Amigos do Fingidor

sábado, 31 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria


Hasani Claxton.

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Bolero's Bar 13

 Perfume de gardenia 

Zemaria Pinto


Te ter como amiga é mais que um privilégio: é uma dádiva divina. Repara como todos nos olham: entre a inveja e a admiração sobra espaço para muito pensamento vil. Mas só eu, olhando bem de perto, percebo a música dos teus cabelos, o mar revolto em teus olhos, as notas cintilantes da tua voz e o poema que se enforma em teu sorriso. Visto de qualquer ângulo, teu corpo tem a perfeição de uma escultura antiga. Olha estas mãos, estes braços. E as coxas, fala pra mim?... Ruborizas... É um reflexo de tua alma, sussurrando: cuidado com ela... Não me temas: se alguém corre perigo sou eu. Mas é consciente. Olha, daqui já percebo teu hálito morno, embriagante. Chega mais perto. Que cheiro é esse, mulher? Gardênia?

 

Perfume de gardenia (1936), de Rafael Hernández (Porto Rico, 1892-1965). Bolero.


No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A poesia é necessária?

 O enforcado

Pollyanna Furtado

 

Teu nome é chaga,

cicatriz e dor.

Como se visses poesia

nas marcas de um açoite.

 

Teu nome é loucura,

altivez e doçura.

Como se ouvisses música

na voz do teu algoz.

 

Te amo porque és

pleno em solidão

e espanto.

 

Te amo porque és

o meu avesso.

 

Te contemplo,

sólido e mudo.

 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria


Jeff Wack.

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Manaus, 351 anos de histórias

 Pedro Lucas Lindoso

 

Para muitos brasileiros do Sul e do Sudeste, Manaus só tem uma história.  A história da floresta, dos rios, dos índios e dos ribeirinhos. É a única história.  O Rio de Janeiro, por exemplo, tem várias histórias.  Não só as das favelas e das balas perdidas. O Rio tem histórias de Copacabana.  De Ipanema e sua garota famosa. Da Lapa e seus mistérios. Da bossa nova. Do Cristo Redentor e do Corcovado. Do samba e do Carnaval. Histórias conhecidas por brasileiros e estrangeiros.  E nossa Manaus? Qual a história que eles conhecem? Rios, matas e caboclos remando canoas.

Quando vou ao Sudeste ou recebo aqui amigos de lá percebo que ficam surpresos com a Manaus urbana.  Cidade metrópole com shoppings, avenidas, arranha-céus, trânsito, bons restaurantes, casas noturnas, bons bares e condomínios residenciais de luxo.

E surpreendem-se porque Manaus só é conhecida por uma única história. Aquela dos rios, da floresta e dos ribeirinhos. Não sabem ou pouco estudaram o Ciclo da Borracha.  Época em que tínhamos o maior PIB do Brasil e a moeda corrente aqui era a libra esterlina.

Mas o imaginário persiste. Em época de eleição o Jornal Nacional mostra as famosas urnas eletrônicas sendo transportadas em canoas e rabetas. É aquela única e persistente história.

Nesse fatídico ano de 2020 nossa querida cidade completa 351 anos de muita História. Conquistas, avanços e maus tratos, governos e desgovernos. Mas habitada por gente de valor. Que trabalha, estuda, empreende, luta, acredita, ama. E gosta de viver aqui. E sabe que não temos só a história que eles conhecem. Dos rios e das matas. Que tanto nos orgulha.

Nesse triste ano de pandemia Manaus ficou conhecida como a cidade onde a Covid foi excepcionalmente mais perversa. Nos primeiros meses da pandemia o Jornal Nacional propagava para o Brasil e o mundo uma cidade que não conseguia enterrar seus mortos. Fileiras de covas de nossos cemitérios eram mostradas para o Brasil e o mundo.

Graças a Deus as coisas melhoraram. Mas viajando ao Sudeste fui questionado. Nossa, você é de Manaus? A cidade do Covid?

