Amigos do Fingidor

domingo, 9 de janeiro de 2011

Sintonizando Off Inferno

Jorge Bandeira

As peregrinações de um corpo em estado de emergência, que sai às ruas e atravessa o primeiro círculo no próprio quarteirão onde adentrará para cumprir, inapelavelmente, seu atroz destino. Ao entrar, cabisbaixo, com o corpo enterrando-se dentro de si, com os nervos vitimados por castigos provindos do invisível da alma, ou de um ser que o vitima sem escrúpulos, eis o nosso penitenciado. Ele é o espelho de cada um, muito familiar aos nossos sentidos. A Companhia Cacos de Teatro retira um fragmento ósseo da poética de Dante Alighieri, o poeta do absoluto medieval, o homem que, sozinho, “criou o purgatório” em nossa mente, o mais medieval dos artistas, e também o mais contemporâneo de todos. Ousadia de quem teve o cuidado de não entregar ao espectador o óbvio, o costumeiro de Dante, suas visões que hoje fazem parte do imaginário universal. Off Inferno ou Lave o Céu para que eu Morra é um surpreendente veículo artístico da exacerbação, aqui tido como um trunfo nas mãos de um hábil intérprete, o convincente Francis Madson.

As proliferações de signos desta concretude imagética não são dispersos aleatoriamente, os objetos cênicos foram pesquisados com minúcia, tornando a apresentação desta obra clara, limpa, e terrivelmente inquietante. Aqui a alegria não é bem-vinda. A diversão principal é a purgação deste ser, ensejando o retorno da catarse em seu sentido magno, em níveis potenciais para a reflexão sobre a condição humana, sobre a prisão existencial em que a sociedade aprisiona o ser capacitado ao caos. OFF INFERNO nos brinda com uma estadia no inferno, numa jornada de imagens, sons e performance que paradoxalmente nos cativa, nos hiberna nestes círculos infernais, nove jornadas que são descortinadas pelas caixas de pandora, pecados retirados de antigos baús, tornam as vicissitudes de nosso personagem sofredor, como se encomendadas de nosso próprio passado, nestes recipientes que nos fazem lembrar de nossa infância, dos velhos baús e caixas antigas que não se apagam nem se apagarão de nossas memórias mais queridas. Um mérito do encenador, que teve a perspicácia de não pensar num depositário de queixumes e castigos de maneira a nos afastar deles, ao contrário, ele aproximou este sofrer de nós, atentos que estamos em capturar a trajetória caótica do infeliz condenado. Os baús são nossas recordações.

As profundas transformações desse corpo estigmatizado foram acompanhadas por uma suavização dos movimentos, numa economia gestual que nos remete às partituras de um corpo no viés oriental de um Teatro de “condensação gestual”. Os inúmeros penitentes do inferno dantesco transformam-se em um único ser, uno corpo, numa explosão de almas penitentes e amalgamadas, o que torna este corpo em emergência, com suas quedas, seus engasgues e suas contorções doloridas.

O sofrimento é uma característica humana, uma proeza de pensar na vida como findável, finita. OFF INFERNO é uma leitura da possibilidade de um corpo em expansão a partir do momento angustiante de perceber-se vivo e mutável, dos músculos que terão suas fibras abaladas pela ação do tempo infernal, de um calendário vertiginoso chamado perenidade. Apenas sobreviverá a arte, e mesmo assim na efemeridade de nossas lembranças. Somos conduzidos a uma câmara de horrores, mas que representa, em cada um de seus sinais, um pouco de cada um de nós. A gula, a ambição, a usura, o fanatismo, todas as formas de preconceitos que ainda teimam em estar presentes na sociedade aparecem em etapas, em uma sequência circular, em uma atuação estilizada e segura. A habilidade do intérprete Francis Madson em tornar tudo plausível, natural, é outro paradoxo desvendado pelo encenador Dyego Monnzaho. Tudo se reveste em uma crueldade criativa, um sofrer saudável, esteticamente bem-vindo ao espectador. A estranha alegria pelo sofrimento do outrem, o nosso reflexo, a nossa cara-metade. Atire a primeira pedra quem nunca visitou este Inferno, quem jamais “pecou” neste mundo de regras e condicionantes conservadores, nesta sociedade patriarcal, limitada, de uma visão deturpada do diferente, que só “purifica” as almas extremamente dóceis, inertes, que não possuem este sofrer consciente.

A atmosfera de melancolia, onde nosso herege, luxurioso, avarento, suicida, blasfemo, sodomita e usurário, adulador, nosso ARTISTA se encontra, eis o limbo da configuração espectral destas vertigens da cena. Ao espectador, resta refletir sobre este sofrimento, se é merecedor dele, e neste caso, tornar-se seu juiz, condição que o coloca na função básica do terror numa câmara obscura e estranhamente translúcida: ser Deus ou Lúcifer. Não estamos no purgatório ou no Paraíso. Requiescat In Pace.

Post Scriputum.

No 7º FTA, OFF INFERNO começa do lado de fora do Teatro, onde o público participa desde lá das conjunções performáticas, jogando trigo (Cof!Cof! Inferno) no padecente e objetos “dejetos” da ostentação. No palco, as reações da plateia foram as mais variadas, tais quais os círculos infernais de Dante. Alguns demonstravam asco, piedade, compaixão, rejeição, nojo, medo, inquietude, desconforto, repulsa etc. Poucos, porém, se retiraram do local dos sofrimentos infinitos. A sonoplastia do DJ Marcos Tubarão se coaduna com as situações, um zumbido de alta frequência que fica no limite do audível suportável, é um som realmente infernal, lembrando as sonoridades de interferência de alguns filmes clássicos do surrealismo de Luis Buñuel. Algo para se refletir: no plano abaixo do Inferno Central, no sistema arena desta apresentação, ficou também uma boa parte do público, que infelizmente deve ter perdido boa parte das sensações vividas pelos que estavam no palco. Aqueles, então, ficaram no subinferno, perdendo o desencadear da trama performática do ator. Outro ponto que destaco nesta apresentação e que não teve o efeito desejado foram as projeções, a maioria ficou indecifrável, prejudicando a leitura total da cena proposta pela encenação. Fica claro que, para funcionar na sua integralidade, OFF INFERNO precisa e necessita de um Inferno menor, mas como fazer isso, se já habitamos um inferno?


Manaus, 10 de julho de 2010, 12 de outubro de 2010