Zemaria Pinto
Autobiografia:
algumas impossibilidades e um paradoxo
Afinal, o que é um texto autobiográfico? A
visão etimológica responde de bate-pronto: é a narrativa de uma vida, escrita
pelo próprio autor. Por definição, opõe-se à biografia simplesmente pela troca
de narrador – ou melhor, pela substituição do autor: o biógrafo mantém-se
distante do biografado, atendo-se a documentos, registros passados e
depoimentos.
Nessa perspectiva de um narrador
extradiegético, temos a biografia romanceada, que, como se depreende do
adjetivo, é uma ficção criada a partir de uma personagem histórica. Isso nos
leva a um conceito recente: a autoficção – recortes ficcionais da vida de um autor,
escritos por ele mesmo, ou seja: uma falsa autobiografia. O conceito pode ser
recente, mas a prática é muito antiga. A autoficção, assim como a biografia
romanceada, são apenas subespécies da ficção.
A categoria roman à clef, romance
em que personagens e acontecimentos reais aparecem sob nomes fictícios, também
está descartada, porque, além da confusão que se faz entre Alberto e o autor,
nenhuma outra personagem e nem mesmo os acontecimentos da trama encontram
similar na realidade.
Voltemos ao texto autobiográfico. Além da
autobiografia propriamente, há pelo menos três tipos de textos em que o autor
pode dar notícia de si: diário, confissões, memórias. O mais objetivo deles é o
diário, onde se registram cronologicamente os acontecimentos de um período, relativos,
por exemplo, a uma viagem (O turista aprendiz, de Mário de Andrade), um fato
histórico (O diário de Anne Frank, o horror da Segunda Guerra Mundial
visto por uma adolescente) ou reflexões diversas (Diários, de Lúcio Cardoso,
e Cadernos de Lanzarote, de José Saramago).
As confissões têm por objetivo mostrar uma
experiência mística ou externar questionamentos de ordem religiosa. Trata-se,
portanto, de um recorte autobiográfico, mas sem preocupação cronológica, e com
uma finalidade específica. Confissões, de Santo Agostinho, e Uma
confissão, de Liev Tolstói, são exemplos da forma.
Por fim, as memórias, a mais literária das
formas biográficas, situam-se em um ponto fluido entre o testemunho histórico e
o relato ficcional – não por opção do autor, mas porque o mecanismo que aciona
as memórias é muito complexo: lembrança-esquecimento; memória afetiva, memória
seletiva; o inconsciente.
Distorcido pela
memória, o passado transfigura-se como se parecesse inventado, uma vez que o
intuito reside menos no pacto autobiográfico estrito do que na reconstituição
das lembranças que restaram do fluxo e refluxo dos dias. (MOISÉS, 2004, p. 280)
A literatura brasileira tem algumas
memórias entre seus clássicos, como Minha formação, de Joaquim Nabuco, Infância
e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, Baú de ossos, de
Pedro Nava, entre outros.
A selva em nenhum momento
aproxima-se de qualquer uma das formas autobiográficas citadas: não é
autobiografia, não é diário, não é confissão, não são memórias. Parece que
ainda em vida do autor fazia-se essa confusão, tanto que, 25 anos depois de a
ter publicado, ele esclarece que a trama nada tem a ver com sua história
pessoal, embora o cenário fosse seu velho conhecido:
(...) pois se é
verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é
menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido
dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto que algumas noites (sic)
suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu
próprio criara. (CASTRO, 1989b, p. 20)
Pode-se especular que os episódios
narrados tenham acontecido de fato e mesmo não os tendo vivido diretamente o
autor ficou sabendo deles, quando de sua passagem no seringal. É uma
possibilidade, mas em nenhum momento ele admite isso.
É tácito que a literatura é gestada na
experiência do autor: seja de vida, de leituras ou de ouvir contar. Mas o que
dá a liga – transformando o heterogêneo em homogêneo – é a invenção. Sem
invenção não existe literatura.
Convivamos, então, com o paradoxo: A selva
é apenas uma ficção, ainda que o autor tenha vivenciado previamente os fatos
que ele inventaria depois.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às
segundas-feiras.
Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.