Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Leitura dramática: Estrela de Belém, uma jornada ao ventre da floresta





Estrela de Belém, uma jornada ao ventre da floresta, nasceu de uma demanda da prefeitura de Santa Isabel do Rio Negro, que está com uma forte atuação na área cultural, a cargo de Bosco das Letras. A ideia era montar um auto de natal, com cores regionais, de modo a proporcionar a identidade da população local com a atividade dramática. O diretor Nonato Tavares foi o encarregado de arregimentar o necessário para viabilizar a solicitação. Tavares contatou com o dramaturgo Zemaria Pinto, que aceitou de pronto o desafio. Detalhe: o tempo era muito exíguo, pois o segundo semestre do ano já estava em curso. Com a primeira parte do texto pronto, o diretor viajou a Santa Isabel, para a escolha de elenco e local da encenação. Infelizmente, entretanto, o projeto não vingou. Não para este ano, pelo menos. Com o texto completo, Nonato e Zemaria resolveram mostrar ao público o resultado do trabalho na forma de leitura do texto. Assim, no próximo sábado, 2 de dezembro, no MUSA do Largo, o diretor e o autor, mais doze atores, estarão promovendo a leitura do auto de natal Estrela de Belém, uma jornada ao ventre da floresta.
A peça divide-se em duas partes: “A viagem” e “O encontro”. A primeira parte se passa dentro do barco apropriadamente chamado “Estrela de Belém”, aquela que, segundo a tradição cristã, guiou os reis magos até a manjedoura onde nascera Jesus. Nesse barco viajam vários personagens. A maioria vai para Santa Isabel do Rio Negro sem saber bem a razão. Começam tensos, mas aos poucos vai se instalando um clima de harmonia dentro do barco, até a chegada à cidade.
A segunda parte mostra o encontro dos viajantes com representantes da população local: o pajé Coaraci e o casal de índios José e Maria, pais da pequena Maria de Jesus. Os nomes dos pais e da criança têm relação clara com o natal; porém, a intenção do texto é passar ideias de valores que vão muito além das religiões: valores humanos, aceitos por todos aqueles que acreditam que o mundo pode ser um lugar de paz entre os povos e entre os indivíduos. Os viajantes fazem oferendas à pequena Jesus e a jovem Manu transforma as falas em canções.
Para quem acompanha a tradição dramática brasileira, o autor, Zemaria Pinto, explica que utilizou a estrutura de Morte e vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, publicado em 1955, tanto na divisão em duas partes (viagem e encontro) quanto na forma poemática. Mas enquanto João Cabral faz de seu poema um libelo pela reforma agrária, Zemaria coloca seus personagens no centro dos problemas mais imediatos do século XXI: depressão, solidão, abusos sexuais, fragilização da estrutura familiar etc. Mas a chama da esperança é mantida acesa, com o nascimento de Maria de Jesus – uma alegoria da renovação da vida e da valorização da mulher na sociedade deste novo século.     
(release) 


