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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 2/14

Zemaria Pinto

 

O escritor

José Maria Ferreira de Castro nasceu em 24 de maio de 1898, em Salgueiros, freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro, no norte de Portugal. Mais velho de quatro irmãos, perdeu o pai aos 8 anos. Aos 12 anos, veio para o Brasil, numa situação mal explicada e muito romanceada. Em páginas de memórias, declara que a viagem se dera pelo amor platônico a uma rapariga de 18 anos, com quem jamais trocara uma palavra (apud BRASIL, p. 15-24). Precisava mostrar à pequena o quanto era homem!

Em Belém, ficou sob os cuidados de um patrício, que tratou de livrar-se dele, mandando-o para o seringal Paraíso, no rio Madeira.

 

Como a sua idade não lhe permitia trabalhar nas rudes tarefas da colheita da borracha, ficou empregado no armazém aviador da roça. (BRASIL, p. 28)

 

Eram ainda os primeiros meses de 1911, não dava para prever o caos que se abateria sobre a região, pouco tempo depois, com a queda na exportação e na cotação da borracha.

Em outubro de 1914, o rapazola, então com 16 anos, desembarca de volta em Belém, com um folhetim – Criminoso por ambição – no saco de viagem. O que aconteceu naquele intervalo de 3 anos e 8 meses, no seringal Paraíso, não foi registrado em lugar algum. Na edição comemorativa dos 25 anos de A selva, em 1955, Ferreira de Castro insere uma “Pequena história de ‘A selva’” – e começa a narrativa no exato momento da partida do seringal:

 

Foi à uma hora da noite, a noite densa, quente e húmida de 28 de Outubro de 1914, que parti do seringal onde decorre este livro, lá longe, nas margens escalavradas do Madeira, que nenhuma estrela, então, alumiava. (CASTRO, 1989b, p. 17)

 

Parágrafos depois, ele diz que, do tempo ali passado,

 

não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir! (CASTRO, 1989b, p. 18)

 

Seu biógrafo registra na cronologia da vida e da obra do autor, depois de breve comentário sobre o ano de 1911, onde dá notícias de “suas primeiras tentativas literárias”:

 

1912-1913 – Vive em plena selva, empregado no armazém aviador do seringal, e continua a produzir contos e crónicas para pequenos jornais e revistas de vários estados do Brasil. Escreve o seu primeiro romance, Criminoso por ambição, cujo manuscrito copia e corrige mais de uma vez. (BRASIL, p. 136-137)

 

No ano de 1914, registra apenas a saída do seringal e o consequente regresso a Belém.

Como se depreende da leitura dessas notas, é no seringal Paraíso que o jovem escritor começa a construir seus mundos, suas verdades. Seu biógrafo, em vez de buscar a informação junto à fonte primária – o próprio biografado –, limita-se a dividir suas dúvidas com o incauto e decepcionado leitor:

 

Que romances teria lido o empregadito do armazém aviador do Paraíso, o imigrante desmunido, o adolescente transferido do cárcere estreito da sua aldeia serrana para a grande selva amazónica? (BRASIL, p. 32)

 

O escritor cearense Raimundo Magalhães Júnior, em panegírico dirigido ao autor português, em 1959, diz que o considera um autor brasileiro, e justifica:

 

Não é como a um escritor português que pretendo saudá-lo. É antes, como a um grande escritor brasileiro, tantos e tão fortes são os laços que unem Ferreira de Castro ao nosso país e às próprias letras brasileiras. Quem lhe conheça a biografia saberá, sem dúvida, que foi no Brasil que despertou para elas. Menino, ainda, de treze para catorze anos, rabiscou no seringal Paraíso, à margem do rio Madeira, suas primeiras tentativas literárias. Prisioneiro da floresta, rodeado pelo mistério da natureza tropical, foi no mundo de assombros da Amazônia que encontrou sua vocação. E de lá, de tão longe, mandou seus primeiros escritos não a um jornal português, mas a um mensário do Rio Grande do Sul. Escrevia no Brasil e eram leitores brasileiros os que primeiro haveriam de conhecer as suas produções. (apud BRASIL, p. 95)

 

Por tudo o que não se disse, conclui-se que o seringal Paraíso estava longe de ser o inferno recriado na sua versão literária. O desejo de evadir-se da selva tem uma razão óbvia: solidão. Acrescente-se ainda a distância de casa e dos seus, a rudeza do ambiente e das pessoas que iriam depois servir de modelo à ficção – diferentes da rudeza do ambiente e das pessoas que ele conhecera na vila de sua infância.

Uma outra nota cronológica aponta o fato mais importante do ano de 1918: aos 20 anos, já escritor publicado e jornalista conhecido, sócio do semanário Portugal, o que o torna muito popular na colônia lusitana de Belém, é convidado para ir a Manaus, onde passara, sete anos antes, incógnito, na terceira classe do navio Justo Chermont, que o levava ao seringal Paraíso.

 

Várias agremiações portuguesas de Manaus recebem-no festivamente e tornam-no seu sócio honorário. Homenageia-o o próprio governador do Estado, que fora médico em Humaitá, no rio Madeira, e o conhecera quando estava ainda no seringal. (BRASIL, p.137)

 

Baiano de Feira de Santana, o governador Pedro de Alcântara Bacelar fora prefeito de Humaitá. A ser verdadeira essa informação do conhecimento prévio, tem-se uma boa ideia do prestígio gozado pelo adolescente José Maria no seringal Paraíso. Sua origem portuguesa seria fonte de curiosidade, por certo. Mais tarde, Bacelar faria figuração no romance, em duas oportunidades: numa frase solta, entreouvida na viagem de ida ao seringal – “é pró Humaitá, onde tá o doutô Bacelá” (p. 39); e numa fala de Juca Tristão, proprietário do seringal Paraíso e algoz dos seringueiros, por quem é tratado com intimidade:

 

– Se foram para Humaitá, compadre Bacelar os mete na cadeia, com certeza. (p. 199)

 

Ao usar o mesmo nome para designar dois lugares distintos – um histórico, outro fictício –, o autor induz o leitor a confundir um e outro. Nas suas memórias jamais detalhadas, Paraíso é apenas o nome de uma localidade, no rio Madeira, onde o autor passa mais de três anos de sua formação, escrevendo muito e sofrendo de atroz solidão. Na criação literária, o nome Paraíso é uma ironia, um contraponto com o verdadeiro inferno que o autor criou para suas torturadas personagens. Para se ter uma ideia da absoluta falta de criatividade na nomenclatura do seringal, um recenseamento realizado em 1920, no Amazonas e no Acre, aponta que havia 44 (quarenta e quatro!) seringais chamados Paraíso (BENCHIMOL, p. 336).

O mesmo se observa quanto ao nome do navio que leva a personagem Alberto, o protagonista de A selva, ser o mesmo que levara o adolescente José Maria: Justo Chermont. Esse pretenso realismo induziu muitos leitores à tolice de confundir a verdade da ficção com a biografia do autor, tornando esta em mera ficção. Nos ocuparemos disso mais adiante.

Escritor de sucesso, traduzido em dezenas de idiomas, cotadíssimo para o Nobel por vários anos, Ferreira de Castro faleceu em 29 de junho de 1974, na cidade do Porto, em Portugal.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.