Amigos do Fingidor

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Acredito, uma segunda revolução

Jorge Tufic



Este livro de poemas de Clodomir Monteiro já navega desde anos, até que chegasse ao porto de sua transformação em objeto verbal definitivo, ou seja, em produto que encerra, numa espécie de encontro amoroso, a defesa de nosso Acre, sangrando em sua ex-maior riqueza econômica e o próprio fazer poético, aqui onde ele empresta à palavra e seus mistérios um componente a mais, este personalíssimo, na composição das unidades temáticas que se vão juntando, como um todo, à visão panorâmica de uma obra de arte como poucas existentes na literatura brasileira.

Bastaria lembrar que estes poemas de “Acredito” têm datas de 1979, passam por 2001 e atingem, este ano, o 2009, ainda inéditos, mas donos de uma linguagem inovadora atualmente em voga, como se nada além ou aquém, no tempo, nos desse notícia das ousadias fonéticas, sintáticas ou semânticas desse poeta nacional que fez sua opção pelas Terras-do-Sem-Fim. E aí, em Rio Branco, ele degusta os sucessos do “Derroteiro de Rotinas” e outros títulos de sua autoria, publicados no Acre, sem nunca afastar-se dos misteres de professor da Universidade e presidente da Academia Acreana de Letras,

Os exemplos de sua originalidade, sempre fiel às mutações da práxis, encontram eco, antes da necessária incursão leitural, no texto “Acre/dito em poesia”, bastante explícito, embora modesto em face da grandeza que se lhe estende, após, quando o leitor, ciente da aventura que irá enfrentar ao longo destas páginas, passe a conviver com um tipo de abordagem que Mário Chamie divide em três condições: a) o ato de compor; b) a área de levantamento da composição; c) o ato de consumir. Neste aspecto, Clodomir Monteiro tem a seu dispor um amplo instrumental linguístico, todo ele a serviço da poesia.

Opus magnum, sim. Pode o leitor abrir este volume em qualquer de suas páginas, fixar os olhos em qualquer estrutura verbal que faz da parte o todo, ou vice-versa, que terá a surpresa de ouvir um relógio secar o tempo da máquina na dura realidade que somente o olhar do poeta (e dos caxinauás) sabe adoçar nas lâminas do cotidiano. Na primeira revolução que, segundo a História, o Acre conquistou sua independência política, todos ou quase todos os poetas que se engajaram na luta, tombaram mortos. A denúncia, agora, é de outro poeta contra todos aqueles que traíram o sangue de milhares de voluntários, em nome da usura. Acreditemos.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O poder da nudez na arte da performance (Uma abordagem do trabalho de Regina José Galindo)

Jorge Bandeira


Poucos são os artistas que buscam pela nudez o espelhamento necessário da sociedade, enxergando as possibilidades de ter em seu corpo nu uma ferramenta além do banal já tão desgastado, especialmente quando se interpõe à nudez o elemento do choque ou agressão aos espectadores. Regina José Galindo vem no sentido contrário dessas manifestações um tanto quanto agressivas, mas que no seu conceito estético acabam por se tornar efêmeras, e muitas das vezes se tornam instrumentos de repulsa pura e simples, mas sem alcance maior de conscientização de um espectador que observa um corpo nu em seu estado estético e lúdico.

A nudez extremamente planejada de Galindo nos insere em diversos contextos, com bases políticas, filosóficas, existenciais, culturais etc. A cultura perpetrada por essa artista natural da Guatemala é de nos deixar felizes, nós que temos no Naturismo uma prática saudável de convivência. Lembro que a PETA, que trata dos maus tratos aos animais, via indústria de alimentos, cosméticos e da moda, utiliza a nudez como fator reflexivo e de grande poder de visualização nestes tempos. Galindo é uma artista solitária na maioria de suas intervenções, mas é claro que, nos bastidores, sua equipe, liderada por seu marido, dá conta do recado de planejar tudo a contento para que nada dê errado.

Nudez com propriedade impressionante, seja num momento de calmaria ou de tempestade. Curioso notar que não existe uma inércia nesta arte da performance de Regina Galindo, ela pode estar imóvel, mas ao redor o brainstorming (tempestade de cérebros) converge para sua obra. Galindo nua na cama, grávida, pernas abertas, amarrada, protestando contra os estupros. Galindo sofre intervenção cirúrgica para “tornar-se” virgem novamente, zombando, assim, do preceito machista da virgindade como imagem imaculada de um determinado caráter. Galindo nua, numa encosta, encolhida, ao seu redor, sua urina. Imagem forte, linda, inquietante. Galindo deitada numa cama, esperando seu “príncipe azul”, com apenas uma abertura no lençol, exatamente onde é sua vagina, que é a única coisa que aparece. O Príncipe azul só a quer possuir, e depois, dar o fora. Já vimos isso muitas vezes. A nudez desta performer é de uma singeleza e capacidade de comunicar, de ter seu corpo a nosso alcance e além, que ficamos irmanados com a nudez da artista, com a verdade que ela consegue nos transmitir. Força de uma mulher, talvez a mais autêntica artista desta arte da performance, muito em voga neste começo de século XXI, especialmente com a insurgência do Teatro pós-dramático.

Um outro aspecto da obra de Regina Galindo que muito chama a atenção deste crítico de arte é a simplicidade de suas ações, a limpeza de suas ideias e a colocação de sua nudez realmente de forma natural. Ela escapa do exibicionismo de maneira tão elegante, tão singular, que temos a impressão que sua obra é determinante para termos um foco mais delicado às questões que envolvem a nudez em nossas vidas. Este um valor preponderante para todos nós, naturistas ou artistas que prezam por uma coletividade realmente que nos comova, que leve aos outros nossas mensagem da nudez como base natural de toda convivência, uma nudez perseguida por muitos, mas nudez sem roupagens desnecessárias.

Lembrem que a mulher nua da capa das revistas masculinas não está nua, ela está vestida até o pescoço de pensamentos conservadores, de revanchismos e machismos, de ismos que não têm fim. Nudez para Galindo é pensar, não é enxergar. Ela já demonstrou isso numa performance com cegos. Nudez para Galindo é pensar a condição de escrava do sexo da mulher, nesta e em todas as épocas.

A libertação verdadeira da mulher só será possível quando ela, inteiramente nua, passar sem ser percebida com olhos carnívoros pelos homens. O sonho de Regina Galindo perfaz este percurso de libertação da mulher. É um tapa na cara dos “naturistas” que povoam muitos locais, naturistas ocasionais, que estão naturistas apenas para vislumbrar os corpos nus com desejos masturbatórios ou de perversão, ou de sexo, puramente. Máscaras caem automaticamente com a força desta arte de Galindo, uma artista além de nosso tempo, ou melhor, que consegue visualizar o nosso tempo apenas com a força de sua nudez. Algo deveras impressionante. Para conhecer o trabalho de Regina José Galindo, com textos e fotos de todas as suas performances excelentes e comoventes, acesse em : http://www.reginajosegalindo.com/  


Leia mais sobre Regina José Galindo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Space Cowgirl.
Julie Bell.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Eu ainda não disse tudo – apresentação

Zemaria Pinto*


Eu ainda não disse tudo ou O sal da idade é um inventário da trajetória poética de Renato Augusto Farias de Carvalho, formada desde as reminiscências da infância até as lembranças vivas de um presente que se dissolve em passado a cada instante. Para o poeta, esta é a sua matéria de trabalho: o tempo que se esvai deixando marcas indeléveis na pele da memória.

O tempo, essa abstração que ora se apresenta Ariel ora Caliban, é o motivo principal deste livro, assim como Vinho e Verso é um livro com sabor de distâncias: tempo e espaço, completando-se. Manaus, Niterói. Ajuricaba, Arariboia. Infância, madureza. O tempo, liame de dois universos que se fundem no lavor poético, como no texto VII, dos “Atos Contritos”: O pronome correto em mim / sempre foi você. / Embarcou nas madrugadas / do quintal / viajou nas ladeiras dos Remédios(...) / Vou pronominar, na velhice, / seu jeito particular / de me ensinar / a complicada gramática / de amar.

Renato extrai humor de situações que poderiam ser patéticas ou mesmo piegas, como no belo “Reencontro”, em que o dia de finados se transforma em dia de festa: subvertendo as expectativas, o que seria mera simbologia converte-se em maravilhoso. Mas infância e velhice não prescindem da palavra mágica: saudade. Enunciada várias vezes ao longo do livro, sua expressão-síntese está no poema “De longe”, onde adjetivo e substantivo, formado por metonímia, se fundem para representar o indizível: Aqui me navego / por inteiro / num imenso amazonas de saudade.

O tempo é uma experiência individual, é o repositório da vivência de cada um. Experiências. Olhando para trás, o poeta desarma-se, desnuda-se e, num ritual de passagem, enfrenta novos desafios. Assim é o poema “Poucos minutos depois da morte”, cuja leitura/releitura é imprescindível para a compreensão da essência deste livro cativante, da alegre tristeza (alegreza/tristezia) de sua escritura: o desafio de escrevê-lo não como um lamento, mas como um cântico de celebração da vida e da poesia.

Renato Augusto Farias de Carvalho ainda tem muito a dizer, sim – e o sal da idade credita sabedoria e arte às suas palavras.

(*) Apresentação ao livro Eu ainda não disse tudo, de Renato Augusto Farias de Carvalho,
que será lançado amanhã, 29/01, às 10h00, na livraria Valer.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Eu ainda não disse tudo – lançamento

Celestino Neto e Marcileudo Barros fazem recital e lançam postais poéticos

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Será amanhã, 28 de janeiro, a partir das 18h30min, o recital de lançamento de 18 postais poéticos, criados pelos poetas Celestino Neto e Marcileudo Barros, ilustrados pelo artista gráfico Marcel dos Anjos.