Tínhamos uma única história conhecida no Sul e no Sudeste. A dos rios e da floresta. Agora temos uma segunda história.  A do Covid.

O que desejo nesse aniversário? Que os nossos irmãos brasileiros não nos conheçam por essas duas únicas histórias. 

Precisamos mostrar que temos muitas Histórias.  Nosso Teatro, nossos festivais de ópera, jazz e o de Parintins. Nossa culinária fantástica. Nosso polo industrial. Nossa herança histórica. Nosso mobiliário urbano.  Nossa gente miscigenada e feliz. Nosso porto e nosso rio. A nossa ponte, nossos palácios e museus.

Não merecemos ter só duas histórias. Não merecemos ser a Manaus da Covid. Manaus é maior que duas únicas histórias.  Sabemos disso.

Feliz aniversário Manaus. De muitas histórias e de muitos amores. Ah! Se eles soubessem!

 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 4/14

 

Zemaria Pinto

 

Autobiografia: algumas impossibilidades e um paradoxo

Afinal, o que é um texto autobiográfico? A visão etimológica responde de bate-pronto: é a narrativa de uma vida, escrita pelo próprio autor. Por definição, opõe-se à biografia simplesmente pela troca de narrador – ou melhor, pela substituição do autor: o biógrafo mantém-se distante do biografado, atendo-se a documentos, registros passados e depoimentos.

Nessa perspectiva de um narrador extradiegético, temos a biografia romanceada, que, como se depreende do adjetivo, é uma ficção criada a partir de uma personagem histórica. Isso nos leva a um conceito recente: a autoficção – recortes ficcionais da vida de um autor, escritos por ele mesmo, ou seja: uma falsa autobiografia. O conceito pode ser recente, mas a prática é muito antiga. A autoficção, assim como a biografia romanceada, são apenas subespécies da ficção.     

A categoria roman à clef, romance em que personagens e acontecimentos reais aparecem sob nomes fictícios, também está descartada, porque, além da confusão que se faz entre Alberto e o autor, nenhuma outra personagem e nem mesmo os acontecimentos da trama encontram similar na realidade.

Voltemos ao texto autobiográfico. Além da autobiografia propriamente, há pelo menos três tipos de textos em que o autor pode dar notícia de si: diário, confissões, memórias. O mais objetivo deles é o diário, onde se registram cronologicamente os acontecimentos de um período, relativos, por exemplo, a uma viagem (O turista aprendiz, de Mário de Andrade), um fato histórico (O diário de Anne Frank, o horror da Segunda Guerra Mundial visto por uma adolescente) ou reflexões diversas (Diários, de Lúcio Cardoso, e Cadernos de Lanzarote, de José Saramago).

As confissões têm por objetivo mostrar uma experiência mística ou externar questionamentos de ordem religiosa. Trata-se, portanto, de um recorte autobiográfico, mas sem preocupação cronológica, e com uma finalidade específica. Confissões, de Santo Agostinho, e Uma confissão, de Liev Tolstói, são exemplos da forma.

Por fim, as memórias, a mais literária das formas biográficas, situam-se em um ponto fluido entre o testemunho histórico e o relato ficcional – não por opção do autor, mas porque o mecanismo que aciona as memórias é muito complexo: lembrança-esquecimento; memória afetiva, memória seletiva; o inconsciente.

 

Distorcido pela memória, o passado transfigura-se como se parecesse inventado, uma vez que o intuito reside menos no pacto autobiográfico estrito do que na reconstituição das lembranças que restaram do fluxo e refluxo dos dias. (MOISÉS, 2004, p. 280)

 

A literatura brasileira tem algumas memórias entre seus clássicos, como Minha formação, de Joaquim Nabuco, Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, Baú de ossos, de Pedro Nava, entre outros.   