Lembranças da Vivizinha e do pai


João Bosco Botelho


Mais de meio século depois, lembro-me do que penso ter sido o mais importante episódio da minha iniciação literária, que culminou com a descoberta de Capitu, personagem imortal de Machado de Assis. A minha memória aviva-se expondo com suavidade o espaço-tempo onde esses acontecimentos se iniciaram: o Colégio D. Pedro II, em Manaus, e empurram-me para março de 1960.
A edificação quadrilátera do Colégio D. Pedro II, composta de dois andares e um subsolo, no sentido sul-norte, com amplo pátio interno, possibilitava manter a circulação de ar capaz de amenizar o calor tropical. A sala 201, na ala leste, no segundo andar, aquecida pelo sol da manhã, refrescava-se pelo vento morno vindo das três largas janelas, voltadas à avenida 7 de Setembro. 
Nessa sala, sentado na quinta fila, próxima da porta, nos primeiros dias de aula, ainda explodindo de orgulho por ter sido aprovado no exame de admissão, eu vi pela primeira vez a gorda e simpática professora de Canto Orfeônico, a Vivizinha. Ela entrou na sala, passou ao meu lado, farfalhando a saia rodada multicolorida, blusa de cambraia de linho, bordada com motivos florais, e os cabelos grisalhos impecavelmente arrumados num coque.  Após chamar nominalmente cada um dos trinta alunos, apresentando um leve tremor ritmado da face e das mãos, explicou que estava substituindo o adoentado professor de português.
Então, a turma de adolescentes, pouco interessada, ouviu a mestra falar sobre a sonoridade da leitura.  Para que pudéssemos entender como é possível ouvir sons quando lemos, após dividir a turma em cinco grupos, Vivizinha vaticinou: ─ Vocês lerão Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis, e cada grupo fará o resumo, que será apresentado na aula da próxima semana. Seguiu-se dramático mal-estar, olhávamos para os lados e buscávamos o apoio que não chegou. Fora da assídua leitura do Mandrake e do Fantasma, nunca havia lido outro livro. Não tinha a menor ideia de quem era Machado de Assis.
Ao pedir silêncio e acalmar os mais inquietos, Vivizinha interferiu na hora certa e com a bondade requerida pela ocasião. Com o Dom Casmurro na mão trêmula, explicou lentamente o que representava a obra romanesca. Ainda sem ser levada a sério, dissertou sobre o papel do narrador, como era possível o autor escrever na primeira ou na terceira pessoa, os personagens, o ambiente, a ação e a ligação entre eles. Ninguém compreendeu nada! Mais uma vez, a mestra pediu silêncio. Com a voz melodiosa, sem conseguir esconder o tremor facial, iniciou a leitura de Dom Casmurro, no trecho onde o Machado explica aos leitores de onde apareceu o título, tanto o Dom quanto o Casmurro. De tempos em tempos, Vivizinha ressaltava a genialidade do autor no uso preciso das palavras.
Quando a campainha tocou indicando o fim do segundo tempo, significou o alívio salvador. Mas a tarefa estava posta e valia nota. Ninguém ousaria desobedecer.
No almoço, na minha casa, pontualmente às 12 horas, com toda a família reunida, em torno da grande mesa quadrilátera, eu expliquei ao meu pai que precisava comprar o tal livro de Machado de Assis.  Os seus olhos azuis claros olharam-me atentamente e disse-me que eu encontraria o Dom Casmurro numa determinada prateleira, da biblioteca dele, onde estava a coleção de Machado de Assis. Com a família atenta, o meu pai perguntou por que, eu expliquei a tarefa do impertinente resumo e, imediatamente, ofereceu-se para ajudar. Maravilhado, aceitei. Ele sugeriu que, após a leitura, conversaríamos no sábado.
Logo após o almoço, a abertura das portas de vidro lapidado nas extremidades da enorme estante descortinou-me outro mundo. As centenas de livros ocupavam as seis prateleiras, mas encontrei facilmente a coleção machadiana e o Dom Casmurro.
A leitura de Dom Casmurro terminou dois dias depois, sem o entusiasmo sentido nas revistas do Fantasma e do Mandrake, ambos prendendo os bandidos, mas, eu li, com repetidas consultas ao dicionário, tornando a obrigação escolar mais cansativa.
No sábado, no meio da manhã, encontrei o meu pai na biblioteca, sentado à grande mesa de mogno preto. Aquela manhã memorável, pouco a pouco, tornou-se deslumbrante pela surpresa de como o meu pai ajudava-me a redigir o resumo, trazendo o drama: afinal, a Capitu teria sido ou não infiel ao marido apaixonado? Então, naquela hora, ouvindo-o, percebi a mágica sonoridade da linguagem escrita!
Sem esforço, eu ouvi a agonia de Bentinho ao desconfiar da traição de Capitu! O mundo da imaginação estava, definitivamente, descortinado na minha história de vida!
Na aula seguinte, ainda substituindo o professor de português, a inesquecível Vivizinha coordenou, com impressionante entusiasmo o debate literário. Os dois tempos de aulas foram insuficientes para conter o confronto do imaginário dos adolescentes, alguns enaltecendo, outros condenando a Capitu.
As duas aulas de Vivizinha marcaram a minha escolaridade. Mais de meio século depois ao ousar romancear, compreendi que a didática da bondosa professora e a do meu pai havia moldado o meu rito de passagem das histórias em quadrinhos para o insuperável Machado de Assis.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Waiting for battle.
Raul Cruz.


