão aderente: do samba-canção ao iê-iê-iê, da bossa-nova ao sertanejo, do bolero ao tropicalismo, do baião ao rock, do samba ao manguebeat, de Itamar Assumpção a Odair José – cabe de tudo na minha nova lista. Em tempos de isolamento, trocar ideias sobre música é um prazer redescoberto. Mandei à Rubi o link, pedindo-lhe sugestões. Rubi é especialista em fossa, dor-de-cotovelo e gêneros afins. Trabalhou na noite, por muito tempo. Agora, mantém um Salão bem animado, no Zumbi dos Palmares, com um conceito muito atual: enquanto passam horas em minuciosos tratamentos de beleza, as/os clientes vão bebericando e petiscando, sempre ao som de músicas românticas – brasileiras e latinas. O happy hour das sextas e sábados é sempre um acontecimento. O cabaré se inflama, diz Rubi, citando Lupicínio, uma de suas paixões. Por conta da pandemia, o salão está fechado há três meses, com previsão de poder reabrir pelo final de junho. Mas Rubi não parou: atende em domicílio. Delivery de cabelo, ela diz, pronunciando as letras dê e ele com aquela entonação tipicamente cearense. Flor, marido de Rubi, é motorista de Uber. A queda no movimento não o intimidou: trabalha de 12 a 14 horas por dia, para fazer sobrar alguma coisa, além do aluguel do carro e das taxas escorchantes do aplicativo. Os dois são uma pintura: ela, magra, pequena, loura platinada, os olhos azuis; ele, um atarracado índio Baniwa de São Gabriel da Cachoeira, onde Rubi, procurando um Xamã para curá-la de uma tristeza infinda, o encontrou. Arranhando o inglês e o espanhol, Flor era guia turístico numa cidade de raríssimos turistas, quase sempre mochileiros. Florismar, Flor para todo mundo, para ela é Florzinho. Dolores, seu nome de batismo, Rubi quer esquecer. Nome de gente sofredora, ela diz, completando com um cruz-credo. No Salão, Flor a chama respeitosa e carinhosamente de Dona Branca. Nas nossas rodas de conversa, violão e cerveja, comandadas por Mestre Pinheiro, é Branquinha. Não têm filhos. Não quiseram ou não puderam ter. Mas sua casa, lá mesmo no bairro, é um autêntico viveiro: jabutis, pacas, coelhos, marrecos, papagaios, araras, tucanos, além de cães e gatos. Todos em liberdade e convivendo pacificamente, no amplo quintal. Flor diz que são os xerimbabos deles.
Estranhei a demora na resposta de Rubi, sempre tão disposta a conversar fiado. Chequei, ela nem lera. Liguei, não atendeu. Liguei para Flor. Também não atendeu. Diabo. Passava das 10 da noite. Fui até lá. O bairro estava calmo, para um domingo. Na casa, ninguém. Os cachorros latiram, ao perceberem minha presença. Uma vizinha achegou-se e sem muita conversa informou que ambos foram hospitalizados naquela tarde. Caralho. Estão lá no Delphina. Do outro lado da cidade. Eu estava sem máscara. Não iam me deixar entrar. Voltei em casa. Cheguei no hospital quase meia-noite. Movimento intenso, embora menor do que eu imaginara. Depois de algum tempo, consegui localizá-los. Rubi estava respirando artificialmente, na UTI. Flor, na enfermaria, sedado. Se voltasse no dia seguinte, talvez conseguisse falar com ele, me disseram. Cedinho estava lá, de volta. No final da manhã, me deixaram entrar na enfermaria onde estava Flor. Sedado, uma enfermeira me falou por cima dos ombros. Notei a dificuldade dele em respirar. Consegui ver Rubi, pelo vidro da porta. Aparentemente, dormia. Voltei ao hospital no dia seguinte: nenhuma novidade. Na quarta-feira, me informaram que Rubi estava com pneumonia. Tentei interferir, sem saber exatamente o que poderia ser feito. Na quinta-feira, feriado, passamos o dia no hospital, eu e Mestre Pinheiro, impotentes, nada havia a fazer, além de esperar que a medicação fizesse efeito. Conversamos muito. Mestre Pinheiro é uma enciclopédia de música brasileira. Flor agora estava respirando por aparelhos também. Disseram que era por precaução. Saímos do hospital, a noite ia alta, quase sexta-feira.
Em casa, insone, coloquei a playlist, que eu não ouvia desde domingo. Não sei quantas músicas tocaram no modo aleatório. Não estava concentrado, pensando mil coisas ao mesmo tempo. Mas a voz de Dalva de Oliveira me prendeu a atenção. Mandei repetir uma, duas, três, quatro vezes, até que o toque do telefone interrompeu a reprodução. Passava das duas horas. Puta que pariu. Não consegui conter um grito rouco, de dor abafada. Rubi jamais me diria o que achava da lista, nem me daria indicações. Porra. Mil vezes porra. Eu já estava no hospital quando me informaram que Flor também não resistira. Não foram testados. A causa formal de ambos foi pneumonia. E as estatísticas? Li depois que a morte por “problemas respiratórios” aumentou em mais de 1.000% em relação ao mesmo período do ano anterior. Aliás, começou a aumentar na proporção inversa à diminuição da morte causada pela pandemia. Filhos da puta.
Rubi e Flor foram enterrados lado a lado, numa cova só deles. Dia 12 de junho. Rubi, com seu humor amargo, diria que até na morte estiveram sob o signo do amor. Ligo a playlist. O algoritmo inteligente já sabe o que procuro. A voz de Dalva ecoa na sala escura: ...o amor é simplesmente o ridículo da vida.[1]
  



[1] Fragmento da canção “Bom dia”, de Herivelto Martins e Aldo Cabral, gravada pela primeira vez por Linda Batista, no início da década de 1940. Mais de 20 anos depois, Dalva de Oliveira, que fora esposa de Herivelto, daria à canção sua interpretação definitiva. (Colaboração: Mestre Pinheiro)