Amigos do Fingidor

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 4/14

 

Zemaria Pinto

 

Autobiografia: algumas impossibilidades e um paradoxo

Afinal, o que é um texto autobiográfico? A visão etimológica responde de bate-pronto: é a narrativa de uma vida, escrita pelo próprio autor. Por definição, opõe-se à biografia simplesmente pela troca de narrador – ou melhor, pela substituição do autor: o biógrafo mantém-se distante do biografado, atendo-se a documentos, registros passados e depoimentos.

Nessa perspectiva de um narrador extradiegético, temos a biografia romanceada, que, como se depreende do adjetivo, é uma ficção criada a partir de uma personagem histórica. Isso nos leva a um conceito recente: a autoficção – recortes ficcionais da vida de um autor, escritos por ele mesmo, ou seja: uma falsa autobiografia. O conceito pode ser recente, mas a prática é muito antiga. A autoficção, assim como a biografia romanceada, são apenas subespécies da ficção.     

A categoria roman à clef, romance em que personagens e acontecimentos reais aparecem sob nomes fictícios, também está descartada, porque, além da confusão que se faz entre Alberto e o autor, nenhuma outra personagem e nem mesmo os acontecimentos da trama encontram similar na realidade.

Voltemos ao texto autobiográfico. Além da autobiografia propriamente, há pelo menos três tipos de textos em que o autor pode dar notícia de si: diário, confissões, memórias. O mais objetivo deles é o diário, onde se registram cronologicamente os acontecimentos de um período, relativos, por exemplo, a uma viagem (O turista aprendiz, de Mário de Andrade), um fato histórico (O diário de Anne Frank, o horror da Segunda Guerra Mundial visto por uma adolescente) ou reflexões diversas (Diários, de Lúcio Cardoso, e Cadernos de Lanzarote, de José Saramago).

As confissões têm por objetivo mostrar uma experiência mística ou externar questionamentos de ordem religiosa. Trata-se, portanto, de um recorte autobiográfico, mas sem preocupação cronológica, e com uma finalidade específica. Confissões, de Santo Agostinho, e Uma confissão, de Liev Tolstói, são exemplos da forma.

Por fim, as memórias, a mais literária das formas biográficas, situam-se em um ponto fluido entre o testemunho histórico e o relato ficcional – não por opção do autor, mas porque o mecanismo que aciona as memórias é muito complexo: lembrança-esquecimento; memória afetiva, memória seletiva; o inconsciente.

 

Distorcido pela memória, o passado transfigura-se como se parecesse inventado, uma vez que o intuito reside menos no pacto autobiográfico estrito do que na reconstituição das lembranças que restaram do fluxo e refluxo dos dias. (MOISÉS, 2004, p. 280)

 

A literatura brasileira tem algumas memórias entre seus clássicos, como Minha formação, de Joaquim Nabuco, Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, Baú de ossos, de Pedro Nava, entre outros.   

A selva em nenhum momento aproxima-se de qualquer uma das formas autobiográficas citadas: não é autobiografia, não é diário, não é confissão, não são memórias. Parece que ainda em vida do autor fazia-se essa confusão, tanto que, 25 anos depois de a ter publicado, ele esclarece que a trama nada tem a ver com sua história pessoal, embora o cenário fosse seu velho conhecido:

 

(...) pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto que algumas noites (sic) suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1989b, p. 20)

 

Pode-se especular que os episódios narrados tenham acontecido de fato e mesmo não os tendo vivido diretamente o autor ficou sabendo deles, quando de sua passagem no seringal. É uma possibilidade, mas em nenhum momento ele admite isso.

É tácito que a literatura é gestada na experiência do autor: seja de vida, de leituras ou de ouvir contar. Mas o que dá a liga – transformando o heterogêneo em homogêneo – é a invenção. Sem invenção não existe literatura.

Convivamos, então, com o paradoxo: A selva é apenas uma ficção, ainda que o autor tenha vivenciado previamente os fatos que ele inventaria depois.

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.