Amigos do Fingidor

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Pedro Carvalho desce aos infernos (mas volta)



Zemaria Pinto


No último final de semana, recebi um longo texto do meu amigo Pedro Carvalho, conhecido historiador acreano, médico aposentado, relatando sua experiência de infectado pelo coronavírus e traçando um paralelo histórico com a gripe espanhola, além de nos encantar com sua conhecida verve. Autorizado por PC, editei o texto e atenuei as partes, digamos, mais contundentes, que poderiam ser consideradas ofensivas à bandidagem federal bem como às estaduais e municipais, tudo saco da mesma farinha. Pedro diz que não tem papas nem bispos e nem mesmo vigários na língua, mas tem um milhão de Fradinhos. É um autêntico ING – indivíduo não governamental. Crítico das políticas de saúde pública no Brasil há mais de 50 anos, Pedro Carvalho cunhou a sentença definitiva sobre o assunto: não se faz política de saúde pública só com gaze, esparadrapo e mercurocromo! Com a palavra, Dom Pedro Carvalho de Granada e Sena Madureira. 

Cheguei no hospital com as minhas próprias patas. Não te ofendas, mas, como plantígrados, nós humanos estamos na mesma categoria de outros animais, como os ursos, por exemplo – tu sabes o que é o abraço de um amigo urso, não? Ora, se os animais dessa categoria têm patas, por que nós teríamos pés? Isso é só mais uma evidência da soberbia humana. O engraçado é que para a morte não há separação: morrem os humanos como morrem os animais, incluindo aí os digitígrados e os ungulados, para ficar nos terrestres. A diferença é que só os humanos acreditam no paraíso.
Mas, então, cheguei no hospital com as minhas próprias e gastas patas, levado por um Uber, que, aliás, estava morrendo de medo que eu morresse antes mesmo de chegar, mas cheguei. E quando, já no balcão, baixei a cabeça para pegar a carteirinha do plano de saúde, um redemoinho me atirou ao chão e no instante seguinte tudo escureceu.
Acordei não sei quantas horas depois, em uma enfermaria que mais parecia uma feira aos sábados, tamanho o movimento. Meu primeiro pensamento foi “se não há leito para todos, por que eu?” Às vésperas de completar 80, eu não teria prioridade, mas, já que estou aqui, vou ficando... Aos poucos, fui entendendo que o meu desconforto respiratório não era grave, por isso o uso de ventilação não invasiva. Livrei-me da intubação, que é meio caminho andado para pegar uma carona com Caronte. Meus filhos devem ter informado sobre a hipertensão, pois fiquei sabendo que candesartana cilexetila e a hidroclorotiazida faziam parte do cardápio diário, personalizado. Mas vou te poupar dos detalhes técnicos maçantes. E o inferno que vivi ao longo de sete dias não foi diferente das dezenas de depoimentos diários na televisão e no rádio. Como velho médico, prefiro falar de história.


A título de exercício, para mostrar a mim mesmo que continuava são, repassei mentalmente, várias vezes, o capítulo sobre a gripe espanhola, do meu livro Medicina na Amazônia: crônica de uma tragédia, que se não servir para coisa nenhuma, vale pelo teu prefácio, lúcido e veemente, que escreveste para a segunda edição, e agora, já na quarta, é parte indissociável do livro. As semelhanças com a atualidade são espantosas e as lembranças, terríveis. Entre setembro de 1918 e março do ano seguinte, mais de duas mil pessoas morreram só no Centro de Manaus. A tua Cachoeirinha, por exemplo, era subúrbio, não entrava nas estatísticas. Os relatos da época dizem que foi despovoada, com famílias inteiras dizimadas. Os caminhões militares passavam diariamente pela periferia da cidade, recolhendo os cadáveres, para depositá-los em valas comuns. Não havia caixões para todos, muito menos para os pobres. E em vez de flores, cal, para apressar a decomposição. Eu registrei que, tomando por base números de outros centros, cerca de 6 mil pessoas devem ter morrido em Manaus: 10% da população. E hoje, que o número de mortos por insuficiência respiratória aumentou milhares de pontos percentuais, os números da pandemia, a verdadeira causa mortis, continuam sendo falseados. Naquela época, a culpa era da comunicação precária e infraestrutura tendendo a zero. Hoje, com todos os avanços da tecnologia e da ciência, nós dois sabemos porque a saúde pública do Amazonas, do Acre e do Brasil está de tal jeito que um mandeta, a personificação da mediocridade e da canastrice, faz falta.
Pois, pois, amigo, moronguetá!, como diria meu querido irmão de loja e de boemia, Nunes Pereira. Meu aniversário está chegando, agora em junho, e com certeza ainda não vamos poder nos encontrar. Mesmo que eu tenha adquirido anticorpos, nem penso em submeter os meus ao risco de infecção. Aliás, não te falei como fui contaminado. Me confinei desde o princípio de março, antes mesmo do primeiro caso de Rio Branco, porque tinha certeza, conhecendo a história da espanhola, que o efeito do coronavírus seria devastador. A minha caminhada diária era feita na esteira mesmo, como nos dias de chuva, ouvindo meu amado Bach. Filhos e netos foram mantidos afastados. A Sebastiana vinha em casa diariamente, de ônibus, e nunca apresentou nenhum sintoma. Mas eu fiz compras de restaurante e farmácia por delivery, além de ter saído para tomar a vacina da influenza no modo drive thru. Notaste a importância do inglês na nossa comunicação?  Enfim: não sei, jamais saberei. Mas, voltando ao aniversário: em vez de ganhar presentes, enviei uma garrafa de vinho a cada amigo que viria a uma improvável festa, para que possamos brindar on-line. Não chegam nem a quinze, que a maioria já se foi. Recebeste a tua? 
Repetindo um dito familiar, um Carvalho seca, mas não verga. A quem perguntar por mim, diz que estou fazendo o de sempre: trabalhando. Ah, te autorizo a publicar este entre as crônicas da pandemia, para que mais gente saiba que estou bem, ainda que nunca tenham ouvido falar deste velho casmurro. Como Mário de Andrade, desci aos infernos. Mas voltei.
Que o G.A.U. pavimente com folhas de acácia a tua estrada.