Zemaria Pinto*
A poesia lírica tem três mil anos, e em que pesem as mudanças de forma, nem tantas, mantém-se rigorosamente fiel ao seu conteúdo: reflexo(e)s do ego do poeta. Talvez isso explique a dificuldade de se vendê-la: é uma arte essencialmente solitária, resultante de um trabalho de (auto)contemplação do mundo, o que implica, na relação escritor x leitor, na existência de uma predisposição cúmplice, por parte deste.
A poesia lírica não objetiva divertir ou educar. Como se trata da exposição de uma postura particular, única, diante da realidade, só será plenamente apreciada se o leitor-receptor estiver em perfeita sintonia com o poeta. Daí que o momento mágico do poeta só se revela integralmente ao leitor-poeta, aquele que, desarmado das defesas do óbvio, vê o poema por dentro, muito além da palavra impressa.
Seria pedante e ocioso desfilar aqui as razões que filósofos, críticos literários e até mesmo alguns tímidos poetas, enumeram para explicar o intimismo e a solidão do lírico, que, poetizando para si, tem como história as próprias lembranças recontadas e como geografia, o limite que se lhe impõem os olhos, reinventando-a.
A poeta Cândida Alves é herdeira legítima dessa tradição milenar. Sua poesia é simples sem ser banal e sensual sem ser vulgar. O humor de Cândida é amargo – afinal, dói rir de si mesma. Feminina, sua poesia é uma delícia de incorreção política. Por outro lado, a linguagem de Cândida é viva, pulsante, mas econômica, essencial:
Bate à porta
come, dorme, sai e
bate a porta
Este poema ilustra quase todas as qualidades acima listadas. Releia-o. Repare na sutil diferença entre o primeiro e o terceiro versos. O segundo verso, por sua vez, em três palavras, realiza uma interação precisa entre tempo e circunstância, ao mesmo tempo em que registra, na sequência de movimentos entre as imagens congeladas da porta, a entediante rotina da mulher solitária.
Aliás, é fundamental frisar essa dicção feminina na poesia de Cândida Alves. Não há meio termo. O eu lírico que fala para si mesmo os poemas de Todo corpo é feminino – às vezes mulherzinha, como em “Ele sempre me fode”:
acorda cansado, azedo
mas ainda me fode
acabando se manda
e não diz nem se volta
e definitivamente
me fode
Às vezes revoltada, como em “É quase de manhã”, onde depois de lamentar-se da velha rotina de cama e mesa, ela proclama:
de agora em diante
eu que vou te comer
Às vezes apaixonada e feliz, mas nunca fútil, com recursos técnicos complexos inseridos na musicalidade do poema, tirando de letra o fio de navalha que separa a grande poesia da simples pieguice, como neste “Eu te amo”:
Teu beijo
me escorre na cara
escancaras na boca
um bocejo (...)
Vou à geladeira
encontro uma pera
e como
sentada na pia
Um gato que mia lá fora
me lembra na hora
meu gato sozinho na cama
O humor e o amor são fichinhas marcadas do lirismo. E, na poesia de Cândida, eles se realizam por inteiro, mesmo quando o eu lírico ultrapassou o estágio da revolta, chegando à resignação. O sofrimento provoca um sorriso cruel, sem dentes, sem lábios, que explode no peito da poeta, como em “Alívio final”:
Acho que estou morta
sinto-me toda torta
nessa carcaça de pele (...)
devo estar mesmo morta
toda torta nessa farofa
em que se tornou a vida
pra onde olho não vejo saída
sem ter que voltar atrás
Penso que é bobagem a distinção entre poesia masculina e feminina. Há que ser de qualidade para ficar. Se for ruim o tempo será seu coveiro. Mas quando se chama a atenção para o fato é para notar a reduzida participação feminina na literatura amazonense de qualidade. Há mais de dez anos publicou-se uma Antologia poética da mulher amazonense. Candoca, menina, não está lá. Pontificavam, então – a linguagem de apresentação é rebuscada e vazia, eivada de adjetivos vãos –, as poetas Violeta Branca e Astrid Cabral. Duas gerações que se encontravam para determinar o fazer poético da mulher amazonense. Cândida, vórtice voraz da feminil paixão, é o vértice que faltava para completar a figura perfeita – e encerrar o século. Que assim seja.
(*) Apresentaqção do livro Todo Corpo, de Cândida Alves, Edições Governo do Amazonas, 2000.