Amigos do Fingidor

domingo, 31 de janeiro de 2010

Manual do Canalha em nova edição

Era uma tarde domingo. Eu lia a Veja, como faço em todas as entediantes tardes de domingo – não que seja apaixonado; de outro jeito, como falar mal? – quando me deparei com o texto do Millôr, falando sobre o Manual do Canalha. Imediatamente, liguei para o Simão, que, pelo que ele contou depois, achou que eu tava de sacanagem. Eu, de sacanagem, domingo à tarde? Fosse ao menos sábado... Depois do Millôr, todo mundo quis conhecer aquele fenômeno, pelo que a Topbooks relançou o livro, cuja capa está aí ao lado.

Na sequência, uma entrevista publicada em dezembro de 1996, com o título Podem atirar a primeira pedra, por mero acaso, no jornal Tribuna da Imprensa, do jornalista Hélio Fernandes, irmão do Millôr. Então, está tudo em casa.

(Zemaria Pinto)

Escrito por um jornalista e publicitário que é uma verdadeira navalha de irreverência, este “Manual do Canalha” – que bem poderia ter como subtítulo “Guia do politicamente incorreto” – pretende excitar o leitor, irritá-lo às vezes, mas também quer arrancar sonoras gargalhadas, ainda que seguidas por alguma exclamação do tipo “pô, que cara escroto esse Simão Pessoa!”

Mistura tropical de escabrosidade típica de um Marquês de Sade com o humor irreverente do inglês Jonathan Swift? Talvez. Mas ninguém poderá negar que este “Manual” é capaz de proporcionar momentos de divertida leitura e, ao mesmo tempo, provocar uma saudável reflexão – pela prática do livre pensar – a respeito dos muitos mitos e preconceitos enraizados, sobretudo pela mídia, na cabeça do povo.

Simão Pessoa vai dos temas-tabus, como homossexualismo, aids, ejaculação precoce, aos detalhes essenciais para se montar uma perfeita “festinha de embalo”, sem esquecer as dicas para se ganhar uma mulher em diferentes circunstâncias (no cinema, no shopping, em academia de ginástica, no cursinho ou faculdade, no estádio de futebol etc.). E faz verdadeiro tratado sobre posições sexuais, um engraçadíssimo “Kama Sutra” de que constam movimentos tão sofisticados quanto o paso doble de Gardel, a vaca atolada, o saci pererê, o mountain bike, ou ainda o bêbado e a equilibrista.

O diferencial neste livro é que todos os assuntos são tratados com deboche, escracho, irreverência, na contramão do consenso e do lugar-comum, embora abuse por demais do palavreado chulo, usando a torto e a direito palavrões. O autor não teme que o chamem de machista, homófobo, politicamente incorreto: seu compromisso é com a alegria. Também não pede a ninguém que concorde com ele: apenas exerce seu direito de dizer o que quer.

É bom anotar que se, num momento, este “Manual do canalha” trata as mulheres tal e qual um “porco chauvinista” – classificando-as em mocréias, jabiracas, mocorongas e outras estranhas espécies –, logo depois arrasa com os homens ao dar dicas sobre como reconhecer os variados tipos de corno (o galeto, o cego aderaldo, o iô-iô, o besta-fera, o cachorro doido, o cowboy). E um dos capítulos mais divertidos (“Casamento: você ainda vai ter um”) debocha do machão ao mostrar o quanto ele fica frágil e vulnerável ao se apaixonar.

Veja a seguir, as explicações de Pessoa sobre a sua estética machista para o terceiro milênio.

Tribuna Bis: Você é jornalista, poeta e publicitário. A idéia de escrever este “Manual do Canalha” surgiu de conversas com colegas de trabalho? Como e quando?