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Cores da vida


Pedro Lucas Lindoso


Neurocientistas explicam que cores não existem em si mesmas. Resultam de uma função cognitiva que acontece no cérebro e nos olhos humanos ao decifrar a realidade.
Meu pai gostava muito do amarelo. Coincidentemente, um lindo ipê amarelo floresceu perto de seu túmulo, no Cemitério Campo da Esperança, em Brasília.
Eu não tenho uma cor favorita. Sou torcedor do boi Garantido, mas não me recuso em usar a linda camisa azul carinhosamente comprada pela minha esposa Vera. Um terno azul sempre é muito estiloso. Uma linda mulher jovem num vestido vermelho é sensacional. Gosto muito do bege para roupas, mas jamais teria um carro dessa cor.
Há pessoas que abominam determinadas cores por razões políticas ou ideológicas. Lamentável. Há ainda os times de futebol com suas cores e torcidas. E ainda, claro, as cores das seleções dos países que se enfrentam nas copas mundiais. Seriam os jogos de futebol um simulacro moderno das batalhas tribais dos homens primitivos? Com a palavra os antropólogos.
O uso das cores e suas contradições. Penso que a Coca-Cola com sua cor vermelha reluzente simboliza com perfeição o capitalismo. Daí o contraste com as bandeiras vermelhas dos partidos socialistas.
Com o país dividido, alguns cidadãos que usavam a camisa da seleção em jogos do Brasil dizem que estão constrangidos em face ao uso político ideológico da nossa camisa canarinho. De outra banda, há os que sugerem que o Papai Noel apareça no Natal de verde-amarelo, abandonando a roupa vermelha. Deplorável, repita-se.
Às vezes penso que os neurocientistas estão certos. Desde que conheci minha esposa, amiga e companheira Vera, há mais de 35 anos, as cores em minha vida se tornaram mais brilhantes. Mais definidas e precisas.
Entretanto, ao observar amorosamente o tom azulado dos olhos de minha netinha, Maria Luísa, não posso concordar com a assertiva de que as cores não existam.
E agradeço ao Criador do Universo que me possibilita, por função cognitiva ou não, por meio dos meus olhos perfeitos, apreciar as belas cores da vida.

domingo, 26 de novembro de 2017

sábado, 25 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Luis Royo.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

os olhos da moça loura


                                             Zemaria Pinto


os olhos da moça loura
passeiam no corredor
carregando o corpo magro
as mãos de lis matizadas
e a palidez de um sorriso
carregado de pudor

o corpo da moça loura
passando no corredor
envolto em véus de mistérios
lembra vultos vaporosos
de românticas donzelas
do tempo do imperador

ah moça loura que passa
que passa no corredor
dá-me teus olhos de água
dá-me tua boca, teus seios
dá-me teu sorriso pálido
dá-me dá-me tua dor