A selva em nenhum momento aproxima-se de qualquer uma das formas autobiográficas citadas: não é autobiografia, não é diário, não é confissão, não são memórias. Parece que ainda em vida do autor fazia-se essa confusão, tanto que, 25 anos depois de a ter publicado, ele esclarece que a trama nada tem a ver com sua história pessoal, embora o cenário fosse seu velho conhecido:

 

(...) pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto que algumas noites (sic) suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1989b, p. 20)

 

Pode-se especular que os episódios narrados tenham acontecido de fato e mesmo não os tendo vivido diretamente o autor ficou sabendo deles, quando de sua passagem no seringal. É uma possibilidade, mas em nenhum momento ele admite isso.

É tácito que a literatura é gestada na experiência do autor: seja de vida, de leituras ou de ouvir contar. Mas o que dá a liga – transformando o heterogêneo em homogêneo – é a invenção. Sem invenção não existe literatura.

Convivamos, então, com o paradoxo: A selva é apenas uma ficção, ainda que o autor tenha vivenciado previamente os fatos que ele inventaria depois.

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.


domingo, 25 de outubro de 2020

Manaus, amor e memória CDLXXXVI


Café da Paz, na avenida Eduardo Ribeiro.

 

sábado, 24 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria



Andrius Kovelinas.

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Bolero's Bar 12

Por causa de você 

Zemaria Pinto


Era preciso passar por tudo o que passamos, para termos a certeza de que somos o que queremos ser, deixando para trás aquele estupor indigno – agora, somos de novo o sonho de amor e de vida que sonhamos. Enquanto você esteve fora, foi só desalento. Desde as mínimas coisas da casa até a minha inabalável estrutura mental – tudo desmoronou. Mas, numa madrugada de setembro, eis que você volta: a tempestade chicoteava as vidraças, e relâmpagos e trovões tornavam tudo mais lúgubre quando a tua sombra assomou à moldura da janela da sala. Foram poucas as palavras. Palavras banais, de amigos que não se veem há tempos. Agora, estamos cá, juntos novamente – e, contrariando o padrão, felizes. É o que importa.

 

Por causa de você (1957), de Tom Jobim (Rio de Janeiro, 1927-1994) e

Dolores Duran (Rio de Janeiro, 1930-1959). Samba-canção.


No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A poesia é necessária?

 O tempo

José Seráfico

 

Saibamos todos

que a luta

é inglória

fujamos para a

ilha mais

remota

nem por isso

inatingível

não adiemos

a hora

mergulhemos no mais fundo

dos mares

subamos na árvore mais alta

da floresta soberba

o inimigo sempre dirá:

é agora!

 

Vistamo-nos de palhaço

assumindo o que

sempre fôramos

e continuaremos sendo

nem assim fugiremos

à sentença

que trazemos do berço

até o dia

do convencimento.

 

Então diremos:

sou mais um

que perde esta guerra

de resultado sabido.



quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria

 

Copper Goddess.
Shane Braithwaite



terça-feira, 20 de outubro de 2020

Silogismo

 Pedro Lucas Lindoso

 

Shakespeare viveu na Inglaterra Medieval. Mas suas peças sincronizam com os dramas da atualidade. Acontece com todos os clássicos. Por isso perpassam os anos e continuam encantando os leitores.

No conhecido drama de Romeu e Julieta os jovens se apaixonam perdidamente. No entanto, ambas as famílias têm uma longa história de disputas. Eles se conhecem num baile de máscaras. Não poderiam imaginar que aquele amor poderia causar tantos infortúnios. Ao final, proibidos de viverem essa história de amor, eles escolhem a morte. Uma tragédia causada por famílias antagônicas.

O fato é que muitos enamorados mundo afora e em diversas épocas e circunstâncias enfrentam entraves para a realização de seu amor. Tudo em razão de questões familiares, políticas e até mesmo ideológicas.

Já o livro Todos os nossos ontens, da italiana Natália Ginsburg, entre vários relatos interessantes, discorre sobre um casamento entre dois jovens de famílias politicamente antagônicas durante o regime fascista que precedeu e protagonizou a Segunda Guerra Mundial.

