Amigos do Fingidor

domingo, 3 de janeiro de 2010

Lirismo, sensualidade e humor na poesia de Cândida Alves

Zemaria Pinto*


A poesia lírica tem três mil anos, e em que pesem as mudanças de forma, nem tantas, mantém-se rigorosamente fiel ao seu conteúdo: reflexo(e)s do ego do poeta. Talvez isso explique a dificuldade de se vendê-la: é uma arte essencialmente solitária, resultante de um trabalho de (auto)contemplação do mundo, o que implica, na relação escritor x leitor, na existência de uma predisposição cúmplice, por parte deste.

A poesia lírica não objetiva divertir ou educar. Como se trata da exposição de uma postura particular, única, diante da realidade, só será plenamente apreciada se o leitor-receptor estiver em perfeita sintonia com o poeta. Daí que o momento mágico do poeta só se revela integralmente ao leitor-poeta, aquele que, desarmado das defesas do óbvio, vê o poema por dentro, muito além da palavra impressa.

Seria pedante e ocioso desfilar aqui as razões que filósofos, críticos literários e até mesmo alguns tímidos poetas, enumeram para explicar o intimismo e a solidão do lírico, que, poetizando para si, tem como história as próprias lembranças recontadas e como geografia, o limite que se lhe impõem os olhos, reinventando-a.

A poeta Cândida Alves é herdeira legítima dessa tradição milenar. Sua poesia é simples sem ser banal e sensual sem ser vulgar. O humor de Cândida é amargo – afinal, dói rir de si mesma. Feminina, sua poesia é uma delícia de incorreção política. Por outro lado, a linguagem de Cândida é viva, pulsante, mas econômica, essencial:

               Bate à porta
               come, dorme, sai e
               bate a porta

Este poema ilustra quase todas as qualidades acima listadas. Releia-o. Repare na sutil diferença entre o primeiro e o terceiro versos. O segundo verso, por sua vez, em três palavras, realiza uma interação precisa entre tempo e circunstância, ao mesmo tempo em que registra, na sequência de movimentos entre as imagens congeladas da porta, a entediante rotina da mulher solitária.

Aliás, é fundamental frisar essa dicção feminina na poesia de Cândida Alves. Não há meio termo. O eu lírico que fala para si mesmo os poemas de Todo corpo é feminino – às vezes mulherzinha, como em “Ele sempre me fode”:

               acorda cansado, azedo
               mas ainda me fode
               acabando se manda
               e não diz nem se volta
               e definitivamente
               me fode

Às vezes revoltada, como em “É quase de manhã”, onde depois de lamentar-se da velha rotina de cama e mesa, ela proclama:

               de agora em diante
               eu que vou te comer

Às vezes apaixonada e feliz, mas nunca fútil, com recursos técnicos complexos inseridos na musicalidade do poema, tirando de letra o fio de navalha que separa a grande poesia da simples pieguice, como neste “Eu te amo”:

               Teu beijo
               me escorre na cara
               escancaras na boca
               um bocejo (...)


               Vou à geladeira
               encontro uma pera
               e como
               sentada na pia


               Um gato que mia lá fora
               me lembra na hora
               meu gato sozinho na cama

O humor e o amor são fichinhas marcadas do lirismo. E, na poesia de Cândida, eles se realizam por inteiro, mesmo quando o eu lírico ultrapassou o estágio da revolta, chegando à resignação. O sofrimento provoca um sorriso cruel, sem dentes, sem lábios, que explode no peito da poeta, como em “Alívio final”:

                Acho que estou morta
                sinto-me toda torta
                nessa carcaça de pele (...)


                devo estar mesmo morta
                toda torta nessa farofa
                em que se tornou a vida
                pra onde olho não vejo saída
                sem ter que voltar atrás

Penso que é bobagem a distinção entre poesia masculina e feminina. Há que ser de qualidade para ficar. Se for ruim o tempo será seu coveiro. Mas quando se chama a atenção para o fato é para notar a reduzida participação feminina na literatura amazonense de qualidade. Há mais de dez anos publicou-se uma Antologia poética da mulher amazonense. Candoca, menina, não está lá. Pontificavam, então – a linguagem de apresentação é rebuscada e vazia, eivada de adjetivos vãos –, as poetas Violeta Branca e Astrid Cabral. Duas gerações que se encontravam para determinar o fazer poético da mulher amazonense. Cândida, vórtice voraz da feminil paixão, é o vértice que faltava para completar a figura perfeita – e encerrar o século. Que assim seja.


(*) Apresentaqção do livro Todo Corpo, de Cândida Alves, Edições Governo do Amazonas, 2000.