Ah, sim, no Vanilla Caffe Vieiralves – Rua Acre, próximo ao Açaí & Cia.

Caridade cristã

João Bosco Botelho



O conjunto político que amparou os primeiros hospitais como instituições assistenciais consolidou as bases nas decisões elaboradas no Concílio de Trento no século XVI. Entre as mais importantes estava a unção dos enfermos como sacramento e a participação dos homens e das mulheres na graça santificante. Graças a esse Concílio, a autorização eclesiástica foi formalizada para que todos exercitassem a caridade, garantindo o acesso ao Reino de Deus aos seus praticantes. Os povos cristãos encontraram na abertura conciliar a argumentação para justificar uma postura de amparo aos enfermos e necessitados.

As organizações de solidariedade mútua, irmandades e confrarias se multiplicaram em centenas na Europa. Todas procuravam cumprir recomendações conciliares na ajuda caritativa dos desgraçados e amparo aos doentes.

Na assistência aos doentes, existiam duas opções: atender os doentes individualmente ou agrupá-los em lugares determinados, que ficaram conhecidos como “Xenodochium pauperum, debilium et infirmorum” (Hospital dos pobres, dos fracos e dos enfermos). A alternativa hospitalar para expressar a caridade acabou prevalecendo e várias irmandades foram organizadas para administrá-los. As ordens dos Hospitalários de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo foram as que mais se destacaram.

Não se deve estranhar que o pano de fundo das albergarias-hospitais tenha sido também a obtenção de vantagens pessoais, financeiras e políticas por seus dirigentes. Essa afirmação ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao seu irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino.

A Igreja e o Estado passaram a disputar esse filão inesgotável de recursos que a caridade passou a representar. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis para dirigir o produto monetário da caridade aos cofres eclesiásticos, a ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação do reino. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte e publicada nas Ordenações Alfonsinas de 1446, foi decretada a interdição real nas albergarias, determinando que todos os legados doados às irmandades deveriam passar pelas cortes civis e não mais pelos tribunais religiosos.

Em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471 - 1484), o rei foi autorizado a organizar hospital único nas principais cidades, unindo a administração real às ordens religiosas hospitalares. Esse conjunto administrativo formou os alicerces das futuras Santas Casas, geridas no reino português, da Ásia às Américas.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Jiansong Chen.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Gabriel saiu para almoçar 4/15

Marco Adolfs



...Gabriel Sombra, o velho poeta solitário, quase teve vontade de chorar nesse momento, ao perceber o quanto a sua escolha pela solidão criativa não lhe trouxera tanto sofrimento assim. Talvez nenhum, já que graças a ela conseguira escrever seus poemas metafóricos e lera quase todos os livros e revistas do mundo. Só não pintou ou compôs uma partitura de música clássica por que não tivera o tempo e a vontade para essas escolhas. Foi quando pensou e colocou no papel o fato absoluto e comprovado de que a solidão criativa não traz sofrimento. Que ela é uma escolha para a expressão livre desse aspecto constitutivo. Neste contexto, é a expressão da nossa unicidade como criadores. Sombra então lembrou o que disse o filósofo alemão Schopenhauer em um de seus livros, agora jogado e esquecido em um monturo no canto do seu atulhado quarto, “a solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais”. Nada de pensar em sofrimento, por causa dessa tal de solidão, no caso de a usarmos para criar. Se nós sofremos com a solidão, pelo simples fato de que ela nos obriga a demonstrar o quanto necessitamos de outra pessoa, isso se deve mais ao sentimento atávico de termos que sobreviver em grupo. Uma coisa meio que primitiva. Pensou então Gabriel que a solidão está presente, porque o contexto a obriga a existir como tal. Se os fins de tarde e os domingos, continuou a pensar e a escrever Sombra, são esses momentos em que o mundo ao nosso redor fica vazio, aparece-nos o sentido de que não temos ninguém para nos ajudar em caso de perigo. O mundo caótico dos dias úteis que repentinamente ficou desocupado nos remete a essa solidão atávica. “É esse o momento então de contato, pode-se dizer, mais íntimo com a solidão”, escreveu o poeta. Momentos em que se entra em entendimento ou não com o próprio eu e o que fazer com ele. E o desejo atávico de comunicar-se com o mundo de fora da caverna. “Sair da caverna existencial e observar as sombras que circulam ao redor”, escreveu com mais ênfase, Gabriel Sombra...

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A saga do paroara

Jorge Tufic



Artista plástico, desenhista, escritor (dos maiores da ficção nordestina), Audifax Rios comparece agora com este poema ou romancim (verbete criado por Virgílio Maia), um canto em décimas sobre a figura polêmica do paroara, na designação de Houaiss “nordestino residente na Amazônia”, cuja aventura se valoriza aqui sob o halo de forasteiro desbravador a serviço do progresso do País, ou, ainda, um migrante que sonha tornar aos seus pagos natais bafejado pelos ventos da fortuna.

Excelente a ideia do Autor que, homenageando o poeta Thiago de Mello, fundamenta o critério de sua escolha no reconhecimento e no valor humano, a cada dia mais válido e atual, dos famosos Estatutos do Homem. E deles extrai, como ponto de partida, o primeiro verso de cada décima desta saga maravilhosa que temos diante de nós, nordestinamente ilustrada pelo próprio Audifax, um traço bastante familiar na paisagem cearense.

Na verdade uma ode, um hino, um desvendamento de mistérios, uma palavra de ordem.

Ode porque celebra as vitórias e os feitos desse personagem incomum na história dos Soldados da Borracha, tido, ainda, como contratante e atravessador de milhares de flagelados pela seca. Hino porque exalta o heroísmo de sua gente, essa obra gigantesca de construção deste nosso Brasil moderno. Põe a nu os mistérios porque paroara não vem de Pará nem de macaco, no caso desse audaz paladino, mas de ave-homem que voa aos sons da viola e acorda cedo para trabalhar. E palavra de ordem porque, ao tomar por empréstimo versos dos Estatutos do Homem, o canto de Audifax estabelece, enfim, que doravante não haverá mais nenhum tipo de discriminação entre Norte/Sul/Sudeste etc.

Isso porque temos sangue perdido na floresta, e suor derramado sobre o concreto tirano. A verdadeira alma brasileira ainda é verde e sertaneja.

Mais bela que a estrela da manhã.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O corpo nu é a mensagem: Regina José Galindo

Jorge Bandeira


Cada vez mais, um sinal de alerta e aviso permanece em minha mente: sem a arte nosso Naturismo terá vida efêmera, servindo apenas para holidays de júbilo e encontros ocasionais de naturistas eventuais e não permanentes. Esta constatação é feita por mim ao me deparar com uma artista singular, ou pelo menos não comum: Regina José Galindo. As performances de nudez total dessa guatemalteca são lindas e profundamente sugestivas do impacto que nossa nudez pode causar aos transeuntes, ao cidadão, ao pensador, ao povo.

Performance com uma nudez que é urgente, que desmascara as atitudes terríveis de ditaduras e preconceitos. Em muitas delas o código de ética do naturismo internacional é contemplado de forma brilhante, e isso é um serviço magnífico que essa artista presta ao movimento naturista. Uma nudez de combate, o inverso da nudez ocasional de final de semana, que como toda lógica das férias e dos passeios, passa tão rápido que pouco fica em nossa memória. O que permanece, que tem vida mais durável nos cantos profundos de nossas consciências, são atitudes de reflexão, de impacto sensorial. A diversão é importante, claro, mas apenas isso é muito pouco para as urgências naturistas que precisamos vencer: ampliação de naturistas, participantes ativos nos grupos e associações, jovens que são peças raras em nosso movimento, ampliação dos núcleos familiares que cada vez estão sumindo de nossos encontros.

Atividades de sensibilização são este novo-velho eixo que devem vir à tona neste século XXI para o Naturismo. Há momentos que a ação direta deve ocorrer, de forma imediata, nas frentes culturais, por exemplo: teatro, música, artes plásticas, poesia, dança, vídeo, fotografia, hipertexto naturista etc. Escolha uma e deixe de lado, um pouco, os comes e bebes dos encontros. Tenha um tempo para ensaiar. Veja abaixo como o CORPO NU de uma artista pode contribuir com nossa querida causa naturista, que faz com que tenhamos uma esperança no futuro. Para não cair em contradição com o que acabo de digitar neste universo binário da informática, as imagens das performances em nudez total ou parcial de Regina José Galingo serão acompanhadas de legendas poéticas, para uma maior apreciação estética e crítica de vocês, nobres leitores, nus, nuas, com vestes ou sem vestes.

PELE – Ao caminhar nua pelas ruas mais erráticas deste corredor de infinidades corporais, depilei cabelos e pelos dos mais especiais. Não basta só tirar a roupa para que percebam que existo, e se acham que de outro planeta sou, restaram-me os cílios para me terem em suas retinas serenas. A minha nudez não mais os embaraça, um outro código visual foi retirado de minha derme. Ninguém se aproxima, temem o câncer gay, nestes termos mesmo, seus baús conservam códigos primordiais de preconceitos. Nua, prossigo meu caminhar em busca do tempo perdido, longe demais de Marcel Proust.







PLÁSTICA – Eu sou este pedaço de carne/eu peso muito/preciso emagrecer de forma urgente/meu médico falou que minha conta bancária é suficiente para garantir minha alegria/meu corpo é feito de televisão e de cinema/eu sou a máquina excludente/eu vivo por minhas sobras/o lixo hospitalar me agrada/satisfaz meu paladar.
















PENA – Prisioneira e violada pelo regime/política gosta de nudez/quem disse que não está mentindo/nudez serve ao estado/quem disse que não está mentindo/minha anistia não carrega etiquetas/eu sou a mulher nua que não está todos os meses nas bancas/nua, carrego minha sombra vestida de sangue e lágrimas.










