Amigos do Fingidor

segunda-feira, 29 de junho de 2020

A Cunhã-Poranga e o Levantador de Toadas



Hiram Lopes

Já vivia em isolamento social quando na época das chuvas a pandemia chegou à cidade e acrescentou o medo à minha rotina e o medo trouxe a obediência aos cuidados para a sobrevivência. Passei a regrar ainda mais o contato com outras pessoas. A ameaça de morte nos cobria como uma nuvem invisível, as notícias das mortes de pessoas próximas e distantes chegavam diariamente e eu me sentia em uma fila aguardando a minha vez de encontrar o momento que poderia ser o último de minha vida.
Havia ficado viúvo havia poucos anos e me mudei da capital para a minha terra natal no interior do estado. Encarava minha tristeza como um enredo do qual deveria escapar, mas não sabia como. Via minha vida como um rio cheio de curvas causadas pelos obstáculos que se apresentavam. Algumas vezes algo fazia com que o curso fosse desviado e uma parte do rio se tornava uma lagoa que secava no verão e enchia no período de chuvas. Lagoas de tristeza, eu as via assim.
Passei a ouvir blues, a palavra me intrigava, pois é intraduzível e isso me encantava, como pode um sentimento ser próprio para uns e para outros uma incógnita? Passei a ouvir blues para curar ainda mais a tristeza que me acometia, queria torná-la ainda mais densa, mais palpável, queria vê-la, mergulhar na melancolia.
Certa noite ouvia absorto o blues “Love in vain”, onde o camarada chora a partida da mulher que pega o trem e vai embora:

And I followed her to the station, with a suitcase in my hand 
Well, it's hard to tell, it's hard to tell, when all your love's in vain 
All my love's in vain.

A sala estava numa penumbra, uma luz fluorescente vinda da varanda criava sombras na sala e de olhos fechados imaginava a cena da despedida. Numa das mãos um copo de uísque e na outra um cigarro. Subitamente batem à porta e acordo deste quase sonho; lentamente levanto para ver quem é. A luz vermelha vinda de um bar em frente me desperta. É a vizinha que quer saber como eu estava e durante a breve conversa perguntou se eu me recordava da Rita.
– A Cunhã-Poranga! Pois é, faleceu na sexta-feira passada por causa do vírus, acrescentou ela.
Nesse momento começou a chover e ela correu prometendo me contar os detalhes depois.
Claro que a conhecia, foi meu primeiro amor nos últimos anos do colégio, antes da faculdade. Tínhamos vivido um romance ingênuo, mas que encarávamos com seriedade e os laços de compromisso que surgiram eram fortes. Fazíamos planos para o futuro, ela seria professora da rede pública e eu seria policial militar. Animados com esses planos a nossa união era tranquila e serena. Eu seguia determinado em fazê-la feliz. É verdade que antes tinha vontade de mudar para a capital e ser professor universitário, mas o amor prevaleceu, seria feliz com ela, imaginava. A cidade em que morávamos celebrava o folclore dos dois bois-bumbás, o vermelho e o azul. Ela era do boi azul e o meu coração era vermelho. O embate entre os dois era muito acirrado e embora não estivéssemos em Verona essa união não cabia muito bem e me deixava desconfortável. Então decidi, sem muito alarde, passar a celebrar o boi azul, e assim foi.
Noutro dia a vizinha bateu novamente na porta e contou que o marido da Rita havia morrido também do vírus, no domingo seguinte à morte dela.
– O Cesarino que era o Levantador de Toada do boi azul, que coisa! Disse ela.
Foi no último ano do colégio, ela se candidatou e foi escolhida a Cunhã-Poranga do boi azul. Nunca me esqueço daquelas noites, ela parecia um beija-flor dançando na arena, os pés não pareciam tocar no chão, a plateia urrava encantada. Foi o começo do fim. Apaixonou-se pelo Levantador de Toadas que lhe prometeu fazerem carreira juntos na capital e por isso terminamos. No ano seguinte ele viajou para a capital e logo depois ela foi também. Foi minha primeira lagoa de tristeza.
Havia me mudado também para a capital onde fiquei muito anos antes de retornar. As lembranças daquela época agora eram vagas, mas recordo a sua partida para a capital como se fosse uma cena de filme. Uma breve cena carregada de melancolia, parcamente iluminada e um céu oculto pela escuridão.
Naquela noite fui ao porto com uma mala na mão, pretendia também embarcar e tentar reconquistá-la durante a viagem. Faltou-me a coragem. Observei de longe ela se despedir alegremente dos familiares e do convés ela acenava enquanto a embarcação afastava-se e sumia no escuro da noite. Logo somente avistavam-se as duas luzes laterais do barco.
Recordei os últimos versos de “Love in vain”:

Well, the blue light was my blues 
And the red light was my mind 
All my love's in vain.[1]



[1] “Love in vain”, de Robert Johnson.