Amigos do Fingidor

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Lembranças da Vivizinha e do pai


João Bosco Botelho


Mais de meio século depois, lembro-me do que penso ter sido o mais importante episódio da minha iniciação literária, que culminou com a descoberta de Capitu, personagem imortal de Machado de Assis. A minha memória aviva-se expondo com suavidade o espaço-tempo onde esses acontecimentos se iniciaram: o Colégio D. Pedro II, em Manaus, e empurram-me para março de 1960.
A edificação quadrilátera do Colégio D. Pedro II, composta de dois andares e um subsolo, no sentido sul-norte, com amplo pátio interno, possibilitava manter a circulação de ar capaz de amenizar o calor tropical. A sala 201, na ala leste, no segundo andar, aquecida pelo sol da manhã, refrescava-se pelo vento morno vindo das três largas janelas, voltadas à avenida 7 de Setembro. 
Nessa sala, sentado na quinta fila, próxima da porta, nos primeiros dias de aula, ainda explodindo de orgulho por ter sido aprovado no exame de admissão, eu vi pela primeira vez a gorda e simpática professora de Canto Orfeônico, a Vivizinha. Ela entrou na sala, passou ao meu lado, farfalhando a saia rodada multicolorida, blusa de cambraia de linho, bordada com motivos florais, e os cabelos grisalhos impecavelmente arrumados num coque.  Após chamar nominalmente cada um dos trinta alunos, apresentando um leve tremor ritmado da face e das mãos, explicou que estava substituindo o adoentado professor de português.
Então, a turma de adolescentes, pouco interessada, ouviu a mestra falar sobre a sonoridade da leitura.  Para que pudéssemos entender como é possível ouvir sons quando lemos, após dividir a turma em cinco grupos, Vivizinha vaticinou: ─ Vocês lerão Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis, e cada grupo fará o resumo, que será apresentado na aula da próxima semana. Seguiu-se dramático mal-estar, olhávamos para os lados e buscávamos o apoio que não chegou. Fora da assídua leitura do Mandrake e do Fantasma, nunca havia lido outro livro. Não tinha a menor ideia de quem era Machado de Assis.
Ao pedir silêncio e acalmar os mais inquietos, Vivizinha interferiu na hora certa e com a bondade requerida pela ocasião. Com o Dom Casmurro na mão trêmula, explicou lentamente o que representava a obra romanesca. Ainda sem ser levada a sério, dissertou sobre o papel do narrador, como era possível o autor escrever na primeira ou na terceira pessoa, os personagens, o ambiente, a ação e a ligação entre eles. Ninguém compreendeu nada! Mais uma vez, a mestra pediu silêncio. Com a voz melodiosa, sem conseguir esconder o tremor facial, iniciou a leitura de Dom Casmurro, no trecho onde o Machado explica aos leitores de onde apareceu o título, tanto o Dom quanto o Casmurro. De tempos em tempos, Vivizinha ressaltava a genialidade do autor no uso preciso das palavras.
Quando a campainha tocou indicando o fim do segundo tempo, significou o alívio salvador. Mas a tarefa estava posta e valia nota. Ninguém ousaria desobedecer.
No almoço, na minha casa, pontualmente às 12 horas, com toda a família reunida, em torno da grande mesa quadrilátera, eu expliquei ao meu pai que precisava comprar o tal livro de Machado de Assis.  Os seus olhos azuis claros olharam-me atentamente e disse-me que eu encontraria o Dom Casmurro numa determinada prateleira, da biblioteca dele, onde estava a coleção de Machado de Assis. Com a família atenta, o meu pai perguntou por que, eu expliquei a tarefa do impertinente resumo e, imediatamente, ofereceu-se para ajudar. Maravilhado, aceitei. Ele sugeriu que, após a leitura, conversaríamos no sábado.
Logo após o almoço, a abertura das portas de vidro lapidado nas extremidades da enorme estante descortinou-me outro mundo. As centenas de livros ocupavam as seis prateleiras, mas encontrei facilmente a coleção machadiana e o Dom Casmurro.
A leitura de Dom Casmurro terminou dois dias depois, sem o entusiasmo sentido nas revistas do Fantasma e do Mandrake, ambos prendendo os bandidos, mas, eu li, com repetidas consultas ao dicionário, tornando a obrigação escolar mais cansativa.
No sábado, no meio da manhã, encontrei o meu pai na biblioteca, sentado à grande mesa de mogno preto. Aquela manhã memorável, pouco a pouco, tornou-se deslumbrante pela surpresa de como o meu pai ajudava-me a redigir o resumo, trazendo o drama: afinal, a Capitu teria sido ou não infiel ao marido apaixonado? Então, naquela hora, ouvindo-o, percebi a mágica sonoridade da linguagem escrita!
Sem esforço, eu ouvi a agonia de Bentinho ao desconfiar da traição de Capitu! O mundo da imaginação estava, definitivamente, descortinado na minha história de vida!
Na aula seguinte, ainda substituindo o professor de português, a inesquecível Vivizinha coordenou, com impressionante entusiasmo o debate literário. Os dois tempos de aulas foram insuficientes para conter o confronto do imaginário dos adolescentes, alguns enaltecendo, outros condenando a Capitu.
As duas aulas de Vivizinha marcaram a minha escolaridade. Mais de meio século depois ao ousar romancear, compreendi que a didática da bondosa professora e a do meu pai havia moldado o meu rito de passagem das histórias em quadrinhos para o insuperável Machado de Assis.