Carnaval: festa de ricos e pobres


João Bosco Botelho


É possível que a festa correspondente ao atual carnaval tenha começado entre as muitas que comemoravam os frutos da mãe-terra e os favores recebidos das forças da Natureza. As máscaras dos demônios tutelares e dos animais das florestas eram utilizadas como forma de aproximação com os deuses protetores.
A associação das festividades romanas das saturnais com o deus Baco foi concretizada, no medievo, possivelmente relacionada à leitura de Teodósio Macróbio, autor do século 4, e estudado como fonte de informação nos dez séculos seguintes.
Com a consolidação do cristianismo no Ocidente, o poder eclesiástico intensificou as medidas repressivas para anular as influências greco-romanas remanescentes nas populações. Uma das alternativas adotadas foi associar as festas da saturnália aos loucos.
Mesmo com toda a repressão da Igreja, as festas populares medievais que mantinham alguma relação com simbolismos da loucura continuaram sendo realizadas. Parece que estas comemorações foram intensificadas, a partir de 1466, com a medida do Duque da Borgonha em conceder certa quantia em dinheiro para que se realizassem com pompas.
Nesses dias de relaxamento das tensões sociais, as pessoas se sentiam autorizadas para representar a desordem e a contestação. Pode-se reconstruir, nos registros disponíveis das festas medievais, que os ornamentos e máscaras utilizadas desafiavam os interditos e exaltavam esta ou aquela brincadeira proibida. É certo que as máscaras expressavam simbologia mais ampla. Ao que parece, e como ainda hoje, detêm certos significados de protestos sociais.
Os documentos das festas carnavalescas no Brasil, no século 17, mostram que apesar das proibições, eram realizadas nos quatro dias anteriores à Quarta Feira de Cinzas, com o nome ENTRUDO.
O processo de mudança do carnaval no Brasil intensificou-se, na primeira metade do século 19, quando ficou caracterizado como festa dirigida e orientada pelas elites. Era mais divertimento dos brancos e ricos. Se algum grupo de negros tentasse fazer o próprio carnaval, era violentamente reprimido pelas forças de segurança, a partir do pressuposto da violência que poderiam acarretar.
Entre as transformações urbanas ocorridas no Brasil, a partir dos anos 1950, o carnaval também mudou: tornou-se festa popular dos pobres. As escolas de samba foram fortalecidas e as camadas mais pobres passaram a participar ativamente na organização dos desfiles: milhares de desempregados se transfiguravam, durante quatro dias, em atores e espectadores dos mecanismos de afrouxamento das tensões socais.
No Amazonas, o curso não foi muito diferente. O fortalecimento das festas de rua, antes, mais entre os ricos, está relacionado à formação do operariado do distrito industrial. O carnaval tornou-se importante para milhares de trabalhadores moradores nas periferias urbanas de Manaus, submetidos às fortes tensões da sobrevivência.

Os atuais estudos facilitam a compreensão de que as festas romanas e o carnaval não parecem ter sido, em nenhuma época, a celebração do louco ou da loucura. Ao contrário – como festa ponta-cabeça – participa da superação pessoal e coletiva do controle das tensões sociais de pobres e ricos.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Life is a dance in the rain.
Adrian Bordan.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Reparar – verbo transitivo


Pedro Lucas Lindoso


A Gramática nos ensina que verbos transitivos são verbos que, tendo sentido incompleto, necessitam de um complemento verbal para completar o seu sentido, ou seja, necessitam de um objeto direto e/ou objeto indireto.
Um bom exemplo de verbo transitivo é o verbo reparar. Realmente, reparamos sempre algo ou alguém. O verbo reparar tem vários significados: restaurar, consertar, retratar-se, aperfeiçoar, dentre outros.
Mas aqui no Amazonas é muito usado no sentido de “fixar atenção, observar”. Ou seja, como diz o caboclo: “tomar de conta”.
O guardador de carros nos pergunta ao estacionarmos o carro:
– Posso reparar, doutor?
Meu amigo João Grijó diz que quando havia festas no interior seus pais sempre lembravam que ele deveria “reparar” sua irmã. É sempre assim. Os pais, zelosos com suas filhas adolescentes, costumam pedir ao filho mais velho para não deixar de “reparar” suas irmãs. Podem atribuir a obrigação a qualquer outra pessoa. Mas a responsabilidade do irmão mais velho é emblemática e cultural.  Principalmente quando um moço de roupa branca e chapéu se aproximar. Pode ser o boto.
Usa-se muito “reparar” no sentido de olhar.
– Repara só! Diz a mulher a sua comadre, apontando o malfeito de alguém.
Mas o verbo reparar, no sentido de “observar”, “tomar conta de alguém” passou a ter um significado especial depois que Maria Luísa, minha netinha, começou a andar e descobrir as coisas e o mundo.
Ela é uma graça. Inteligente, falante e curiosa. Como não tem noção ainda de todos os perigos do mundo e das coisas, é preciso que alguém esteja sempre “reparando” a garotinha.
Outro dia fiquei incumbido de “reparar” Maria Luísa. Pode ser um pouco cansativo, fisicamente, porque ela gosta de andar de um lado para outro. Mas é obediente e muito charmosa. Sempre usa laços de fita no cabelo e é muito vaidosa.
Ora, reparar é um verbo transitivo e nada nos dá mais contentamento do que “reparar” essa pessoinha tão amada, repleta de fofurice. É um grande contentamento “reparar” Maria Luísa.


domingo, 19 de novembro de 2017

Manaus, amor e memória CCCXLIII


Chácara de Eduardo Ribeiro.