BLIND – Nua para ninguém/olhos que não me comem/eles precisam pegar no meu corpo nu/a sensação completa jamais será alcançada/sou a estátua da amargura nua/não jorra água de minha fonte/talvez/para minha perplexidade maior/estes seres que me tocam entendam minha nudez em sua essencialidade/arranquemos nossos olhos/voltemos a enxergar.

 
 
 
Veja mais sobre Regina José Galindo.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Boris Vallejo.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A miragem elaborada – 20

Zemaria Pinto


O pouso leve



Gaston Bachelard, em O direito de sonhar, afirma que o instante poético é “essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários”. Na poesia de Alcides Werk, estes contrários (água/terra, mata/urbe, luz/escuridão) têm sempre a presença do homem como elo de ligação. Este terceiro elemento leva-o na direção oposta àquele poeta descrito por Sartre em Que é a literatura?: Werk não se afasta da linguagem-instrumento. A palavra não é uma barreira e por isso ele se dirige aos homens sem o temor de não ser entendido.

A palavra-signo é mais que a palavra-coisa. Refundida no fogo das paixões mais elementares a palavra poética de Alcides Werk assume por vezes conotações muito comuns, como deve ter sido observado ao longo deste trabalho. Aí, mais uma vez, o poeta atalha os velhos caminhos do estabelecido para construir uma poesia cujo maior argumento de vigor é, justamente, sua simplicidade.

Pouco mais que uma centena de poemas publicados, não é difícil concluir – pela emotividade despojada, despejada em cada poema – que Alcides constrói seu trabalho às custas do sofrimento físico que o fazer da poesia lhe impõe. As miragens elaboradas que persegue são raios de uma tempestade longínqua a que ele se acostumou a assistir nos fins de tarde da verde planície de seu exílio voluntário.

E eis que o trabalho encerra. Encerra mas não se esgota, pois que o lavor da palavra é sempre anunciador de boas-novas. Cumpra-se.

 
Dos instrumentos de voo



AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1988.

ARISTÓTELES. Poética. Série Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Série Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

__________. O Direito de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1986.

BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BITTENCOURT, Agnello. O homem amazonense e o espaço. Rio de Janeiro: Artenova, 1969.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1989.

LYRA, Pedro. Conceito de poesia. São Paulo: Ática, 1986.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1987.

RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1974.

SANTA'ANNA, Afonso Romano de. Poesia: um negócio de muita responsabilidade. In: Revista IBM. Ano II, n° 05, Setembro/1980.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. São Paulo: Ática, 1989.

SILVA, Domingos Carvalho da. Uma teoria do poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1989.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1983.

VERÍSSIMO, José. Estudos amazônicos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970.

WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica. São Paulo: Nacional, 1977.

WERK, Alcides. Da noite do rio. Manaus: Madrugada, 1974.

__________. Marupiara. Organização de Aníbal Beca, Manaus: Governo do Amazonas, 1988.

__________. Poemas da água e da terra. Manaus: Madrugada, 1987.

__________. Trilha dágua. 1a edição, Manaus: Governo do Estado do Amazonas/UBE-AM, 1980.

__________. Trilha dágua. 2a edição, Manaus: Governo do Estado do Amazonas/UBE-AM, 1982.

__________. Trilha dágua. 3a edição, Manaus: Madrugada, 1985.


Manaus, 1989

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sífilis: a doença no lugar do pecado

João Bosco Botelho



Durante milhares de anos os homens utilizaram a falsa relação doença-pecado para intervir no controle social. É possível associar essa mesma concepção aos temores coletivos em torno da fealdade e da morte anunciada pela sífilis.

Desde o uso generalizado da Penicilina, após a II Guerra Mundial, essa doença não representa mais perigo à sobrevivência humana. Porém, nem sempre foi assim. A sífilis já impôs grande estigma, que significava a certeza da incapacidade física, da loucura e morte.

Foi o médico Jerônimo Frascastoro (1483-1553), nascido em Verona, na Itália, quem escreveu , em 1521, a obra que o imortalizou: “Syphilis Sive Morbus Gallicus”. Nesse livro, escrito em versos, pela primeira vez, estava clara a descrição da doença com a atual denominação e o caráter epidêmico:

Vi vários casos de uma semente má desconhecida
Traziam expostas já de algum tempo
Por toda Europa, parte da Ásia e da Líbia qual tempestade
Irrompeu no Lácio, por causa da triste guerra dos gauleses
E recebeu o nome daquela gente

Nos versos 76-80 e 113-115, mesmo com a inegável genialidade, Fracastroro sucumbiu às pressões eclesiásticas e associou claramente a sífilis à sexualidade:

Quando nas pastagens ao lar livro longamente: e então se firmaram os vícios
Oh! tu que esperas a liberdade pelo trabalho
Pouco te opões ao cuidado que a todos domina
Princípios: com esforço de memória guarda estes preceitos
Embora pouco os prazeres do amor: molestem face toda a vida

O personagem central da narrativa é um pastor tão devotado ao rei que acabou por divinizá-lo. Como castigo sofreu a fúria dos deuses, manifestada sob a forma de uma doença, até então desconhecida, que Fracastoro denominou “syphilis”.

Em decorrência do completo desconhecimento que envolvia a doença naquela época, ela era conhecida por diversos nomes: mal de Nápoles, mal alemão, mal dos cristãos, mal dos judeus e outros. É evidente que cada grupo social tratava de atribuir ao outro a responsabilidade pelo problema. O tratamento consagrado, até o século XVIII, era realizado com o paciente no interior de um barril, onde inalava o odor oriundo da cocção de mistura mercurial.

Com ou sem o pecado pré-concebido, a sífilis tem sido curada pela penicilina. Esse resultado obrigou o preconceito da doença-pecado ser redirecionado para outras enfermidades.

Ilustração: método para "tratamento" da sífilis, no século XVIII.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Gabriel saiu para almoçar 3/15

Marco Adolfs


...“Mas o que é a solidão?”, pensou o velho poeta Gabriel, no dia em que resolveu escrever o tal ensaio. Começou por pegar um velho dicionário jogado ao chão, bem embaixo de sua rede. Folheou, procurou, procurou; até que encontrou a definição da palavra: só, desacompanhado, solitário, único, próprio. Palavra que vem do latim solus; solipsismo, uma doutrina filosófica segundo a qual a única realidade do mundo é o próprio eu. Gabriel já sabia disso tudo, principalmente do fato concreto ou mesmo abstrato de reconhecer que a solidão era algo inerente à condição humana; uma parte constitutiva de todo o ser; e até de Deus, o maior de todos os solitários, segundo o seu entendimento. Percebia então que a solidão, na verdade, era quase como uma perna ou um braço. Nasce-se só e morre-se só, pensou, ao começar a escrever esse tal ensaio definitivo sobre o fato. Isso tudo, para aqueles que vêem a morte como o fim da sua pobre ou rica existência, não era nenhuma novidade. Mas as pessoas insistiam em não querer perceber a concretude da coisa. Mas, indagou-se ainda Gabriel, “ser só é diferente de estar sozinho?” Somos sós; mas, eu, Gabriel, estou, porém, sempre sozinho, começou a matutar o velho poeta. Sou só, pois sou único; e, além disso, vivo sozinho. Gabriel então teorizou sobre tudo isso, colocando no papel as palavras necessárias para encetar esse seu ensaio-testemunho. Foi quando então percebeu que a sua solidão era a melhor de todas as solidões, apesar dos vazios intangíveis e persecutórios de todos esses malditos domingos...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A poesia renasce

Jorge Tufic



A meu ver, com este novo livro de poemas, Wender Montenegro já pode se candidatar para uma segunda lista de poetas emergentes, sempre a critério de Fábio Lucas, cuja sensibilidade não perde o sucesso, nem aplaude o equívoco. E veja o leitor que da primeira lista de Fábio não constam nomes badalados; antes, pelo contrário, ela retira os quase desconhecidos da sombra e do nada. Uma página de ouro: Wender dedica um de seus poemas a Francisco Carvalho, no qual extravasa o cântaro de sua percepção diante das metonímias, do caminhar sob pedras, do cais imaginário.

Pintar de ferrugem cada luz e riso; semear gerânios sobre cada grito. Este é um dos pilares em que se assenta o desejo do poeta, ao fazer da linguagem convencional um código fértil do voo que fica torto apenas para fazer a diferença entre o som da harpa e as teclas do piano. Agora o milagre, sempre a nos trazer do hipotético passado as imagens do afeto: o Chevalier de Ipanema, ligado ao Roniquito, amigo de Vinicius de Morais, era filho de meu querido irmão maior Ramayana de Chevalier. Daí porque esta página da coletânea, Ipanema, traz-me de volta a mansão da Dias da Rocha, em Copacabana, onde teria nascido o genial Roniquito, cuja língua viperina ele herdara do pai, que manteve, durante anos, a “Cadeira do Carrasco”, uma coluna do jornal “O Dia”, do Rio de Janeiro.

“Casca de nós”, ou seja, a proteção externa dos suplícios internos, poesia, enfim, é o título que faz destas páginas um abrigo perene aos mais belos poemas de quantos tenho lido, talvez, além de outros recursos, pela audácia metafórica de estrofes como essa, a primeira do poema intitulado “a lua é uma vaca”: a lua é uma vaca do rebanho de Deus / a sua cauda eriçada / mordida pelo ladrar dos cães / assanha as marés. São muitas, contudo, as pausas de encantamento e reflexão contidas neste livro, embora, em algumas, persista ainda o vezo de tematizar o próprio fenômeno poético, como se disto pudesse fluir uma nova Castália de estremecidas benesses.

Nem por isso podemos negar que todos os poemas deste volume número 2 da saga lírica de Wender Montenegro, impressionam pelo modo contencioso dos versos, a preocupação drummondiana com o “estado selvagem” de nosso cotidiano, sendo, inclusive, louvável esta sua adesão aos ínvios atalhos do pântano manuelino de barros, sem deixar de lado o pântano cósmico da Amazônia, sob a flauta do uirapuru.

