Amigos do Fingidor

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Carnaval: festa de ricos e pobres


João Bosco Botelho


É possível que a festa correspondente ao atual carnaval tenha começado entre as muitas que comemoravam os frutos da mãe-terra e os favores recebidos das forças da Natureza. As máscaras dos demônios tutelares e dos animais das florestas eram utilizadas como forma de aproximação com os deuses protetores.
A associação das festividades romanas das saturnais com o deus Baco foi concretizada, no medievo, possivelmente relacionada à leitura de Teodósio Macróbio, autor do século 4, e estudado como fonte de informação nos dez séculos seguintes.
Com a consolidação do cristianismo no Ocidente, o poder eclesiástico intensificou as medidas repressivas para anular as influências greco-romanas remanescentes nas populações. Uma das alternativas adotadas foi associar as festas da saturnália aos loucos.
Mesmo com toda a repressão da Igreja, as festas populares medievais que mantinham alguma relação com simbolismos da loucura continuaram sendo realizadas. Parece que estas comemorações foram intensificadas, a partir de 1466, com a medida do Duque da Borgonha em conceder certa quantia em dinheiro para que se realizassem com pompas.
Nesses dias de relaxamento das tensões sociais, as pessoas se sentiam autorizadas para representar a desordem e a contestação. Pode-se reconstruir, nos registros disponíveis das festas medievais, que os ornamentos e máscaras utilizadas desafiavam os interditos e exaltavam esta ou aquela brincadeira proibida. É certo que as máscaras expressavam simbologia mais ampla. Ao que parece, e como ainda hoje, detêm certos significados de protestos sociais.
Os documentos das festas carnavalescas no Brasil, no século 17, mostram que apesar das proibições, eram realizadas nos quatro dias anteriores à Quarta Feira de Cinzas, com o nome ENTRUDO.
O processo de mudança do carnaval no Brasil intensificou-se, na primeira metade do século 19, quando ficou caracterizado como festa dirigida e orientada pelas elites. Era mais divertimento dos brancos e ricos. Se algum grupo de negros tentasse fazer o próprio carnaval, era violentamente reprimido pelas forças de segurança, a partir do pressuposto da violência que poderiam acarretar.
Entre as transformações urbanas ocorridas no Brasil, a partir dos anos 1950, o carnaval também mudou: tornou-se festa popular dos pobres. As escolas de samba foram fortalecidas e as camadas mais pobres passaram a participar ativamente na organização dos desfiles: milhares de desempregados se transfiguravam, durante quatro dias, em atores e espectadores dos mecanismos de afrouxamento das tensões socais.
No Amazonas, o curso não foi muito diferente. O fortalecimento das festas de rua, antes, mais entre os ricos, está relacionado à formação do operariado do distrito industrial. O carnaval tornou-se importante para milhares de trabalhadores moradores nas periferias urbanas de Manaus, submetidos às fortes tensões da sobrevivência.

Os atuais estudos facilitam a compreensão de que as festas romanas e o carnaval não parecem ter sido, em nenhuma época, a celebração do louco ou da loucura. Ao contrário – como festa ponta-cabeça – participa da superação pessoal e coletiva do controle das tensões sociais de pobres e ricos.