sábado, 18 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria

Alex Tooth.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Canção sem esperança


Ao Paulo Graça,
navegante do insondável*


I

Não era ainda a hora de te escrever
por isso fui ao Averno
como fazíamos todas as sextas
e mergulhei meu sangue engordurado
em miligramas de moléculas de álcool

Mas já não havia o absinto de uso exclusivo dos românticos pálidos

II

Na passagem pelo Estige
sempre ponto obrigatório
vi que o alfanje prateado
sangrava recém-usado

Perguntei-me quem seria
o destinado a empunhá-lo

III

Ah, pântanos da memória
desabrochai em begônias
gardênias gerânios rosas
asfixiando o enxofre
que exalam vossas entranhas
palude paul pauis

IV

Ouço soluços ao lado
um espectro de mulher
a face descarnada as mãos trementes
implora-me um mísero trago
(ao fundo a music box
aspergia sobre nós
os nós de notas e sílabas
de um tango retrô-pós)

V

Em vão a busca prossegue
nos vãos dos leitos impuros

No Flagetonte ou no Aqueronte
meu corpo cambaleia relutante
sob o peso dos vícios
que me incutiu a nave de Caronte

VI

Às portas do Letes o dia se levanta
e eu sorvo o esquecimento
em lentos goles de quinino
(o líquido me queima os lábios e as entranhas
num rito de reencontro
com algo que não perdi)

VII

Por entre a turba apressada
meu corpo segue em direção contrária
na boca um gosto amargo
e um peso indefinido me oprimindo o peito
além de uma certeza

não era ainda a hora de te escrever



(*) O escritor Antônio Paulo Graça (23/11/1952–09/06/1998) estaria completando 65 anos na próxima quinta-feira.


João Gilberto interdito


A indigência financeira de João Gilberto é a metáfora viva da miséria intelectual do Brasil!

(João Sebastião – poeta nefelibata, filósofo de boteco, profeta do caos – refletindo sobre a interdição judicial do gênio de Juazeiro)

Má prática médica


João Bosco Botelho


Uma das primeiras estruturas laicas a reconhecer e legislar a prática médica atribuindo claramente deveres e direitos aos médicos e julgadores, além de estabelecer o valor do pagamento pelos serviços e penalidades pela má prática médica, foi o rei Hammurabi (1728-1686 a.C), da Babilônia, autor do código de Hammurabi.
Foram os membros da expedição arqueológica francesa de Morgan, nas escavações da acrópole da capital elamita de Susa, que encontraram o diorito negro contendo o código – hoje no Museu de Louvre, em Paris.
O Código de Hammurabi permite entender certos critérios, sempre em torno dos bons resultados, das leis que regiam a ação médica na Babilônia, governada pelo rei Hammurabi. Se pensarmos que as leis também exercem função de evitar conflitos, os artigos penalizando ou premiando o médico, por estarem na mesma coluna daquela regulamentando as profissões dos barbeiros, pedreiros e barqueiros, é possível pressupor um elo comum: se tratavam de categorias envolvidas em conflitos inquietantes à administração. Dessa forma, somente a ação do julgador, ligado ao poder dominador, estaria suficientemente organizado para julgar os conflitos geradores de conflitos sociais.
Torna-se necessário para a compreensão da importância das práticas médicas e julgadoras naquela região conhecer a divisão dos diferentes extratos sociais. O primeiro e mais importante grupo que compunha a sociedade babilônica, rigidamente hierarquizada, os awilum, homens e mulheres livres, funcionários da administração pública e pagos pelo rei, julgadores, escribas, sacerdotes, comerciantes, camponeses e grande parte dos soldados. O segundo grupo compreendia os muskenum. Apesar de os registros históricos serem escassos e não se saber exatamente o papel social desempenhado por eles, é possível pressupor que exercessem papeis intermediários entre os awilum e os escravos.
A regulamentação da ação médica contida no código de Hamurabi cita a inequívoca relação da ética do médico ligada aos bons resultados, onde o julgador é o árbitro absoluto.
–  215: Se um médico fez em um awilum uma incisão difícil com uma faca de bronze e curou o awilum ou se abriu a nakkaptum (supercílio) de um awilum com uma faca de bronze e curou o olho do awilum: ele tomará dez siclos de prata.
–  218: Se um médico fez em um awilum uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão.
–  219: Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de um muskenum e causou a sua morte: ele deverá retribuir um escravo como o escravo morto.