Feitas essas considerações de cunho literário, passo a relatar notícia dada por tia Idalina sobre uma jovem Julieta amazonense, moradora atualmente no Rio de Janeiro.

A garota é filha de um senhor extremamente conservador e anticomunista ferrenho. Pois bem, nossa Julieta apaixonou-se por um jovem médico militante do PSOL, partido reconhecidamente de esquerda.

O namoro iniciou-se um pouco antes da pandemia. Transformou-se em paixão durante os meses de isolamento. Quando o velho pai soube, veio logo com um estranho e indefectível silogismo.

– Todo comunista deve ser odiado. Seu namorado é comunista, portanto...

Silogismo é um termo criado pelo filósofo Aristóteles para explicar o raciocínio por meio de dedução. A premissa de que todo comunista deve ser odiado foi tida como totalmente falsa para a Julieta. Não pode negar a segunda premissa. Também rapidamente concluiu que seu pai odiaria seu grande amor para sempre. Conclusão desoladora.

Tia Idalina me informa que a moça está inconsolável. Só não entende como uma pessoa tão extremista e conservadora pode gostar de filosofia aristotélica.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 3/14


Zemaria Pinto

 

Os livros

Ao primeiro livro – o citado Criminoso por ambição –, escrito aos 14 e publicado aos 18 anos, em Belém, seguiram-se, ainda em terras paraenses, a novela Rugas sociais e as peças Alma lusitana e O rapto. Em 1919, Ferreira de Castro troca o sucesso obtido na Amazônia pelo anonimato em Lisboa. Mas não duraria muito tempo. Em 1922, publica seu primeiro livro português: Mas..., de ensaios. No mesmo ano, sai a novela Carne faminta, onde o autor evoca a “angústia da fome sexual na selva amazónica” (BRASIL, p. 40). Título emblemático, como se verá adiante, na análise de A selva. E assim, à razão de dois livros por ano, ele segue até 1927. Mais tarde, toda essa produção imatura seria rejeitada pelo autor, sob a justificativa de que não passavam de simples experiências, exercícios de estilo.

Em 1928, Ferreira de Castro dá um salto qualitativo na sua obra, com o romance Emigrantes, passado no Brasil. O trabalho repercute para além dos círculos intelectuais de Lisboa.

Finalmente, “de 9 de abril a 29 de novembro de 1929” (CASTRO, 1989b, p. 19), quinze anos passados desde aquele 28 de outubro de 1914, em que deixara o seringal Paraíso, Ferreira de Casto escrevia A selva, publicado no ano seguinte.

O escritor maduro já não tem pressa para fazer fluir sua obra fictícia, o que vai acontecendo lentamente: Eternidade (1933), Terra fria (1934), A tempestade (1940), A lã e a neve (1947), A curva da estrada (1950), A missão (1954) e Instinto supremo (1968).

O sucesso alcançado por A selva, em escala internacional – Ferreira de Castro chegou a ser considerado, não sem controvérsia, um renovador do romance português –, toldou a avaliação crítica da obra, especialmente, no Brasil, onde ainda é, e com justa razão, a maior referência na prosa de ficção que trata do ciclo econômico da borracha. A revisão a que nos propomos é quanto à essência da obra – desde as falhas na arquitetura histórica da trama até a estruturação psíquica das personagens. Não nos move destruir o mito, mas sim lançar sobre ele a luz de um novo entendimento. E de uma vez por todas – será isso possível? – desassociar a figura da personagem de ficção Alberto da figura histórica do escritor José Maria Ferreira de Castro. Separar a verdade da ficção da ficção da verdade.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.

domingo, 18 de outubro de 2020

sábado, 17 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Amelia in red.
Hasani Claxton.

