Amigos do Fingidor

domingo, 2 de janeiro de 2011

Mostrando a língua aos trapos da guerra

Jorge Bandeira

Uma guerra anunciada e cristalizada num pequeno vilarejo de alguma parte da Europa destroçada, e nesse lugar qualquer, seres de verdade, um casal de velhinhos e sua neta que tentam entender a situação em meio ao caos e aos destroços, vidas que serão mutiladas e aniquiladas. Assim apresenta-se Feliz ano novo, da Cia de Teatro Língua de Trapo, com texto e direção assinados por Hely Pinto. Trata-se de um libelo contra o absurdo da guerra e suas inevitáveis consequências, um texto que oscila entre o didático e o lírico, e talvez nessa encruzilhada estilística algumas chaves essenciais não se completam no espetáculo.

O elenco segura as pontas da representação ao longo da encenação, em alguns momentos da cena, em especial nos de grande dramaticidade, sente-se a falta de uma atriz que catalise as passagens cruciais do texto e montagem de Hely Pinto. Uma observação feita para pensar em tornar o espetáculo mais vigoroso, pois as falas dos personagens denotam um peso existencial de alta envergadura, de transbordamentos de situações que somente a atuação precisa dos atores o fará “existir” verdadeiramente para o seu público.

A guerra e a solidão, eis um tema que faz deste trabalho uma reflexão sobre os nossos dias, nessa imensa crítica sobre os poderes, aos partidos políticos e aos meandros de um jogo que recomeça com as mesmas peças manipuladoras e manipulantes, que em muitos momentos recorda os clamores anarquistas de uma Espanha que antecede ao ditador Franco. Algumas falas no texto de Hely Pinto são jorros de um libertário que não vê mais sentido algum entre os inequívocos rótulos ideológicos de direita ou esquerda, tudo está misturado, amalgamado, confuso.

Guernica está lá, no cenário feito de estilhaços do famoso quadro de Pablo Picasso, e a singeleza da casinha do velho guardião, que carrega um humor sarcástico em várias passagens, destoa dos animalescos nazistas que perfazem o elemento grotesco em sua manifestação caricatural dos SS, e do próprio Hitler, pois são as sombras “que jamais morrem” do ditador da Alemanha do período da Segunda Guerra. Há, bem a propósito, uma certa nostalgia nas figuras dos velhinhos, e esta condição aproxima o espectador de seus sofrimentos, culminando com um reencontro metafísico do casal nos planos bem diferentes do cruel e real sintoma da guerra.

O abrandamento da situação, fazendo esse desfecho para o “outro lado da trincheira da vida”, caracterizou, no palco, a divisão entre pólos opostos, a salvação, nesta visada, não veio com o armistício e capitulação das forças do eixo, mas com a transcendência dos personagens, fazendo com que as máscaras dos nazistas algozes terminassem a trama como vencedoras. O mundo da guerra é real, e só nesse plano ele torna-se compreensível e pronto para o urdimento da dúvida e do porvir. Franco e Hitler são representantes de uma extrema direita que marcou um momento decisivo para o Ocidente, e muito do ódio que ainda existe neste século XXI é oriundo das celeumas que ainda resistem em cicatrizar nas mentes de alguns retrógados, que projetam as guerras permanentes, que explodem sentimentos, para o que este trabalho também serve de alerta.

Um momento de intenso lirismo da obra: as cartas que caem no palco, revelando sonhos e decepções, preparando o terreno cênico para a destruição final das vidas, ceifadas, abandonadas, em plena passagem de um ano para outro, num réquiem que costumam chamar de réveillon. A perda de tudo, do básico para e existência. A decepção ao se perceber mínimo nesse máximo de atrocidades, e um humor letal de personagens que chegam a emitir sinais de vitalidade, mas estranhamente o ciclo dramático não se fecha, não se “ilumina”, mesmo com uma iluminação bem executada, com um figurino bem talhado e montado com um rigor de pesquisa, e com objetos de cena que demonstram o apuro da equipe, o que torna Feliz ano novo um enigma a ser desvendado.

Talvez a ligação das cenas e quadros foi uma opção imediatista do diretor, o que através do cenário estático não compactuou no resultado objetivo de propiciar dinamismo para a cena, mesmo com a elegante sonoplastia do espetáculo. São alguns senões, mas não que lancem mão dos bons desempenhos do casal de velhos, e aqui cito a atuação de Rosa Malagueta, atriz conhecida pelo seu viés cômico, mas que alcança um resultado bastante plausível na vertente dramática. A maquiagem, pelo excesso, nos faz perder momentos de mudanças de sentimentos e a mobilidade da expressão facial do casal de idosos, o que foi uma pena, pois as vibrantes atuações de Hely Pinto e Rosa Malagueta mereciam uma maior visibilidade, especialmente a do ator, diretor e autor Hely Pinto.

O nazismo e sua bestialidade são colocados nos momentos de dança dramática, e o passo do ganso nazista em sua marcha nupcial nos remete, subliminarmente, ao ganso como iguaria em uma passagem do texto teatral e as recordações desta culinária vivificada na cena, o que, no aspecto da composição do drama, foi um achado digno de nota.

A voz do ditador Adolf Hitler, que abre a cena para Feliz ano novo, preenche nossas mentes e chega aos nossos corações alarmados pelo pavor da guerra. Essa guerra que não cessa, que não se interrompe, e que nos deixa ansiosos para projetar esse Teatro histórico e didático de Hely Pinto para um futuro promissor, aparando algumas arestas, aprimorando a atuação de seus intérpretes, notadamente a personagem da neta, que seguramente alcançará voos mais altos no decorrer de uma possível temporada. Nada mal para começarmos felizes este 7º Festival de Teatro da Amazônia na categoria de teatro adulto. A guerra estética tem início, e o que é melhor, ela não precisa, ainda bem, de sangue real.

Manaus, 9 de outubro de 2010