Zemaria Pinto
O
escritor
José Maria Ferreira de Castro nasceu em 24
de maio de 1898, em Salgueiros, freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de
Azeméis, distrito de Aveiro, no norte de Portugal. Mais velho de quatro irmãos,
perdeu o pai aos 8 anos. Aos 12 anos, veio para o Brasil, numa situação mal
explicada e muito romanceada. Em páginas de memórias, declara que a viagem se
dera pelo amor platônico a uma rapariga de 18 anos, com quem jamais trocara uma
palavra (apud BRASIL, p. 15-24). Precisava mostrar à pequena o quanto
era homem!
Em Belém, ficou sob os cuidados de um
patrício, que tratou de livrar-se dele, mandando-o para o seringal Paraíso, no
rio Madeira.
Como a sua idade
não lhe permitia trabalhar nas rudes tarefas da colheita da borracha, ficou
empregado no armazém aviador da roça. (BRASIL, p. 28)
Eram ainda os primeiros meses de 1911, não
dava para prever o caos que se abateria sobre a região, pouco tempo depois, com
a queda na exportação e na cotação da borracha.
Em outubro de 1914, o rapazola, então com
16 anos, desembarca de volta em Belém, com um folhetim – Criminoso por
ambição – no saco de viagem. O que aconteceu naquele intervalo de 3 anos e
8 meses, no seringal Paraíso, não foi registrado em lugar algum. Na edição
comemorativa dos 25 anos de A selva,
em 1955, Ferreira de Castro insere uma “Pequena história de ‘A selva’” – e começa a narrativa no
exato momento da partida do seringal:
Foi à uma hora da
noite, a noite densa, quente e húmida de 28 de Outubro de 1914, que parti do
seringal onde decorre este livro, lá longe, nas margens escalavradas do
Madeira, que nenhuma estrela, então, alumiava. (CASTRO, 1989b, p. 17)
Parágrafos depois, ele diz que, do tempo
ali passado,
não houve um só
dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar
um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir! (CASTRO, 1989b, p. 18)
Seu biógrafo registra na cronologia da
vida e da obra do autor, depois de breve comentário sobre o ano de 1911, onde
dá notícias de “suas primeiras tentativas literárias”:
1912-1913 – Vive
em plena selva, empregado no armazém aviador do seringal, e continua a produzir
contos e crónicas para pequenos jornais e revistas de vários estados do Brasil.
Escreve o seu primeiro romance, Criminoso por ambição, cujo manuscrito
copia e corrige mais de uma vez. (BRASIL, p. 136-137)
No ano de 1914, registra apenas a saída do
seringal e o consequente regresso a Belém.
Como se depreende da leitura dessas notas,
é no seringal Paraíso que o jovem escritor começa a construir seus mundos, suas
verdades. Seu biógrafo, em vez de buscar a informação junto à fonte primária –
o próprio biografado –, limita-se a dividir suas dúvidas com o incauto e
decepcionado leitor:
Que romances teria
lido o empregadito do armazém aviador do Paraíso, o imigrante desmunido, o
adolescente transferido do cárcere estreito da sua aldeia serrana para a grande
selva amazónica? (BRASIL, p. 32)
O escritor cearense Raimundo Magalhães
Júnior, em panegírico dirigido ao autor português, em 1959, diz que o considera
um autor brasileiro, e justifica:
Não é como a um
escritor português que pretendo saudá-lo. É antes, como a um grande escritor
brasileiro, tantos e tão fortes são os laços que unem Ferreira de Castro ao
nosso país e às próprias letras brasileiras. Quem lhe conheça a biografia
saberá, sem dúvida, que foi no Brasil que despertou para elas. Menino, ainda,
de treze para catorze anos, rabiscou no seringal Paraíso, à margem do rio
Madeira, suas primeiras tentativas literárias. Prisioneiro da floresta, rodeado
pelo mistério da natureza tropical, foi no mundo de assombros da Amazônia que
encontrou sua vocação. E de lá, de tão longe, mandou seus primeiros escritos
não a um jornal português, mas a um mensário do Rio Grande do Sul. Escrevia no
Brasil e eram leitores brasileiros os que primeiro haveriam de conhecer as suas
produções. (apud BRASIL, p. 95)
Por tudo o que não se disse, conclui-se
que o seringal Paraíso estava longe de ser o inferno recriado na sua versão
literária. O desejo de evadir-se da selva tem uma razão óbvia: solidão. Acrescente-se
ainda a distância de casa e dos seus, a rudeza do ambiente e das pessoas que
iriam depois servir de modelo à ficção – diferentes da rudeza do ambiente e das
pessoas que ele conhecera na vila de sua infância.
Uma outra nota cronológica aponta o fato
mais importante do ano de 1918: aos 20 anos, já escritor publicado e jornalista
conhecido, sócio do semanário Portugal, o que o torna muito popular na
colônia lusitana de Belém, é convidado para ir a Manaus, onde passara, sete
anos antes, incógnito, na terceira classe do navio Justo Chermont, que o levava
ao seringal Paraíso.
Várias agremiações
portuguesas de Manaus recebem-no festivamente e tornam-no seu sócio honorário.
Homenageia-o o próprio governador do Estado, que fora médico em Humaitá, no rio
Madeira, e o conhecera quando estava ainda no seringal. (BRASIL, p.137)
Baiano de Feira de Santana, o governador
Pedro de Alcântara Bacelar fora prefeito de Humaitá. A ser verdadeira essa
informação do conhecimento prévio, tem-se uma boa ideia do prestígio gozado
pelo adolescente José Maria no seringal Paraíso. Sua origem portuguesa seria
fonte de curiosidade, por certo. Mais tarde, Bacelar faria figuração no romance,
em duas oportunidades: numa frase solta, entreouvida na viagem de ida ao
seringal – “é pró Humaitá, onde tá o doutô Bacelá” (p. 39); e numa fala de Juca
Tristão, proprietário do seringal Paraíso e algoz dos seringueiros, por quem é
tratado com intimidade:
– Se foram para
Humaitá, compadre Bacelar os mete na cadeia, com certeza. (p. 199)
Ao usar o mesmo nome para designar dois
lugares distintos – um histórico, outro fictício –, o autor induz o leitor a
confundir um e outro. Nas suas memórias jamais detalhadas, Paraíso é apenas o
nome de uma localidade, no rio Madeira, onde o autor passa mais de três anos de
sua formação, escrevendo muito e sofrendo de atroz solidão. Na criação
literária, o nome Paraíso é uma ironia, um contraponto com o verdadeiro inferno
que o autor criou para suas torturadas personagens. Para se ter uma ideia da
absoluta falta de criatividade na nomenclatura do seringal, um recenseamento
realizado em 1920, no Amazonas e no Acre, aponta que havia 44 (quarenta e
quatro!) seringais chamados Paraíso (BENCHIMOL, p. 336).
O mesmo se observa quanto ao nome do navio
que leva a personagem Alberto, o protagonista de A selva, ser o mesmo
que levara o adolescente José Maria: Justo Chermont. Esse pretenso realismo induziu
muitos leitores à tolice de confundir a verdade da ficção com a biografia do autor,
tornando esta em mera ficção. Nos ocuparemos disso mais adiante.
Escritor de sucesso, traduzido em dezenas
de idiomas, cotadíssimo para o Nobel por vários anos, Ferreira de Castro
faleceu em 29 de junho de 1974, na cidade do Porto, em Portugal.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às
segundas-feiras.