Poesia é metáfora, revelação, descoberta. Ela não pode servir a nada e a nenhuma causa que lhe tire essa força. A nossa força.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Flores d’América: estreia de texto de João Denys no Teatro Amazonas

Jorge Bandeira


João Denys é um dos principais dramaturgos do Nordeste, do Brasil. O autor, diretor e professor potiguar, radicado em Pernambuco, legou para nosso teatro Deus danado e Encruzilhada Hamlet, marcos incontestáveis do Teatro feito em nosso país. Agora temos Flores d’América, dirigido por Daniel Mazzaro, que teve estreia nacional no Teatro Amazonas, no 7º Festival de Teatro da Amazônia. O texto de João Denys é de 2005, quando venceu o cobiçado prêmio “Hermilo Borba Filho” de dramaturgia, do Recife.

Os temas que se destacam nessa história bem elaborada e encenada são aqueles do mormaço sertanejo, o cangaço, a dura peleja das mulheres, a religião que encobre tudo, e escamoteia tantas outras coisas. A protagonista desse drama sagaz é Dona América, uma mulher destemida e ousada, que viu filhos morrendo e que luta pela dignidade das filhas Soledade e Das Dores, onde o criador dramatúrgico inspira-se na linguagem popular e no cordel para florear seu texto de uma riqueza vocabular extraordinária. É, antes de tudo, uma lição para todos do cabedal de termos e adjetivos que se constituem numa cosmogonia da vida nordestina, uma literatura de alto valor antropológico. O texto já seria importante só por este elemento, mas vai além com uma montagem permeada de ousadias, de um calibre cênico tão forte quanto as armas sertanejas de Dona América.

A velha América, calejada pela vida e cotidiano implacável é o que conhecemos como carola, uma católica que preenche sua calejada vida com as santificações, com os quadros de imagens sagradas, com os terços e rosários, que devota sua vida, em primeiríssima instância, aos deveres dessa devoção. América é fruto direto da tradição ibérica, de uma religião católica carregada de catolicismo, mas que possui um “charme” histórico que nenhuma vertente do protestantismo consegue alcançar, pois os condicionantes milenares deste culto católico está impregnado em nossa memória, sejamos ou não católicos. É este Brasil mítico de que trata a peça de João Denys, e ele, sabiamente, busca amparo na visão genial de Federico Garcia Lorca para ter suas criaturas de cena no patamar digno da esfera shakespeariana, algo que já fez com primor com sua Encruzilhada Hamlet.

O coro que percorre e costura todas as cenas garante o relevo cômico do espetáculo, aliviando a tensão do drama, valorizando a cena subsequente. E nisso tudo, nessa costura eterna protagonizada pela atuação vívida de Socorro Andrade, uma tradição literária nos é brindada no palco iluminado pela boa direção de Mazzaro: o Realismo Fantástico, nas idas e vindas da história, entre o real e o imaginário, onde a verdade é feita da e pela boca dos personagens, em especial da própria América e de suas filhas dissimuladas e emuladas ao cataclisma do cinismo e da possessão.

A força do ritual e seus desvios entre o sagrado e o profano é outro achado magistral dessa dramaturgia tão máscula e vigorosa, sem dúvida uma das mais vinculadas ao universo do nordestino, pelo poder de comunicação, pela capacidade de colocar em cena a fabulosa tradição oral e das narrativas fabulares do repente, do cordel e dos contadores de história. O espaço cênico é um lugar sagrado, mas que é democraticamente profano, com atos coletivos de celebração, seja nas orações, nos cortejos do coro ou no novenário.

O cenário é a projeção de um certo desbotamento dos elementos da religião opressora, mas que não se desprende tão facilmente de seus adeptos, é da cor da terra, de um fauvismo, de uma elaboração de naif estigmatizado como as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, diria Dona América. É o triunfo do kitsch cristão, dos quadros de Nossa Senhora, do Sagrado Coração. De um tempo que se cristalizou, por isso o relógio sem ponteiros, parado, centralizado no meio do palco, aprisionando aos personagens em sua “hora eterna”.

A direção de Mazzaro, nesta estreia, conseguiu levar seus atores e atrizes ao desencadear das situações de sacralidade e profanidade, de uma teogonia satírica, o que a afasta de um Milagre, pois as santificações todas são meros exemplos para a superação via Realismo Fantástico, e é nessa Macondo nordestina que adentramos, espectadores cientes do jogo, que emociona e acalenta, que nos assoberba, mas que também nos bate com a palmatória. A atuação de todos os agentes cênicos foi orgânica, com alguns deslizes no texto, numa estreia compreensíveis, e todos fizeram um trabalho de interpretação emoldurando a atuação de Socorro Andrade dos “socorros” que a protagonista precisou, o que fez de sua performance algo bom de se apreciar.

Confesso que no início achei que a voz de Socorro Andrade não aguentaria o jorro de clamor do personagem, num rebento de histerismo vocal que pensei que afetaria a voz da atriz. Enganei-me, pois Socorro Andrade manteve, ao longo do espetáculo, sua voz audível, sem enfraquecer sua atuação. A maquiagem de Jonatas Sales também foi precisa nesse trabalho, sem carregar em demasia as faces, e o trabalho de sonoplastia de Leonel Worton fez com que as passagens sonoras fluíssem naturalmente, destaco as partes incidentais mais intimistas, onde a sensação de estar num local calmo e tranquilo logo em seguida era quebrado pelas situações de conflito tão bem engendradas pelo dramaturgo, e nisso, nesse contraste, a sonoplastia teve seu mérito. O figurino, assinado por Sibele Gomes, captou as essências da atmosfera do texto, com seus mantos e roupas ensolarados, de um traje que carregava, em si, o peso de uma situação desconfortável. E aqui vou falar da nudez das irmãs, da naturalidade tão brilhantemente alcançada pelas duas atrizes, que em nenhum momento deixaram suas dignidades cair por terra. Foi uma cena linda, com lindas mulheres nuas, mas não aquela nudez feita para o deleite dos leitores de revista masculina, mas a nudez como arte, a nudez em seu aparato naturista, natural. Com este espetáculo, Daniel Mazzaro insere, definitivamente, a nudez num patamar cênico que há tanto tempo ela merecia, pois estamos no Amazonas, onde essa tradição cultural indígena raramente é posta em cena com tanto despojamento, tanta coragem. E o público compreendeu perfeitamente o valor intrínseco dessa nudez, e se divertiu com a situação das duas irmãs nuas, armadas e vestidas de pele, que saem, naturalmente nuas, pelo corredor iluminado do Teatro Amazonas. Um marco de nossa cena para não esquecermos. Apelativo? Jamais, da maneira precisa com que Mazzaro o fez, trata-se de arte de alto quilate, e aplaudo as atrizes por esse pacto sincero de seus corpos com a proposta do espetáculo. O público viu naquela nudez natural um vínculo perdido com a naturalidade do corpo, sem apelações, sem segundas intenções, e por ter a verdade cênica frente a seus olhos, não esqueceu a trama para ver apenas as atrizes nuas. Tudo transcorreu naqueles minutos de nudez total, na mais santificada paz dos sentidos estéticos. Ponto para a direção.

A face de Dona América é calejada, e ela tem sua fortaleza em sua religião ancestral, ela se refugia em seu santuário, com as bênçãos do “Padim Ciço”, com sua idolatria amada, seu coração e sua mente são vias sacras de sua existência, de suas dores e decepções. A trama de sua pretensa morte é feita de forma brilhante por João Denys, são diversas e variadas visões, visagens da tradição oral, envolvendo a mitificação, as lendas rurais de um distante nordeste perdido no tempo de nossas memórias, o mito e seu poder de convencimento e uma tradição oral que representa a história do nordeste.

O uso de planos alternados no cenário demonstra que a ritualização foi pensada em nível cênico nos moldes dos altares sacros, sendo essa visão perceptível ao público no formato de palco italiano. O eterno girar dos pedais das máquinas de costura, de uma urdidura que jamais cessa, de um trabalho de Sísifo na tradição de Albert Camus, esse absurdo existencial, são outras referências que destaco, além, obviamente, da shakespeariana projeção das três mulheres numa imagística de suas imagens figurativas. É o grotesco em cena, e seu vínculo com a morte, onde a cabeça degolada de Dona América foi alvo de um sem número de situações, até ser costurada pela própria. É o cataclismo do caos e do absurdo, onde o jogo mágico e surreal ganha ares de obra-prima.

As costureiras cosem seus infortúnios, jogando suas mandingas e maldições, num círculo interminável de trapaças, de desvios de conduta, de profanidades, fugindo da severidade cristã medieval de Dona América, a matriarca, a mãe da cruzada cristã contra as inutilidades do mundo físico. A linguagem nordestina em sua dignidade “além TV Globo”, não colocando aqueles sotaques animalescos tão comuns pelos novelistas, é outro mérito da direção e do trabalho interpretativo do elenco. A força da palavra é exatamente não ser caricatural, pois as circunstâncias cênicas já apontam para essas aleivosias, e o excelente texto de João Denys é o principal mote para o funcionamento desse Teatro.

Por conveniência estilística estaciono aqui esta escrita crítica de Flores d’América, estou na metade de minhas considerações sobre a peça bem orquestrada e dirigida, numa estreia com os erros naturais de uma estreia, mas erros que não redundaram em prejuízos da encenação. Muita coisa anotei, vou continuar, com certeza, este pensar crítico sobre um trabalho de alta magnitude dramatúrgica, belo e perspicaz, que só eleva a nossa tradição nortista e nordestina na História do Teatro feito no Brasil. Merda a todos! Parabéns ao elenco.