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Pascal Blanché.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Quem nasce para caba nunca chega a mangangá


Pedro Lucas Lindoso


O mangangá é um inseto de abdome largo e peludo, que tem uma função bastante nobre aqui na Amazônia. É o polinizador das castanheiras! Quem me falou sobre o mangangá foi João Grijó, amigo nascido em Anori, terra do bom açaí.
Ele me disse que o mangangá faz um zumbido alto quando voa e só as fêmeas possuem ferrão inoculador de veneno. Tem cor amarela ou negra e mede uns três centímetros.
Elas geralmente não picam. Só quando provocadas. Mas a picada é muito, muito dolorosa.
Perguntei ao João se ele já tinha sido picado por mangangá. Ele me disse que sim. O mangangá é como uma tucandeira voadora.
– Dói muito. Era rapaz e estava num castanhal quando fui picado. Na bunda! Corri para o rio, desabei. Em meio ao desespero, voltei. Rolava que nem me apercebi. Voltei, corri, caí e levantei. Rodopiei. Como um redemoinho! Parecia coisa do capiroto.
Lembrei-me de Guimarães Rosas que colocou o “demo” no redemoinho. E imaginei a dor do João. Só nós amazonenses temos uma vaga ideia do que seja a dor da tucandeira. E se ele disse que o mangangá era a tucandeira voadora, deve doer muito mesmo.
João Grijó me disse que levou várias bordoadas dos mangangás. E me explicou:
– Elas grudam. Não adianta abanar como se abana mosca ou carapanã. Meu dedo ficou tão, mas tão inchado que não conseguia mover. Ficou enorme. A dor é mesmo indescritível. Tem que correr para a água. E eu corri para o rio. Mas estava um pouco longe. Mas tem que correr. Para qualquer lugar. Tem que continuar correndo porque dói, mano. E muito!
Então o mangangá é como se fosse um tipo de caba, perguntei-lhe.
– Que nada. O mangangá é muito pior que as cabas. Eu conheço cabas. O pessoal do sudeste chama de marimbondo. Teve um cientista da Universidade que veio conversar comigo sobre cabas. O professor chamava as cabas de vespas sociais. Realmente, como ele explicou, as cabas constituem um grupo com elevada riqueza de espécies e muito comum também aqui na nossa região Amazônica.
Após nossa conversa, aprendi uma grande lição com João Grijó: “quem nasce para caba nunca chega a mangangá”.


domingo, 12 de novembro de 2017

sábado, 11 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Selene Regener.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Canção para a moça clara


Zemaria Pinto


felino sorriso branco
no chão de cal da memória
alva em seu vestido neve
diáfana caçadora
nasce a moça na candura
da manhã feita de anil

cabelos de longa dança
e suaves tons amarelos
sopram seda sobre o colo
casulo onde a moça guarda
com rigores de clausura
vontades elementares

à sombra do véu que a veste
adivinho o ventre lânguido
feito de leite e de espuma
quando a moça num meneio
gira em torno da canção
que se revela aos meus olhos

em largos gestos de adeus
a moça cavalga o vento
gargalhando epifanias
deserdando-me de mim
clara clara plurialva
sob o sol do meio-dia

(mas os pentelhos da moça
só depois eu pude ver
são da cor noite-sem-lua
selva de negra folhagem
limalha palha fuligem
vertigens de anoitecer)


