João Bosco Botelho
Mais de meio século depois, lembro-me do que penso ter sido o
mais importante episódio da minha iniciação literária, que culminou com a
descoberta de Capitu, personagem imortal de Machado de Assis. A minha memória
aviva-se expondo com suavidade o espaço-tempo onde esses acontecimentos se
iniciaram: o Colégio D. Pedro II, em Manaus, e empurram-me para março de 1960.
A edificação quadrilátera do Colégio D. Pedro II, composta de
dois andares e um subsolo, no sentido sul-norte, com amplo pátio interno,
possibilitava manter a circulação de ar capaz de amenizar o calor tropical. A
sala 201, na ala leste, no segundo andar, aquecida pelo sol da manhã,
refrescava-se pelo vento morno vindo das três largas janelas, voltadas à
avenida 7 de Setembro.
Nessa sala, sentado na quinta fila, próxima da porta, nos
primeiros dias de aula, ainda explodindo de orgulho por ter sido aprovado no
exame de admissão, eu vi pela primeira vez a gorda e simpática professora de
Canto Orfeônico, a Vivizinha. Ela entrou na sala, passou ao meu lado,
farfalhando a saia rodada multicolorida, blusa de cambraia de linho, bordada
com motivos florais, e os cabelos grisalhos impecavelmente arrumados num
coque. Após chamar nominalmente cada um
dos trinta alunos, apresentando um leve tremor ritmado da face e das mãos,
explicou que estava substituindo o adoentado professor de português.
Então, a turma de adolescentes, pouco interessada, ouviu a
mestra falar sobre a sonoridade da leitura.
Para que pudéssemos entender como é possível ouvir sons quando lemos, após
dividir a turma em cinco grupos, Vivizinha vaticinou: ─ Vocês lerão Dom
Casmurro, escrito por Machado de Assis, e cada grupo fará o resumo, que será
apresentado na aula da próxima semana. Seguiu-se dramático mal-estar, olhávamos
para os lados e buscávamos o apoio que não chegou. Fora da assídua leitura do
Mandrake e do Fantasma, nunca havia lido outro livro. Não tinha a menor ideia
de quem era Machado de Assis.
Ao pedir silêncio e acalmar os mais inquietos, Vivizinha
interferiu na hora certa e com a bondade requerida pela ocasião. Com o Dom
Casmurro na mão trêmula, explicou lentamente o que representava a obra romanesca.
Ainda sem ser levada a sério, dissertou sobre o papel do narrador, como era
possível o autor escrever na primeira ou na terceira pessoa, os personagens, o
ambiente, a ação e a ligação entre eles. Ninguém compreendeu nada! Mais uma
vez, a mestra pediu silêncio. Com a voz melodiosa, sem conseguir esconder o
tremor facial, iniciou a leitura de Dom Casmurro, no trecho onde o Machado
explica aos leitores de onde apareceu o título, tanto o Dom quanto o Casmurro.
De tempos em tempos, Vivizinha ressaltava a genialidade do autor no uso preciso
das palavras.
Quando a campainha tocou indicando o fim do segundo tempo,
significou o alívio salvador. Mas a tarefa estava posta e valia nota. Ninguém
ousaria desobedecer.
No almoço, na minha casa, pontualmente às 12 horas, com toda
a família reunida, em torno da grande mesa quadrilátera, eu expliquei ao meu
pai que precisava comprar o tal livro de Machado de Assis. Os seus olhos azuis claros olharam-me
atentamente e disse-me que eu encontraria o Dom Casmurro numa determinada
prateleira, da biblioteca dele, onde estava a coleção de Machado de Assis. Com
a família atenta, o meu pai perguntou por que, eu expliquei a tarefa do
impertinente resumo e, imediatamente, ofereceu-se para ajudar. Maravilhado,
aceitei. Ele sugeriu que, após a leitura, conversaríamos no sábado.
Logo após o almoço, a abertura das portas de vidro lapidado
nas extremidades da enorme estante descortinou-me outro mundo. As centenas de
livros ocupavam as seis prateleiras, mas encontrei facilmente a coleção
machadiana e o Dom Casmurro.
A leitura de Dom Casmurro terminou dois dias depois, sem o
entusiasmo sentido nas revistas do Fantasma e do Mandrake, ambos prendendo os
bandidos, mas, eu li, com repetidas consultas ao dicionário, tornando a
obrigação escolar mais cansativa.
No sábado, no meio da manhã, encontrei o meu pai na
biblioteca, sentado à grande mesa de mogno preto. Aquela manhã memorável, pouco
a pouco, tornou-se deslumbrante pela surpresa de como o meu pai ajudava-me a
redigir o resumo, trazendo o drama: afinal, a Capitu teria sido ou não infiel
ao marido apaixonado? Então, naquela hora, ouvindo-o, percebi a mágica
sonoridade da linguagem escrita!
Sem esforço, eu ouvi a agonia de Bentinho ao desconfiar da
traição de Capitu! O mundo da imaginação estava, definitivamente, descortinado
na minha história de vida!
Na aula seguinte, ainda substituindo o professor de
português, a inesquecível Vivizinha coordenou, com impressionante entusiasmo o
debate literário. Os dois tempos de aulas foram insuficientes para conter o confronto
do imaginário dos adolescentes, alguns enaltecendo, outros condenando a Capitu.
As duas aulas de Vivizinha marcaram a minha escolaridade.
Mais de meio século depois ao ousar romancear, compreendi que a didática da
bondosa professora e a do meu pai havia moldado o meu rito de passagem das histórias
em quadrinhos para o insuperável Machado de Assis.