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Bolero's Bar 11

 Sabor a mi 

Zemaria Pinto


Depois de tanto tempo é difícil acreditar que acabou. Mas acabou. Não me iludo e nem tenho a vaidade de impedir que ela se vá. Minha pobreza me basta a mim mesmo: ela estará melhor longe de mim. O meu triunfo é trazer na boca o gosto de seus fluidos, uma mistura de odores e sabores que se definem com a posição do sol, as fases da lua, o alinhamento das estrelas. E saber que, para sempre, ela sentirá na boca o meu sabor – do meu café, do meu tabaco, do meu uísque e do meu suor. Sabor de mim.

 

Sabor a mi (1959), de Álvaro Carrillo (México, 1921-1969). Bolero.


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quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A poesia é necessária?

 

O gato 

Adriano Espínola

                                                              A Antônio Paulo Graça

 

 

Elástico,

caminha sobre o muro.

 

Com o focinho,

empurra a luz da manhã.

 

As patas ondulam,

silenciosas.

 

Refulge,

negramente esculpido,

na claridade.

 

É denso, atento, perfeito.

 

*

 

No entanto,

entre o chão e o ar,

 

o veloz perfil

desenha enigmas:

 

o gato é anterior

ou posterior às coisas?

 

Avança sobre a vigília

ou o sonho?

 

Que estágio da matéria

espreita o gato?

 

*

 

Ali, ele para, pensativo.

 

Múltiplo

e sábio,

 

calcula o espaço

entre seu corpo

 

– e o telhado em frente.

 

Súbito,

salta

sobre o invisível.

 

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Apenas crianças

Pedro Lucas Lindoso

 

José tem doze anos e mora com a mãe e o padrasto no bairro Jesus Me Deu. Um dos menores IDH de Manaus, quiçá do Brasil.

A moradia se restringe a um único cômodo. Em época de pandemia e quarentena, a convivência do casal com o menino tornou-se muito difícil. Antes da pandemia José se refugiava na escola. Matriculado no turno matutino, pediu à diretora que o deixasse ficar na escola pela tarde. A convivência com o padrasto sempre foi complicada. Permeada de incompreensão e violência.

José passa agora os dias na rua. Involuntariamente. Gostaria de estar na escola. Mas a escola fechou. Perambulando pelo centro e com fome, viu uma banca de frutas. Havia lindas maçãs vermelhas procedentes da Argentina.

José nunca comeu uma maçã. Conhecia mangueira e jambeiro. Onde teria um pé de “maçanzeira”? Perguntou ao vendedor.

– É macieira. Não tem aqui em Manaus. Uma é cinco, três por dez reais.

No livro do Gênesis, Eva desobedece a ordem de não comer a maçã. Mas foi grande a tentação. Não só experimentou como ofereceu-a para Adão.  Assim, aquele fruto da frondosa árvore do paraíso tornou-se símbolo de pecado e tentação.

José tinha dois reais e cinquenta centavos no bolso, fruto de seu trabalho como guardador de carro. A tentação foi tão grande quanto a de Eva. José, além da fome, tinha curiosidade em saber o gosto daquela fruta vermelha e apetitosa. Pegou uma e correu. Um guarda interceptou-o e levou José para a Delegacia.

Interrogado disse que seu nome era José. Morava no Jesus Me Deu. Na rua principal. Não sabia o número. Achava que não tinha numeração. O padrasto tinha celular. Mas também não sabia dizer o número. Tinha sido expulso de casa.   Mas podia voltar para dormir. Não era ladrão. Pegou a maçã por curiosidade. Nunca tinha comido uma. Chorava e pedia pela mãe. Queria ir para casa.

Na delegacia José era mais um menino de rua, pivete, curumim, garoto, menino em situação de risco, guri, curumim cheira-cola, flanelinha, pequeno, párvulo, pirralho, miúdo, menor, de menor, menor abandonado. Não faltam qualificações para José.

Todas equivocadas. José é apenas uma criança.

12 de outubro. Dia das crianças. Há muitos josés pelas ruas de Manaus. Não são meninos de rua. Estão nas ruas. Mas são crianças. Apenas crianças.

