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Zemaria Pinto
Com
carinho, aos mestres Artemis Veiga, em memória, e Marcos Frederico Krüger.
A Amazônia
selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os
primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições e solenes visitas pastorais
rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas.
(Euclides
da Cunha)[1]
Literatura
e verdade
A literatura de invenção – poesia, ficção,
dramaturgia – é uma construção mental de autores-demiurgos: veicula verdades
criadas por entes que as manipulam de acordo com seus interesses e/ou vontades
individuais.
Mas o caráter do que é verdadeiro em
literatura passa antes pelo conceito aristotélico de verossimilhança – “da
mesma natureza do verdadeiro” –, estabelecendo limites entre a mera reprodução
da realidade, criticada por Platão, e a invenção, inculcando na obra uma
coerência interna, orgânica:
É claro, também,
que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas
quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da
necessidade. (ARISTÓTELES, p. 28)
Esqueçamos, pois, de qualquer conexão com
a moral, a lógica ou a metafísica, analisando a verdade da literatura a partir
deste conceito milenar.
Antes, porém, precisamos transpor um
obstáculo: a multiplicidade de significados que a obra de arte pode transmitir,
para além das intenções do ente-autor. Esse embate – verossimilhança versus plurissignificação – pode ser
resolvido, em parte, se aceitarmos que cada indivíduo-leitor tem um
entendimento soberano sobre a obra que analisa. Logo, na literatura, verdade é
entendimento, com seus diversos matizes, e não se confundirá jamais com
conhecimento.
Portanto, é possível afirmar que a verdade
da literatura não pode se tornar um dogma, como não pode ser entendida, nunca,
de forma absoluta, inquestionável. Pelo contrário, a verdade da literatura é
maleável, elástica, polimorfa – e funda-se essencialmente em dúvidas.
Isso leva a que a recepção às obras também
se modifique com o tempo: obras subvalorizadas são ressignificadas; obras
consagradas caem no esquecimento – ou porque eram supervalorizadas ou porque
simplesmente envelheceram. O cânone é uma passarela do inferno. Aliás, aceitar
a existência de um cânone é negar a verdade mutante da literatura. Para efeito
didático, contudo, podemos aceitar um “cânone atual”, intercambiável,
absolutamente provisório.
Esta brevíssima introdução visa preparar o
leitor para a análise do livro A selva, de Ferreira de Castro, que, em
2020, completa 90 anos de publicação. Um livro supervalorizado, de um autor
apenas mediano, cuja permanência hoje dá-se mais pelos aspectos históricos
envolvidos – especialmente, para nós, amazônidas – do que pela sua excelência
literária.