Manaus, 17 de outubro de 2010. Encerramento do 7º Festival de Teatro da Amazônia.

sábado, 15 de janeiro de 2011

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A miragem elaborada – 19

Zemaria Pinto

O homem noturno, a busca da luz



VI


Apesar de íntima e apaixonadamente identificado com a região amazônica, Werk não se deixa inebriar pelo jogo fácil das cores. O claro/escuro de sua poesia tem nuances que só o olhar mais contemplativo e paciente poderá perceber. Considerando apenas o aspecto dia/noite, observa-se a gama de símbolos que o poeta utiliza.

O entardecer – a luz sendo substituída pelas trevas – é “prenúncio de luto” e representa a morte, a decadência, a ruína:

                                                                           amargo
                    instante só de ocasos construído

A noite, por sua vez, tem dupla função. Há a noite que sucede o entardecer, mas há noite que precede a manhã. A primeira traz em seu bojo espectros sombrios, gemidos de dor, angústia, desespero. A noite desce sobre o poeta e seu universo. A noite veste-o. A noite despe-o.

                    Noite. Deve ser noite. Nada vejo
                    no mar. O meu navio é uma figura
                    suja do mundo escuro deste mar
                    de noite. E eu vazio dentro dele.

Estes versos, do “Soneto V”, seriam palavras de um encarcerado? Seriam palavras de um torturado? A chave talvez esteja no fechamento do soneto: dúvida que enlouquece o homem e alonga a noite:

                    Esta sombra indecisa é minha sombra?
                    Desde quando navego neste barco?
                    Desde quando esta noite continua?

A outra noite – a que precede a manhã – é cúmplice do homem, protegendo-o e à natureza. Em “À irmã sem amor” ele afirma que

                    a antiga semente do amor

                    germina no silêncio da noite.

A noite que prepara a manhã, com seus pássaros, suas árvores e seus frutos, protege a natureza porque faz parte dela. A noite com seus ruídos, com suas sombras, com sua luz, é parte da vida, da natureza amazônica. Esse pacto entre o homem e a natureza o conduz ao sonho de busca da manhã, a busca da luz. E a manhã chega com a festa do retorno ao lar.

Noite/exílio/tristeza. Aurora/retorno/alegria.

A manhã constrói o dia. E o homem se retempera. E como fruto de flor nascido, amadurece ao sol do meio-dia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A medicina no Brasil colonial holandês

João Bosco Botelho



O domínio militar holandês em Pernambuco, no século XVII, possibilitou o encontro em terras brasileiras de Maurício de Nassau, o administrador intelectual, e o médico Guilherme Piso. Piso nasceu em Leyden (Holanda), em 1611 e diplomou-se em Medicina em Caen (França), em 1633. Ele chegou ao Brasil, em 1637, e ocupou a chefia dos Serviços Médicos das Índias ocidentais. Permaneceu em Pernambuco sete anos e durante esse período coletou material e fez inigualáveis observações que culminaram na elaboração dos seus dois livros. Retornou à Holanda, em 1644, tendo exercido a prática médica, em Amsterdã, até 1678, quando morreu.

Antes da conquista holandesa, a Medicina colonial brasileira estava exclusivamente atrelada às farmácias dos jesuítas. As famosas fórmulas mágicas desses religiosos estavam indicadas para todas as doenças, inclusive dirigidas ao desespero de algumas famílias, com o “cozimento para a virgindade perdida”, do Irmão Boticário Manoel de Carvalho. Por outro lado, a interferência do poder eclesiástico sobre os governadores era tão intensa que, em 1707, D. Sebastião Monteiro ordenou que os poucos médicos da corte não tratassem os doentes que não se confessassem e comungassem.

Com a nova diretriz imposta por Piso foi possível reunir, no hospital do Forte de São Jorge, vários médicos e cirurgiões-barbeiros, alguns judeus fugidos das acusações da Contrarreforma promovida pela Igreja na Europa. Entre os atendimentos médicos, Guilherme Piso tomou conhecimento da Medicina indígena e, de modo genial, comprovou que ela curava mais que as amputações indicadas pelos cirurgiões-barbeiros.

No seu livro “História Natural do Brasil”, descreveu várias doenças infecciosas. No capítulo “Das lombrigas”, identificou corretamente o Ascaris e o Enterobius, dois dos parasitos intestinais mais comuns no Brasil, afirmando que poderiam ser encontrados no estômago, vesícula biliar e coração, caracterizando de forma incontestável que também realizava necropsias, na mesma época em que, na Europa cristianizada, essa prática era absolutamente proibida.

O grande professor de Guilherme Piso foi o Pajé com os conhecimentos acumulados ao longo dos séculos. O médico holandês reconheceu, em diversas passagens do seu livro, a superioridade dos remédios indígenas sobre os prescritos pelos médicos europeus: “Os índios prescindem de laboratórios, ademais, sempre têm a mão sucos verdes e frescos de ervas. Enjeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples”.

Ilustração: capa do livro de Guilherme Piso.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Brita Seifert.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Janela da alma

David Almeida


A força do pensamento abre uma janela e o meu olhar vislumbra um horizonte que ninguém vê. O cego olha para o jardim e sente o esplendor das flores se abrindo, perfumando, colorindo seu mundo. O olhar de ninguém é só de ninguém. O meu olhar é só meu. O olhar do cego é projetado, do jeito que ele quer vê, no horizonte da noite, pela janela da alma.

O olhar? É um olhar que se perdeu e se aconchegou no mundo que seus valores viram. É a verdade, na sombra da luz, clareando os caminhos, onde passos pisarão e deixarão marcas fossilizadas, em algum lugar no tempo, onde a vida, por cada verdade viveu.

A vida de cada um é refletida no tempo e espaço determinado pelo olhar. Onde a vista vai é o limite da sua existência. Além do olhar não há nada. O pensamento voa sobre a luz do olhar, e o que vê é o mundo real da sua imaginação. Olhares se entrelaçam, se detectam; a luz, a escuridão podem ser as mesmas, mas a impressão de cada olhar é individual. Vejo-te da forma que meu olhar clareia a imagem que projetei, e que serve como mais um elemento para a composição do meu mundo real. Quantos olhares foram em vão, por não terem percebido, que a janela da alma tinha se fechado? Porque o engano sobrepujou a percepção; a vontade de ver o que não existe, conduz ao nada e um mundo em ruínas se desenha pela decepção. Mas, uma topada leva ao chão da realidade o cego que não quer ver.

O olhar está sempre buscando tudo o que a ele pertence, mas às vezes não vê o que procura, porque está dormindo e sonhando com aquilo que sempre quis ver, mas, nunca parou para olhar direito e o pesadelo segue noite adentro, pela madrugada, ao encontro do olhar da manhã.

Sem rumo é o olhar que vê o que não foi pensado; o que não tem registro referencia e esbarra no que não viu. Um só olhar é capaz de iludir, também, com a mentira emoldurando cílios, retinas e discursos, que pairam sobre multidões de desesperados, que têm a visão embaçada pela poeira levantada por uma sociedade desequilibrada; suja de olhares egoístas, gananciosos que globalizaram um mundo para poucos.

Pelo olhar tanto se ama como se odeia. Porém, mais vale o olhar que enche de amor um iluminado coração apaixonado, que um olhar cego de ódio, estacionado numa eterna escuridão.

No mundo, os olhares se cruzam, se experimentam. As janelas das almas se abrem e se fecham. Há olhares de chegada, onde tudo é surpresa e não discrimina nada; outros, de partida, frios, imóveis, que já viram tudo, construíram seu mundo ou nada fizeram... E se fecharam para sempre.

Gabriel saiu para almoçar 2/15

Marco Adolfs

 
...Assim vivia Gabriel Sombra, o velho ranzinza e taciturno que circulava pela cidade de Manaus com um colete que muito lhe caracterizava a figura eremita de poeta das metáforas luminosas. Ultimamente, sem muito que fazer em matéria de poesia, já que para o seu entendimento ele as escrevera todas, Gabriel vinha escrevendo um ensaio em segredo absoluto de todos. Dizia a si mesmo que era o seu testamento, a ser deixado “para esses cretinos todos lerem, quando eu me for”. E sobre o que versava esse ensaio? Sobre a cegueira? Ou a tristeza metafísica? Ou mesmo sobre a ignorância dos homens e mulheres deste mundo? Não. O ensaio de Gabriel Sombra versava justamente sobre aquilo que mais lhe incomodava a alma durante esses domingos: a solidão. Um ensaio sobre a solidão; que ele, desde cedo, sempre compreendera bem ser a grande condição emocional de homens e mulheres deste planeta. Quase uma doença de que todos deveriam fugir, mas que ele, em sua resignação estóica e devidamente adaptada pelas circunstâncias da vida – embora a sentisse doer bastante naqueles domingos de extremo vazio –, passara a adotar como inevitável. Já que ela o açodava de vez em quando; já que os amigos e inimigos haviam sumido do seu horizonte de relações sociais; já que ela era sua condição mais humana e presente desses seus últimos dias na face da Terra, escreveria então sobre ela. Como um testamento perante Deus e os homens. Como uma vingança “contra e a favor da cretinice”.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Modernismo no Ceará

Jorge Tufic


Tal como na pesquisa que empreendi sobre a literatura no extremo norte do País, o impasse foi o mesmo quanto à moderna literatura nordestina, ou seja, quase nada pudemos encontrar nas livrarias sobre o conjunto de obras publicadas nesse período marcado por mudanças verdadeiramente significativas a partir da Semana de Arte Moderna de 22 e o romance na década de 30, com exceção do proveitoso Seminário realizado pela Universidade Federal do Ceará, em 1981. Limitou-se este, porém, a dissecar as contribuições dos principais autores surgidos em 30, a exemplo de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, sobretudo estes, com excelentes abordagens no aspecto de sua temática das secas, denúncia social, inconformismo e indignação contínua acerca dos problemas regionais. Tratou ele, contudo, segundo Paulo Elpídeo de Menezes Neto, de um “reexame imparcial procedido, orientado pela experiência crítica dos conferencistas e apoiado na lucidez e no empenho de todos os estudiosos de literatura brasileira que se envolveram na explanação e discussão dos temas estabelecidos: Revisão do Romance Nordestino de 30; A Língua no Romance Nordestino de 30; A Crítica Literária e o Romance Nordestino de 30 e; Aspectos Sócio-políticos do Romance Nordestino de 30. ¨

Hoje, no entanto, esse cenário amplia-se com a necessidade de reunir todos os Estados do Nordeste sob o título geral de A Moderna Literatura Nordestina, quando persiste ainda o fenômeno de “ilhas” ou “brasis”, o que torna difícil a estruturação de um corpus embora apenas informativo de nossa realidade literária, para cuja tarefa o prazo concedido fora bastante exíguo. Entretanto, honrado pelo convite da Fundação Mansur, irrecusável sob vários pontos de vista, dentre estes a oportunidade de me encontrar com os demais convidados, gente ilustre e altamente representativa, tentei os recursos da Internet na esperança de obter ajuda; nada, afinal, conseguindo, numa prova, agora insofismável, da carência de dados ou da precisão de um tempo maior para que fossem obtidos.