  


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 2/14

Zemaria Pinto

 

O escritor

José Maria Ferreira de Castro nasceu em 24 de maio de 1898, em Salgueiros, freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro, no norte de Portugal. Mais velho de quatro irmãos, perdeu o pai aos 8 anos. Aos 12 anos, veio para o Brasil, numa situação mal explicada e muito romanceada. Em páginas de memórias, declara que a viagem se dera pelo amor platônico a uma rapariga de 18 anos, com quem jamais trocara uma palavra (apud BRASIL, p. 15-24). Precisava mostrar à pequena o quanto era homem!

Em Belém, ficou sob os cuidados de um patrício, que tratou de livrar-se dele, mandando-o para o seringal Paraíso, no rio Madeira.

 

Como a sua idade não lhe permitia trabalhar nas rudes tarefas da colheita da borracha, ficou empregado no armazém aviador da roça. (BRASIL, p. 28)

 

Eram ainda os primeiros meses de 1911, não dava para prever o caos que se abateria sobre a região, pouco tempo depois, com a queda na exportação e na cotação da borracha.

Em outubro de 1914, o rapazola, então com 16 anos, desembarca de volta em Belém, com um folhetim – Criminoso por ambição – no saco de viagem. O que aconteceu naquele intervalo de 3 anos e 8 meses, no seringal Paraíso, não foi registrado em lugar algum. Na edição comemorativa dos 25 anos de A selva, em 1955, Ferreira de Castro insere uma “Pequena história de ‘A selva’” – e começa a narrativa no exato momento da partida do seringal:

 

Foi à uma hora da noite, a noite densa, quente e húmida de 28 de Outubro de 1914, que parti do seringal onde decorre este livro, lá longe, nas margens escalavradas do Madeira, que nenhuma estrela, então, alumiava. (CASTRO, 1989b, p. 17)

 

Parágrafos depois, ele diz que, do tempo ali passado,

 

não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir! (CASTRO, 1989b, p. 18)

 

Seu biógrafo registra na cronologia da vida e da obra do autor, depois de breve comentário sobre o ano de 1911, onde dá notícias de “suas primeiras tentativas literárias”:

 

1912-1913 – Vive em plena selva, empregado no armazém aviador do seringal, e continua a produzir contos e crónicas para pequenos jornais e revistas de vários estados do Brasil. Escreve o seu primeiro romance, Criminoso por ambição, cujo manuscrito copia e corrige mais de uma vez. (BRASIL, p. 136-137)

 

No ano de 1914, registra apenas a saída do seringal e o consequente regresso a Belém.

Como se depreende da leitura dessas notas, é no seringal Paraíso que o jovem escritor começa a construir seus mundos, suas verdades. Seu biógrafo, em vez de buscar a informação junto à fonte primária – o próprio biografado –, limita-se a dividir suas dúvidas com o incauto e decepcionado leitor:

 

Que romances teria lido o empregadito do armazém aviador do Paraíso, o imigrante desmunido, o adolescente transferido do cárcere estreito da sua aldeia serrana para a grande selva amazónica? (BRASIL, p. 32)

 

O escritor cearense Raimundo Magalhães Júnior, em panegírico dirigido ao autor português, em 1959, diz que o considera um autor brasileiro, e justifica:

 

Não é como a um escritor português que pretendo saudá-lo. É antes, como a um grande escritor brasileiro, tantos e tão fortes são os laços que unem Ferreira de Castro ao nosso país e às próprias letras brasileiras. Quem lhe conheça a biografia saberá, sem dúvida, que foi no Brasil que despertou para elas. Menino, ainda, de treze para catorze anos, rabiscou no seringal Paraíso, à margem do rio Madeira, suas primeiras tentativas literárias. Prisioneiro da floresta, rodeado pelo mistério da natureza tropical, foi no mundo de assombros da Amazônia que encontrou sua vocação. E de lá, de tão longe, mandou seus primeiros escritos não a um jornal português, mas a um mensário do Rio Grande do Sul. Escrevia no Brasil e eram leitores brasileiros os que primeiro haveriam de conhecer as suas produções. (apud BRASIL, p. 95)

 

Por tudo o que não se disse, conclui-se que o seringal Paraíso estava longe de ser o inferno recriado na sua versão literária. O desejo de evadir-se da selva tem uma razão óbvia: solidão. Acrescente-se ainda a distância de casa e dos seus, a rudeza do ambiente e das pessoas que iriam depois servir de modelo à ficção – diferentes da rudeza do ambiente e das pessoas que ele conhecera na vila de sua infância.

