Amigos do Fingidor

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 1/14

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Zemaria Pinto

 

Com carinho, aos mestres Artemis Veiga, em memória, e Marcos Frederico Krüger.

 

 

A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas.

(Euclides da Cunha)[1]

 

Literatura e verdade

A literatura de invenção – poesia, ficção, dramaturgia – é uma construção mental de autores-demiurgos: veicula verdades criadas por entes que as manipulam de acordo com seus interesses e/ou vontades individuais.

Mas o caráter do que é verdadeiro em literatura passa antes pelo conceito aristotélico de verossimilhança – “da mesma natureza do verdadeiro” –, estabelecendo limites entre a mera reprodução da realidade, criticada por Platão, e a invenção, inculcando na obra uma coerência interna, orgânica:

 

É claro, também, que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. (ARISTÓTELES, p. 28)

 

Esqueçamos, pois, de qualquer conexão com a moral, a lógica ou a metafísica, analisando a verdade da literatura a partir deste conceito milenar.

Antes, porém, precisamos transpor um obstáculo: a multiplicidade de significados que a obra de arte pode transmitir, para além das intenções do ente-autor. Esse embate – verossimilhança versus plurissignificação – pode ser resolvido, em parte, se aceitarmos que cada indivíduo-leitor tem um entendimento soberano sobre a obra que analisa. Logo, na literatura, verdade é entendimento, com seus diversos matizes, e não se confundirá jamais com conhecimento.

Portanto, é possível afirmar que a verdade da literatura não pode se tornar um dogma, como não pode ser entendida, nunca, de forma absoluta, inquestionável. Pelo contrário, a verdade da literatura é maleável, elástica, polimorfa – e funda-se essencialmente em dúvidas.

Isso leva a que a recepção às obras também se modifique com o tempo: obras subvalorizadas são ressignificadas; obras consagradas caem no esquecimento – ou porque eram supervalorizadas ou porque simplesmente envelheceram. O cânone é uma passarela do inferno. Aliás, aceitar a existência de um cânone é negar a verdade mutante da literatura. Para efeito didático, contudo, podemos aceitar um “cânone atual”, intercambiável, absolutamente provisório.

Esta brevíssima introdução visa preparar o leitor para a análise do livro A selva, de Ferreira de Castro, que, em 2020, completa 90 anos de publicação. Um livro supervalorizado, de um autor apenas mediano, cuja permanência hoje dá-se mais pelos aspectos históricos envolvidos – especialmente, para nós, amazônidas – do que pela sua excelência literária.


Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 


[1] CUNHA, 2019, p. 52.