Entrementes, valeu-me este passeio livresco ao constatar a presença, cada vez mais forte, daquilo que alguns entendem como a legítima expressão nordestina, ou seja, o cordel popular e suas diversas manifestação eruditas, a exemplo do cordelim com que estreei nesse gênero, o romancim de Virgílio Maia e algumas outras publicações mais antigas, como “Nordestinados”, de Marcus Accioly, estas últimas como reflexo do movimento armorial, centrado na magia e nas cintilações do gênio de Ariano Suassuna. Uma literatura, diga-se de passagem, vendida hoje em feiras culturais pelos próprios autores.

Afinal, com a sugestão do mestre e amigo Pedro Vicente Costa Sobrinho, resolvemos que eu ficaria mesmo no Ceará, dando conta de um resumo sobre o modernismo, grupos e nomes de escritores direta ou indiretamente ligados ao ideário modernista de 1922, ou que a este se anteciparam, como a famosa Padaria Espiritual.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Sintonizando Off Inferno

Jorge Bandeira

As peregrinações de um corpo em estado de emergência, que sai às ruas e atravessa o primeiro círculo no próprio quarteirão onde adentrará para cumprir, inapelavelmente, seu atroz destino. Ao entrar, cabisbaixo, com o corpo enterrando-se dentro de si, com os nervos vitimados por castigos provindos do invisível da alma, ou de um ser que o vitima sem escrúpulos, eis o nosso penitenciado. Ele é o espelho de cada um, muito familiar aos nossos sentidos. A Companhia Cacos de Teatro retira um fragmento ósseo da poética de Dante Alighieri, o poeta do absoluto medieval, o homem que, sozinho, “criou o purgatório” em nossa mente, o mais medieval dos artistas, e também o mais contemporâneo de todos. Ousadia de quem teve o cuidado de não entregar ao espectador o óbvio, o costumeiro de Dante, suas visões que hoje fazem parte do imaginário universal. Off Inferno ou Lave o Céu para que eu Morra é um surpreendente veículo artístico da exacerbação, aqui tido como um trunfo nas mãos de um hábil intérprete, o convincente Francis Madson.

As proliferações de signos desta concretude imagética não são dispersos aleatoriamente, os objetos cênicos foram pesquisados com minúcia, tornando a apresentação desta obra clara, limpa, e terrivelmente inquietante. Aqui a alegria não é bem-vinda. A diversão principal é a purgação deste ser, ensejando o retorno da catarse em seu sentido magno, em níveis potenciais para a reflexão sobre a condição humana, sobre a prisão existencial em que a sociedade aprisiona o ser capacitado ao caos. OFF INFERNO nos brinda com uma estadia no inferno, numa jornada de imagens, sons e performance que paradoxalmente nos cativa, nos hiberna nestes círculos infernais, nove jornadas que são descortinadas pelas caixas de pandora, pecados retirados de antigos baús, tornam as vicissitudes de nosso personagem sofredor, como se encomendadas de nosso próprio passado, nestes recipientes que nos fazem lembrar de nossa infância, dos velhos baús e caixas antigas que não se apagam nem se apagarão de nossas memórias mais queridas. Um mérito do encenador, que teve a perspicácia de não pensar num depositário de queixumes e castigos de maneira a nos afastar deles, ao contrário, ele aproximou este sofrer de nós, atentos que estamos em capturar a trajetória caótica do infeliz condenado. Os baús são nossas recordações.

As profundas transformações desse corpo estigmatizado foram acompanhadas por uma suavização dos movimentos, numa economia gestual que nos remete às partituras de um corpo no viés oriental de um Teatro de “condensação gestual”. Os inúmeros penitentes do inferno dantesco transformam-se em um único ser, uno corpo, numa explosão de almas penitentes e amalgamadas, o que torna este corpo em emergência, com suas quedas, seus engasgues e suas contorções doloridas.

O sofrimento é uma característica humana, uma proeza de pensar na vida como findável, finita. OFF INFERNO é uma leitura da possibilidade de um corpo em expansão a partir do momento angustiante de perceber-se vivo e mutável, dos músculos que terão suas fibras abaladas pela ação do tempo infernal, de um calendário vertiginoso chamado perenidade. Apenas sobreviverá a arte, e mesmo assim na efemeridade de nossas lembranças. Somos conduzidos a uma câmara de horrores, mas que representa, em cada um de seus sinais, um pouco de cada um de nós. A gula, a ambição, a usura, o fanatismo, todas as formas de preconceitos que ainda teimam em estar presentes na sociedade aparecem em etapas, em uma sequência circular, em uma atuação estilizada e segura. A habilidade do intérprete Francis Madson em tornar tudo plausível, natural, é outro paradoxo desvendado pelo encenador Dyego Monnzaho. Tudo se reveste em uma crueldade criativa, um sofrer saudável, esteticamente bem-vindo ao espectador. A estranha alegria pelo sofrimento do outrem, o nosso reflexo, a nossa cara-metade. Atire a primeira pedra quem nunca visitou este Inferno, quem jamais “pecou” neste mundo de regras e condicionantes conservadores, nesta sociedade patriarcal, limitada, de uma visão deturpada do diferente, que só “purifica” as almas extremamente dóceis, inertes, que não possuem este sofrer consciente.

A atmosfera de melancolia, onde nosso herege, luxurioso, avarento, suicida, blasfemo, sodomita e usurário, adulador, nosso ARTISTA se encontra, eis o limbo da configuração espectral destas vertigens da cena. Ao espectador, resta refletir sobre este sofrimento, se é merecedor dele, e neste caso, tornar-se seu juiz, condição que o coloca na função básica do terror numa câmara obscura e estranhamente translúcida: ser Deus ou Lúcifer. Não estamos no purgatório ou no Paraíso. Requiescat In Pace.

Post Scriputum.

No 7º FTA, OFF INFERNO começa do lado de fora do Teatro, onde o público participa desde lá das conjunções performáticas, jogando trigo (Cof!Cof! Inferno) no padecente e objetos “dejetos” da ostentação. No palco, as reações da plateia foram as mais variadas, tais quais os círculos infernais de Dante. Alguns demonstravam asco, piedade, compaixão, rejeição, nojo, medo, inquietude, desconforto, repulsa etc. Poucos, porém, se retiraram do local dos sofrimentos infinitos. A sonoplastia do DJ Marcos Tubarão se coaduna com as situações, um zumbido de alta frequência que fica no limite do audível suportável, é um som realmente infernal, lembrando as sonoridades de interferência de alguns filmes clássicos do surrealismo de Luis Buñuel. Algo para se refletir: no plano abaixo do Inferno Central, no sistema arena desta apresentação, ficou também uma boa parte do público, que infelizmente deve ter perdido boa parte das sensações vividas pelos que estavam no palco. Aqueles, então, ficaram no subinferno, perdendo o desencadear da trama performática do ator. Outro ponto que destaco nesta apresentação e que não teve o efeito desejado foram as projeções, a maioria ficou indecifrável, prejudicando a leitura total da cena proposta pela encenação. Fica claro que, para funcionar na sua integralidade, OFF INFERNO precisa e necessita de um Inferno menor, mas como fazer isso, se já habitamos um inferno?


Manaus, 10 de julho de 2010, 12 de outubro de 2010

sábado, 8 de janeiro de 2011

Fantasy Art – Galeria

Night Harvest.
Kirk Reinert.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A miragem elaborada – 18

Zemaria Pinto

O homem noturno, a busca da luz


V


O “Soneto IX” – coroamento desses cânticos libertários – é a síntese definitiva da noite que se instaura no país a 31 de março de 1964. O regime de terror encontra em Alcides Werk mais que um simples opositor a protestar. Suas palavras são imagens retiradas a sangue frio de retinas ainda cálidas. Palavras que a boca não dirá jamais. Imagens, apenas.

                    Fez-se uma curta pausa. E a noite baça
                    estendeu seus lençóis sobre as cidades.
                    Ventos frios de morte andavam soltos,
                    e formas embuçadas destruíam

                    restos vagos de luz. Alguns senhores
                    guardaram pressurosos seus haveres
                    para a estranha vigília dos sonâmbulos.
                    Nas sombrias e extensas avenidas

                    as multidões dos homens deserdados
                    prosseguiram seus ritos no silêncio
                    de uma noite sem tempo. E os anciãos

                    das várias tribos foram convocados
                    para o mister pacífico das aras
                    e a glorificação das horas mortas.