Uma outra nota cronológica aponta o fato mais importante do ano de 1918: aos 20 anos, já escritor publicado e jornalista conhecido, sócio do semanário Portugal, o que o torna muito popular na colônia lusitana de Belém, é convidado para ir a Manaus, onde passara, sete anos antes, incógnito, na terceira classe do navio Justo Chermont, que o levava ao seringal Paraíso.

 

Várias agremiações portuguesas de Manaus recebem-no festivamente e tornam-no seu sócio honorário. Homenageia-o o próprio governador do Estado, que fora médico em Humaitá, no rio Madeira, e o conhecera quando estava ainda no seringal. (BRASIL, p.137)

 

Baiano de Feira de Santana, o governador Pedro de Alcântara Bacelar fora prefeito de Humaitá. A ser verdadeira essa informação do conhecimento prévio, tem-se uma boa ideia do prestígio gozado pelo adolescente José Maria no seringal Paraíso. Sua origem portuguesa seria fonte de curiosidade, por certo. Mais tarde, Bacelar faria figuração no romance, em duas oportunidades: numa frase solta, entreouvida na viagem de ida ao seringal – “é pró Humaitá, onde tá o doutô Bacelá” (p. 39); e numa fala de Juca Tristão, proprietário do seringal Paraíso e algoz dos seringueiros, por quem é tratado com intimidade:

 

– Se foram para Humaitá, compadre Bacelar os mete na cadeia, com certeza. (p. 199)

 

Ao usar o mesmo nome para designar dois lugares distintos – um histórico, outro fictício –, o autor induz o leitor a confundir um e outro. Nas suas memórias jamais detalhadas, Paraíso é apenas o nome de uma localidade, no rio Madeira, onde o autor passa mais de três anos de sua formação, escrevendo muito e sofrendo de atroz solidão. Na criação literária, o nome Paraíso é uma ironia, um contraponto com o verdadeiro inferno que o autor criou para suas torturadas personagens. Para se ter uma ideia da absoluta falta de criatividade na nomenclatura do seringal, um recenseamento realizado em 1920, no Amazonas e no Acre, aponta que havia 44 (quarenta e quatro!) seringais chamados Paraíso (BENCHIMOL, p. 336).

O mesmo se observa quanto ao nome do navio que leva a personagem Alberto, o protagonista de A selva, ser o mesmo que levara o adolescente José Maria: Justo Chermont. Esse pretenso realismo induziu muitos leitores à tolice de confundir a verdade da ficção com a biografia do autor, tornando esta em mera ficção. Nos ocuparemos disso mais adiante.

Escritor de sucesso, traduzido em dezenas de idiomas, cotadíssimo para o Nobel por vários anos, Ferreira de Castro faleceu em 29 de junho de 1974, na cidade do Porto, em Portugal.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.

domingo, 11 de outubro de 2020

Manaus, amor e memória CDLXXXIV


Catraia.
Transporte coletivo, usado para atravessar igarapés,
quando Manaus tinha igarapés.

 

sábado, 10 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Dead Moon.
Luis Royo.