Mulheres Contemporâneas – no ICBEU



Alguns aspectos da ética médica romana


João Bosco Botelho


Após a conquista militar romana da Ásia Menor e da Grécia, nos anos vinte do século 2 a.C., ocorreu certo esvaziamento político-econômico de algumas cidades gregas que não interessavam ao poder romano. Muitos médicos dessas cidades migraram para cidades romanas importantes.
O conjunto organizador romano impôs controle da saúde pública aumentando a oferta de água potável por meio dos aquedutos, coleta dos esgotos, banhos púbicos, regras para o sepultamento fora do perímetro urbano, aterro dos pântanos e a presença do médico pago pelo poder público em muitas cidades.
No Império de Adriano, no século 2 d.C., os médicos foram dispensados do serviço militar e a maior parte das cidades romanas, mesmo as nos territórios conquistados, tinha médico remunerado pela administração pública.
Possivelmente, para suprir a demanda crescente de médicos nos novos territórios conquistados, Júlio Cesar ampliou as prerrogativas oferecidas por Diocleciano e ofereceu aos médicos os direitos de cidadão romano e prerrogativas fiscais.
Claudio Galeno, um dos mais conhecidos médicos romanos, no século 1, elaborou a teoria dos Quatro Temperamentos, ao adicionar um temperamento específico para cada um dos humores da teoria de Políbio: fleumático, sanguíneo, bilioso preto e bilioso amarelo. Desse modo, atenuou a excessiva generalidade da teoria dos Quatro Humores e possibilitou individualizar as possibilidades de as pessoas adoecerem quando abrigassem certo temperamento.
É possível que no fim do século 2 os médicos gregos ocupassem lugares destacados na estrutura administrativa da Medicina romana. Esse fato provocou forte resistência entre os cidadãos romanos mais cultos, gerando queixas pessoais e coletivas que fazem pensar que tenham se distanciado dos preceitos hipocráticos. Plínio, o Velho, no seu livro “Histórias Naturais” e o historiador Marco Pórcio Catão fizeram severas críticas pelos maus resultados dos médicos gregos.
Como resposta da administração aos descaminhos éticos, no fim do século 3, o imperador Júlio Cesar assinou a Lei Aquília e a Lei Cornélia que puniam severamente a prática do aborto e com o banimento dos médicos que provocassem a morte do doente.
O Direito romano, mais amplo e generalista se comprado ao grego, atravessou o medievo e se manteve estruturante durante doze séculos por meio do Corpus Júris Civilis.
Um dos mais importantes acervos romanos, em parte oriundo da Grécia platônica, amalgamando a Medicina e o Direito, se estruturou na compreensão do Direito Natural na obra de Cícero: “Há uma lei verdadeira, segundo a natureza, difundida entre todos os homens, constante e eterna” (De República, 3, 33,33).

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Fantasy Art - Galeria


James Zar.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Madrigal Amazonas em concerto na AAL


Dia 08/11, às 19h, na Academia Amazonense de Letras,
rua Ramos Ferreira, 1009 - Centro Histórico.

E se vendesse toucas para bebês?


Pedro Lucas Lindoso


Quando Alfredo foi apresentado aos pais de Leonor, sua mãe achou-o “bonzinho”. Já o pai vaticinou que o pior adjetivo para um homem é ser “bonzinho’”. Não seria um bom marido. Apaixonada, Leonor casou-se com Alfredo. O rapaz demonstrou realmente ser “bonzinho”. E só.
Nunca deu sorte nos seus negócios e empregos. Houve um tempo em que as linhas telefônicas no Brasil tinham valor. Em algumas cidades eram comercializadas por quase mil dólares. Alfredo investiu toda a sua herança paterna adquirindo linhas telefônicas.
Em um ano, com as privatizações e novas telefonias no mercado, as linhas era disponibilizadas sem custo para o consumidor.  Alfredo vivia dos alugueres dessas linhas. Foi o primeiro fiasco de vários.
Leonor então começou a fazer doces e salgados para sobreviver. Uma placa colocada em frente da casa, diligentemente por Alfredo, se lia: “Aceitam-se encomendas de doces e salgados. Faz-se com esmero e higiene”.
Alfredo então foi ser gerente de uma locadora de vídeos. Logo veio a “blockbuster” e as locadoras da cidade fecharam as portas. O dono da locadora aproveitou para dar um golpe na praça. Fugiu para Miami e sequer pagou os direitos básicos dos empregados. Incluindo a rescisão de Alfredo.
Após fazer um curso de “emissão de passagens aéreas” no SENAC, empregou-se numa agência de viagens. Com o advento de vendas de passagens pela internet, mais uma vez, Alfredo foi dispensado. E Leonor continua aceitando encomendas, coitada!
Desde então Alfredo dirige um taxi. Depois de alguns anos conseguiu livra-se do aluguel da placa. Está com um carro relativamente novo. Todavia as corridas estão cada dia mais raras com a chegada do UBER.
Uma comadre e amiga de Leonor vive sugerindo as coisas mais mirabolantes e inusitadas para que Alfredo finalmente possa ser bem-sucedido. A última dela:
– E se vendesse toucas para bebês?
Leonor logo respondeu:
– As crianças começariam a nascer sem cabeça!
Leonor continua com as encomendas, “com esmero e higiene”.


segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Cultura, tradição e escritura 4/4


Tenório Telles


A palavra como reconciliação com o mundo

O poeta francês Francis Ponge (1997, p. 67), ao refletir sobre a capacidade do poeta de fundar o mundo por meio da palavra, pondera que esse poder “lhe vem... de uma possibilidade para o funcionamento do mundo e de uma violenta necessidade de integrar-se a ele, depois... de uma particular aptidão para manejar, ele próprio, uma determinada matéria”. Essa matéria não é outra senão a linguagem: capacidade instauradora de nossa humanidade e ponte que nos liga à realidade e às coisas. Ponte que nos liga ao ontem, ao hoje e ao futuro. Somos filhos do verbo – nascidos das entranhas do silêncio originário e do irrevelado que move o vento, as águas, os ciclos da vida – o cosmos, como desvelou Dante (1976, p. 63):
A fantasia agora está calada;
mas já renovo as forças, que a movê-las
vai a roda a girar sempre ordenada,
do Amor que move o sol e move estrelas.

Evocar a existência e transfigurá-la pela força do verbo é um dos atributos significativos dos que se dedicam à faina de encantar as palavras, revesti-las de plumas e asas – que é também um ato de desvestir a realidade e revelar-lhe sua impalpável carnadura, seus mistérios, sua ossatura. Só a linguagem permite esse mergulho no ser do mundo e nas águas do tempo em que somos. Ponge (1997, p. 69) considera que o poeta deve reatualizar permanentemente seu pacto com a vida para não se perder:
Tanto mais que, em sua atividade de dominação do mundo, ele corre o risco de se alienar, ele precisa, a cada instante, aí está a função do artista, graças às obras de sua preguiça, se reconciliar com o mundo.

A consciência do tempo, a compreensão de nossa presença no mundo e o sentido de nossa condição como seres históricos e criativos são os fundamentos capazes de nos impulsionar para uma outra possibilidade de vida – fundada no esclarecimento, na tolerância e no cultivo do belo. Isso só será possível, como nos alerta Eliot, quando compreendermos que somos parte de uma “totalidade”: quando entendermos que estamos/somos no ontem, no hoje e no amanhã – inapreensível prefiguração dessa convergência de tempos. O poeta evocou nossa trágica condição (não como algo irremediável), mas como devir – suspenso e indefinido:
Dayadhvam: ouvi a chave
Girar na porta uma vez e apenas uma vez
Na chave pensamos, cada qual em sua prisão
E quando nela pensamos, prisioneiros nos sabemos
Somente ao cair da noite é que etéreos rumores
Por instantes revivem um alquebrado Coriolano
(...)
Sentei-me junto às margens a pescar
Deixando atrás de mim a árida planície
Terei ao menos minhas terras posto em ordem?
(ELIOT, 1981, p. 105)

Teremos coragem de nos assenhorarmos da chave? De abrir a porta? De nos fazermos viajantes dessas planícies agrestes, desses desertos que não cessam de ultrapassar suas fronteiras? Teremos coragem de contemplar o firmamento e nos deixarmos, como homéricos navegantes, guiar pelos caminhos das estrelas? Na contracorrente dos tempos, acendo minha fogueira e desfio a tapeçaria da memória: “Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas” (ELIOT, 1981, p. 106).

REFERÊNCIAS

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ELIOT, T. S. Ensaios. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.
______. Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
MELO NETO, João Cabral de. Melhores poemas. 10. ed. Sel. Antonio Carlos Secchin. São Paulo: Global Editora, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
______. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PLATÃO. A República. 2. ed. Trad. Ana Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
PONGE, Francis. Métodos. Trad. Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
RILKE, Rainer Maria. A melodia das coisas. 2. ed. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.