O “Soneto XII” – o último poema de Trilha dágua – representa a profissão de fé do autor no futuro, futuro que se constrói com o tempo e com o trabalho, indispensável, da poesia:

                    Impossível voltar, e continuo.
                    Elaboro miragens e as persigo
                    com a determinação dos suicidas.

Futuro que virá – o poeta o sabe – não com a manhã. A aurora é a transição entre a noite de terror e a luz do novo dia. O dia toma forma aos poucos. Como a vida. Como os frutos. O poema “Noturno”, presente já em Da noite do rio, ensina como se processa essa mudança:

                    Um dia, nesta praia deserta,
                    de onde contemplo os meus ocasos
                    e somo por somar o tempo inútil,
                    ela surgirá diante dos meus olhos
                    (a mesma de sempre),
                    pousará suas mãos em minhas mãos,
                    fitará longamente o meu rosto,
                    para conhecer as marcas da angústia,
                    e dirá:
                    – Eis-me aqui novamente.

                    Ela virá no começo da tarde,
                    e o sol presidirá sua chegada.

O começo da tarde, o meio-dia, passada a festa da manhã, a embriaguez da luz rompendo a escuridão. Mais que a paixão, o amadurecimento para o amor, para o exercício pleno da liberdade.
 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Lepra bíblica: a certeza da exclusão social

João Bosco Botelho



Poucas doenças causaram tanta certeza antecipada do sofrimento e da exclusão social quanto a lepra. A palavra “zaraath”, oriunda da tradição oral do hebreu, apareceu no Antigo Testamento, entre os anos 587 e 538 a.C.. As passagens descritas no Levítico, onde essa palavra é encontrada, foram traduzidas equivocadamente para o grego, na Bíblia dos Setenta, destinada aos judeus da Dispersão, como sendo sinônimo de lepra. Posteriormente, a versão latina, a Vulgata, manteve a mesma errônea compreensão. Mesmo com as dúvidas que persistem do real significado dessa doença, naqueles tempos, ficou marcada como uma forma de castigo de Deus.

Sob a terrível marca de doença ligada ao castigo divino, em poucos séculos, a lepra alcançou o Sudeste da Ásia, a Indonésia e o Leste do Japão. A doença transportada pelos exércitos de Dario e Alexandre alcançou o Oeste e o Oriente. Os comerciantes fenícios contribuíram na difusão mediterrânea e as legiões romanas se encarregaram de propagá-la na Europa e no Oriente médio.

No medievo europeu cristianizado, a transcendente imagem de Jesus Cristo curando os leprosos instrumentalizou um dos mais consistentes símbolos da Nova Aliança, transcrita no Novo Testamento, em torno do Deus essencialmente misericordioso e tolerante. A reprodução da bondade de Jesus Cristo com os excluídos do convívio social, descrita pelos apóstolos, fincaram as bases da caridade cristã voltada à assistência aos sofredores, entre os quais, os leprosos constituíam a grande maioria.

Os leprosos foram escolhidos no Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob o pontificado de Alexandre III (1159-1181), para receberem tratamento especial dos cristãos e, ao mesmo tempo, reprovar o isolamento ao qual estavam submetidos. A Ordem de São Lázaro foi criada para dar cumprimento às ordens conciliares e o grão-mestre deveria ser sempre um leproso.

No século 13, na Europa, existiam dezenove mil “Xenodochium pauperum, debilium et infirmorum” (Hospital dos pobres, dos fracos e dos enfermos), que funcionavam como leprosários, quase todos construídos com donativos de pessoas que associavam a caridade à salvação pessoal.

Bastava a simples denúncia do vizinho contra alguém suspeito de ser portador da doença para que fosse iniciado o rápido processo de julgamento. Se considerado culpado de ser leproso, a pessoa era isolada em um dos muitos leprosários disponíveis, administrados pelos religiosos das Ordens Hospitalares de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo. Desse modo, sem outra opção, incontáveis doentes que sofriam o terror das deformidades provocadas pela lepra, passaram da exclusão errante à exclusão fechada patrocinada pela caridade.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Introdução na vida alcoólica

Davi Soledade




Eu estava sentado em uma mureta em frente da sala de aula. Mais uma vez o professor de Física havia faltado. Eu tinha um tempo livre. Do meu lado sentava uma amiga. Não tínhamos nada para conversar. Mas ela tinha belos peitos. Peitos que eram sustentados por um sutiã com alças dentilhadas. Acho que ela tinha um monte deles. Ela se dizia feia, mas eu não concordava com a ideia. Tinha um nariz bem afilado, bochechas coradas e lábios rosados. Eram lábios bem delineados. Às vezes sentia vontade de beijá-los. Só às vezes. Ela também usava um óculos com armação lilás cortada por listras brancas que era bonito ao seu rosto. Eram lentes de descanso. Zero vírgula vinte cinco graus de cada lado. Eu gostava dela, mesmo sendo feia.

Começamos a conversar sobre bebida; eu disse que nunca havia introduzido um gole de álcool goela abaixo. Mas ela, por Deus!, o que eu não tinha bebido ela tinha bebibo por mim. Comecei a tirar algumas dúvidas alcoólicas com ela enquanto me contava sobre suas experiências com a bebida.

“Quando você começou a beber, Bianca?”

“Foi no ano novo de 2009”, ela respondeu. Continuou: “Eu tinha saído da igreja e fiquei em frente de casa sem fazer nada. O vizinho da direita, seu Sávio, convidou a minha família pra comemorar. Fomos eu e minha irmã do meio. Ele deu algumas latas de cerveja pra gente, e a gente bebeu. Não bebi muito nessa primeira vez.”

“Hum… legal. Quando foi seu primeiro porre?”

“O meu primeiro porre foi esse ano. No ano novo também. O seu Sávio, convidou a gente de novo. Dessa vez fomos eu e minhas duas irmãs. Tinha muita gente lá. Formamos uma roda no pátio da frente. Começamos a nos embebedar. Minha irmã mais velha, a Talia, bebia freneticamente. E eu tava a fim de mijar. Beber cerveja dá uma vontade de mijar! Aí a minha irmã se levantou da cadeira que cumpunha lá a roda e abriu os braços. Depois vomitou no pátio do homem. Eu me levantei e fui mijar lá em casa. Cheguei no banheiro e vomitei também. Vomitei tudo. Caiu vômito por cima do vaso, um pouco na pia, na parede e no ralo. Eu tirei minhas roupas e fui dormir. No outro dia, eu acordei eram três da tarde. Fui até o banheiro mijar, estava um brinco. Tudo brilhando e cheirando a lavanda.”

Eu ouvia aquele entusiástico relato com toda minha atenção. Senti vontade de ficar bêbado de uma hora para outra. Mas a cantina só servia suco de cupuaçu.

“E aí, agora você já sabe como é beber, pelo menos um pouco?”

“É… já tenho uma base”, respondi a ela.

Eu fiquei olhando para os peitos dela. Ela sacou um cigarro e uma caixa de fósforos do bolso esquerdo da calça e acendeu o seu Dunhill. Puxou um trago, ergueu o rosto e deu uma baforada.

“Tem dúvidas sobre sexo…?”

Não. Eu não tinha dúvidas sobre sexo. A campa tocou e a aula acabou. Fui para casa. Escutei um colega gritar meu nome enquanto eu saia.

“Ramon, Ramon, espera.”

Esperei.

“Faz a introdução do trabalho de Geografia pra gente?”

“Compra um uísque pra mim?”, tentei uma chantagem barata.

“Como?”

“É… Vai ali na adega da João Valério, como é mesmo o nome?… Vai lá e compra um uísque pra mim que eu faço a tal introdução.”

Ele me passou um pen drive com o trabalho, e depois de voltar um pouco suarento, o uísque. Peguei-o. Eu não sabia julgar uísques, mas aquele parecia ser dos bons.

Fui para casa. Meus pais tinham ido trabalhar, trabalhavam juntos em uma empresa de segurança. Eu tinha a casa só para mim. Legal. Abri minha bolsa, tirei o pen drive e o joguei na mesa do computador. Tirei a garrafa de uísque, despejei o conteúdo no meu copo, e tomei, frio mesmo. Ardia bastante. Era dilacerante. Eu sentia cortar minha goela abaixo quando aquele líquido descia por ela. Bebi tudo.

Deitei no sofá. Eu estava com uma dor de cabeça dos diabos, mas acho que não estava bêbado.