 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Bolero's Bar 10

 Meu mundo caiu 

Zemaria Pinto


A vida é um aprendizado, querida. Não quero a compaixão de ninguém. Tenho que sair dessa sozinha, me reinventando. Não sou a mesma de um mês atrás, mas também não serei a mesma daqui a um ano. Eu não caí sozinha, como de outras vezes. Se fosse, eu seguiria em frente: caiu, respira fundo, levanta. Não, desta vez a minha estrutura toda desmoronou. Mas tenho que transformar em gênese esse apocalipse. Não me pergunte como, pois estou aprendendo, errando no atacado para acertar no varejo, como diria minha avó. O onde é aqui. O quando é agora.

 

Meu mundo caiu (1958), de Maysa (Rio de Janeiro, 1936-1977). Samba-canção.

No Spotify, ouça a playlist Bolero’s Bar.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A poesia é necessária?

 Não havia o tempo em calendários

João de Jesus Paes Loureiro

 

Não havia o tempo em calendários

nas escrituras da cidade e das ilhas.

Não havia o tempo de sonhar

e tempo a trabalhar.

Tempo para ser

e tempo de não-ser.

Havia sim o tempo para o tempo,

pois o tempo era integral

para si mesmo.

Não havia tempo do real

fora do tempo imaginário.

Era o tempo diverso em um só tempo.

O tempo-aquele igual a aquele-tempo.

Não havia o tempo de plantar

e tempo de colher.

Tudo era o tempo

de colher a plantar.

E de plantar colhendo.

Tempo individido

sem tempo para isso

ou tempo para aquilo.

Era o tempo superposto ao tempo

e cada tempo era sempre

o tempo todo.

Tempo do ser e do não-ser.

Era um só tempo real-imaginário

enlaçando a si mesmo.

Tempo único.

O tempo

só.

Unicotempo.

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Fantasy Art - Galeria

Anne Pogoda.

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Feliz Círio

Pedro Lucas Lindoso

 

Os meus professores de História Geral, sempre que introduziam um evento histórico importante, analisavam as causas e as consequências do determinado fato histórico.

Os historiadores do futuro não terão dúvidas de que a causa principal da pandemia de 2020 foi um vírus tipo corona vindo da China. Quanto à origem e como se deu o primeiro contágio ainda está nebuloso. Quanto às consequências, essas tem sido muitas e de variada abrangência. Algumas afetaram ou afetam todos. Outras, somente determinado segmento.

O primeiro impacto foi o isolamento e a imposição da quarentena. Depois a suspensão das aulas escolares. O dia das mães em maio, segunda melhor data para o comércio, foi desastroso em termos de lucros. Muitas lojas começaram a falir. Junho foi horrível para quem gosta de festas juninas. O povo do Nordeste sofreu muito com o cancelamento das quadrilhas. O movimento de turistas por lá é tão expressivo quanto o nosso festival folclórico de Parintins, também suspenso.

Na minha opinião, nenhum desses eventos cancelados vai superar a tristeza do povo paraense em não ter o Círio. Desde já gostaria de expressar minha solidariedade aos nossos irmãos do Pará. Em especial aos fervorosos católicos de Belém.

Lembro-me que há muitos anos estava em Belém pela ocasião do Círio. É um evento tão importante quanto o Natal. As pessoas se cumprimentam mutuamente desejando Feliz Círio.

Faz muitos anos. Quando computadores ainda eram extremamente caros e não havia notebooks. Um jovem rapaz carregava uma maquete de um PC, feita de isopor, enquanto acompanhava a procissão. Era um agradecimento a Nossa Senhora de Nazaré. Aquele rapaz tinha certeza que havia conseguido o seu primeiro computador em razão de sua fé. Uma fé expressa na forma mais humana que se pode imaginar. Fé em razão de um pedido feito à uma Mãe. Nesse caso, feito à Mãe de Jesus, que também é nossa Mãe.

Certamente, passados mais de 30 anos desse fato, o jovem estará acompanhando o Círio por um computador mais moderno que aquele primeiro. Ou mesmo por um tablet ou celular.

 O Círio este ano não terá a sua procissão. Uma pena. Contudo, do fundo do meu coração, desejo a todos os paraenses e aos que têm fé em Nossa Senhora um Feliz Círio.