Gabriel saiu para almoçar 1/15

Marco Adolfs



Naquela manhã, quando acordou, Gabriel Sombra sabia que era mais um domingo. E, como em todos esses dias de domingo no centro da cidade de Manaus, tudo deveria estar fechado. Lojas, bancos e lanchonetes. Pessoas desapareceriam das ruas do centro como em um passe de mágica, acentuando agudamente a sua já crônica e cultivada solidão. Com exceção da feira que se estendia por toda a extensão da Avenida Eduardo Ribeiro, seu divertimento continuado, carregando a sua solidão horrorosa, seria ir, após o almoço, até a livraria Saraiva do Shopping Manauara e lá ficar lendo um livro qualquer até o anoitecer, quando então voltaria para casa, para dormir. Gabriel Sombra era um senhor de um metro e cinquenta de altura, carregando uma corcunda inevitável, e que vinha “vivendo precariamente, há mais de vinte anos” – como gostava sempre de ressaltar aos poucos conhecidos com quem trocava um dedo de prosa –, em um quartinho de poucos metros quadrados de um prédio localizado nos fundos de uma vila de casas no começo da rua Lima Bacuri, perto do Colégio Estadual Pedro II. Lugar suntuoso do saber, onde, no passado, Gabriel Sombra ministrara suas famigeradas e bem elaboradas aulas. Poeta e professor de uma Manaus do passado e que parecia, a seus olhos lânguidos e observadores, não existir mais. Gabriel vivia então precariamente instalado em seu pequeno apartamento nos fundos daquela vila, rodeado de revistas, livros e a poeira inevitável por todos os lados. Uma escolha de vida que aos seus poucos amigos impressionava, mas que àquele espírito sozinho servia como conforto para as noites passadas naquelas quatro paredes daquele quartinho alugado. Uma geladeira nunca descongelada, uma rede puída e esgarçada servindo como cama, algumas poucas roupas velhas e centenas e mais centenas de livros e revistas jogados por todos os lados eram os seus únicos bens. Ah! Sim, havia ainda os silenciosos e monásticos incensários, que Gabriel Sombra espalhara pelos quatros cantos do seu apartamento e que gostava de acender para pacificar o espírito. Enquanto no auge de seu sucesso literário, Gabriel Sombra passava esses domingos vazios em casas de admiradores que o convidavam para poderem apenas posar junto a um intelectual de sucesso. Mas, agora, quando ninguém mais o convidava para coisa nenhuma, Gabriel, o poeta laureado, tornara-se um daqueles idosos solitários que, por uma determinação própria e distinta da existência, relaxavam de qualquer condição normal de vida humana e se entregavam ao silêncio de um ostracismo velado de lembranças furtivas. Mas Gabriel também não era um velhinho qualquer, desses que andam pelas ruas implorando por amor e consideração dos outros. Sombra tinha um orgulho próprio que muito lhe reconfortava a alma ao longo das ruas e dos seus momentos de solidão. Havia um extenso e diversificado conhecimento acumulado em seu cérebro, além de uma propalada e exaltada condição humana de ser descendente direto de obscuros nobres franceses, que durante os seus períodos de solidão lhe apareciam em seu quartinho para lhe reconfortarem perante a ignorância do mundo. “São as novas invasões bárbaras!... Os verdadeiros intelectuais vivem em um gueto!”, exclamava de vez em quando Gabriel Sombra, o poeta, do alto de sua sabedoria, reclamando da ignorância de muitos...

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A fusão dos opostos em Carlos Augusto Viana

Jorge Tufic


(Sobre Inscrição dos lábios, poesia)

Olvidado, talvez, de si – ou de sua própria letra – o poeta Carlos Augusto Viana demarca a importância de alguns, entre os bastante conhecidos e os pouco divulgados territórios poéticos de sua intimidade eletiva, somando-se, no conjunto, os escritos de Laéria, Francisco Carvalho, José Alcides Pinto, Linhares Filho, Artur Eduardo Benevides, Campelo Costa, Martônio Vasconcelos, Ricardo Lincoln e Rogaciano Leite Filho. Pela ordem das homenagens, contudo, aí se perfila o Jorge Tufic de Poesia Reunida (1988), a seguir de Laéria, que retorna à página 105 na forma de uma canção extraída dos mais densos favos líricos do Cântico dos Cânticos.

Entretanto, ao reunir-se as parte no todo é que se passa a vislumbrar a extensão desse outro território, que é o do próprio autor deste livro, pródigo em metáforas que se vão concretizando num círculo abrangente, imperativo; isto é, numa viagem equilibrada, mas não linear, entre a fala que sangra e os motivos, ou eternos motivos da poesia, como sejam a dor, o tempo, a morte, o vazio, a bruma, o desejo, o pó. Carlos Augusto Viana encontra, assim, na intertextualidade e na metalinguagem, a resposta da identidade que se enriquece enquanto desperta e a lavra, esta, sim, inquietante, do processo intersubjetivo que nos traz à tona esse bloco maior do continente inaugurado.

A linguagem do autor, seu modo, diga-se, “imponderável”, não deixa por menos ao exigir de si mesma o sussurro, quando cabe o sussurro; o galope, quando cabe o galope; a visão plástica da noite ou dos “telhados envelhecidos”, quando cabe a lembrança, os retratos de família, o “gume da ausência”, o “ícone da espera”. Aliás, é só a partir de metáforas que se constroem os poemas de CAV, o impulso inicial e a força motriz indeclinável para que não haja quedas nem a mais discreta hesitação na postura dos caibros. Tijolos, a par dos inefáveis relâmpagos e vozes, cravos e madrugadas que fazem a sua casa, modelam seu barro nativo, gotejam suas pálpebras.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Mostrando a língua aos trapos da guerra

Jorge Bandeira

Uma guerra anunciada e cristalizada num pequeno vilarejo de alguma parte da Europa destroçada, e nesse lugar qualquer, seres de verdade, um casal de velhinhos e sua neta que tentam entender a situação em meio ao caos e aos destroços, vidas que serão mutiladas e aniquiladas. Assim apresenta-se Feliz ano novo, da Cia de Teatro Língua de Trapo, com texto e direção assinados por Hely Pinto. Trata-se de um libelo contra o absurdo da guerra e suas inevitáveis consequências, um texto que oscila entre o didático e o lírico, e talvez nessa encruzilhada estilística algumas chaves essenciais não se completam no espetáculo.

O elenco segura as pontas da representação ao longo da encenação, em alguns momentos da cena, em especial nos de grande dramaticidade, sente-se a falta de uma atriz que catalise as passagens cruciais do texto e montagem de Hely Pinto. Uma observação feita para pensar em tornar o espetáculo mais vigoroso, pois as falas dos personagens denotam um peso existencial de alta envergadura, de transbordamentos de situações que somente a atuação precisa dos atores o fará “existir” verdadeiramente para o seu público.

A guerra e a solidão, eis um tema que faz deste trabalho uma reflexão sobre os nossos dias, nessa imensa crítica sobre os poderes, aos partidos políticos e aos meandros de um jogo que recomeça com as mesmas peças manipuladoras e manipulantes, que em muitos momentos recorda os clamores anarquistas de uma Espanha que antecede ao ditador Franco. Algumas falas no texto de Hely Pinto são jorros de um libertário que não vê mais sentido algum entre os inequívocos rótulos ideológicos de direita ou esquerda, tudo está misturado, amalgamado, confuso.

Guernica está lá, no cenário feito de estilhaços do famoso quadro de Pablo Picasso, e a singeleza da casinha do velho guardião, que carrega um humor sarcástico em várias passagens, destoa dos animalescos nazistas que perfazem o elemento grotesco em sua manifestação caricatural dos SS, e do próprio Hitler, pois são as sombras “que jamais morrem” do ditador da Alemanha do período da Segunda Guerra. Há, bem a propósito, uma certa nostalgia nas figuras dos velhinhos, e esta condição aproxima o espectador de seus sofrimentos, culminando com um reencontro metafísico do casal nos planos bem diferentes do cruel e real sintoma da guerra.

O abrandamento da situação, fazendo esse desfecho para o “outro lado da trincheira da vida”, caracterizou, no palco, a divisão entre pólos opostos, a salvação, nesta visada, não veio com o armistício e capitulação das forças do eixo, mas com a transcendência dos personagens, fazendo com que as máscaras dos nazistas algozes terminassem a trama como vencedoras. O mundo da guerra é real, e só nesse plano ele torna-se compreensível e pronto para o urdimento da dúvida e do porvir. Franco e Hitler são representantes de uma extrema direita que marcou um momento decisivo para o Ocidente, e muito do ódio que ainda existe neste século XXI é oriundo das celeumas que ainda resistem em cicatrizar nas mentes de alguns retrógados, que projetam as guerras permanentes, que explodem sentimentos, para o que este trabalho também serve de alerta.

Um momento de intenso lirismo da obra: as cartas que caem no palco, revelando sonhos e decepções, preparando o terreno cênico para a destruição final das vidas, ceifadas, abandonadas, em plena passagem de um ano para outro, num réquiem que costumam chamar de réveillon. A perda de tudo, do básico para e existência. A decepção ao se perceber mínimo nesse máximo de atrocidades, e um humor letal de personagens que chegam a emitir sinais de vitalidade, mas estranhamente o ciclo dramático não se fecha, não se “ilumina”, mesmo com uma iluminação bem executada, com um figurino bem talhado e montado com um rigor de pesquisa, e com objetos de cena que demonstram o apuro da equipe, o que torna Feliz ano novo um enigma a ser desvendado.

Talvez a ligação das cenas e quadros foi uma opção imediatista do diretor, o que através do cenário estático não compactuou no resultado objetivo de propiciar dinamismo para a cena, mesmo com a elegante sonoplastia do espetáculo. São alguns senões, mas não que lancem mão dos bons desempenhos do casal de velhos, e aqui cito a atuação de Rosa Malagueta, atriz conhecida pelo seu viés cômico, mas que alcança um resultado bastante plausível na vertente dramática. A maquiagem, pelo excesso, nos faz perder momentos de mudanças de sentimentos e a mobilidade da expressão facial do casal de idosos, o que foi uma pena, pois as vibrantes atuações de Hely Pinto e Rosa Malagueta mereciam uma maior visibilidade, especialmente a do ator, diretor e autor Hely Pinto.

O nazismo e sua bestialidade são colocados nos momentos de dança dramática, e o passo do ganso nazista em sua marcha nupcial nos remete, subliminarmente, ao ganso como iguaria em uma passagem do texto teatral e as recordações desta culinária vivificada na cena, o que, no aspecto da composição do drama, foi um achado digno de nota.

A voz do ditador Adolf Hitler, que abre a cena para Feliz ano novo, preenche nossas mentes e chega aos nossos corações alarmados pelo pavor da guerra. Essa guerra que não cessa, que não se interrompe, e que nos deixa ansiosos para projetar esse Teatro histórico e didático de Hely Pinto para um futuro promissor, aparando algumas arestas, aprimorando a atuação de seus intérpretes, notadamente a personagem da neta, que seguramente alcançará voos mais altos no decorrer de uma possível temporada. Nada mal para começarmos felizes este 7º Festival de Teatro da Amazônia na categoria de teatro adulto. A guerra estética tem início, e o que é melhor, ela não precisa, ainda bem, de sangue real.

Manaus, 9 de outubro de 2010