Simão Pessoa: Na realidade, sou engenheiro eletrônico e pós-graduado em administração pela FGV (SP). Durante 18 anos, fui chefe de engenharia de qualidade de duas das principais fábricas do distrito industrial, Sharp e Philco. Em 1991, resolvi largar tudo e me dedicar à redação publicitária, onde estou até hoje. Quando comecei a trabalhar, em 73, com 17 anos, estava, sem saber, no olho do furacão da revolução sexual que ocorreu na cidade com o advento da Zona Franca. Cada fábrica do distrito, nessa época, tinha em média quatro mil mulheres para pouco mais de quinhentos homens. Como a maioria delas tinha vindo do interior do estado, e eram bastante ingênuas, se transformaram em presas fáceis dos canalhas manauaras. Devo ter transado, nesses dezoito anos, com umas 900 mulheres, o que é uma média baixíssima para os padrões locais. O “Manual do Canalha”, portanto, não é fruto de elucubrações teóricas, mas de quem esgotou, na prática, todas as possibilidades existentes no relacionamento homem-mulher. É o testemunho de uma época de ouro, onde a inocência não era mais possível e onde todas as questões metafísicas se resolviam num quarto de motel. A questão de escrever o texto – que já estava esboçado na minha cabeça – surgiu quando a Danuza Leão lançou um livro de etiquetas e fez um rebuliço no mercado editorial. Pensei em fazer o mesmo do ponto de vista do macho. O título (“Manual do Canalha”) foi sugerido pelo Plínio Augusto, editor da Imaginário, que iria publicar a primeira edição. Como houve alguns problemas financeiros que atrapalharam o projeto, resolvi fazer uma edição independente, financiada por meia dúzia de amigos. Este “Manual do Canalha”, que a Topbooks está lançando agora, é uma edição revista e aumentada, com um tratamento gráfico de alto nível, capa do premiado Victor Burton – enfim, bem diferente daquela ediçãozinha artesanal feita em Manaus.

Como reagiram as pessoas mais próximas – além dos amigos, as amigas, esposa, namoradas, filhos, mãe e pai – com relação ao polêmico texto?

Na noite de autógrafos, no bar do Armando, várias mulheres, gostosíssimas, por sinal, apareceram por lá para protestar – porque as resenhas dos jornais apontavam para o machismo inerente ao livro e as redes de tevê foram lá conferir. As reações foram as mais desencontradas possíveis. Minhas ex-mulheres, amantes, irmãs, filhas e sobrinhas, por exemplo, odiaram as referências implícitas e explícitas ao mau-caratismo das mulheres. Por outro lado, meus amigos de copo, correligionários de canalhice, filhos, sobrinhos e afilhados adoraram a clareza e a leveza do texto. Meu pai, que é sexagenário, e minha madrinha de crisma, que é beata, acharam o livro de uma baixaria inominável. Paciência. Nem Jesus Cristo conseguiu agradar a todo mundo.

Você ficou famoso no Amazonas por causa deste livro? Passou a ganhar mais mulheres ou menos mulheres depois dele?

O livro foi vendido de mão em mão, distribuído entre amigos, colocado em algumas livrarias, e esgotou em menos de três meses. A maioria dos compradores era formada por adolescentes. A mídia televisiva deitou e rolou sobre o assunto porque calhou de, na mesma época, o cantor Falcão estar na cidade lançando seu primeiro disco, “Bonito, lindo e joiado”. Na música “Só é corno quem quer”, ele fazia um tratado ontológico do bicho chifre que orna a caixa craniana de seres passionais. No meu livro, havia um painel didático com todas as modalidades de cornice de que se tem notícias. As comparações foram inevitáveis. Até então, eu era conhecido no Amazonas como introdutor da “poesia marginal” e meus livros de poesia tinham o status de objetos de culto, já que só circulavam entre os bem-pensantes. Eu era uma espécie de Gregório de Matos da nova geração. Com o “Manual do Canalha”, acabei me transformando, involuntariamente, no cafajeste-mor por excelência. O assédio sexual das mulheres aumentou, porque cada uma delas parece ter o sonho secreto de querer me colocar nos eixos. Nenhuma delas, que eu saiba, conseguiu algum progresso nessa questão específica, o que não invalida, em absoluto, o esforço das moças em continuar tentando. Como estou fora de forma, atualmente só deixo prestar vestibular comigo, no máximo, 12 novas mulheres por ano. Mais do que isso, meu perfurador de gabarito não dá conta.

Você se sente psicologicamente preparado para enfrentar os ataques dos caretas, que verão no livro um manual do politicamente incorreto?

Eu sou um pensador libertário e tenho absoluto desprezo pelos caga-regras de qualquer latitude ou quadrante. A maior bobagem desse fim de século é essa onda do “politicamente correto”. Quem tem culpa do sujeito nascer crioulo? Ou de ser viado? Ou de nunca conseguir comer ninguém? Aliás, quase todo sujeito politicamente correto é analfabeto de pai e mãe, donde conclui-se que o risco de ler o “Manual do Canalha” vai ser mínimo. Não vale a pena se preocupar com esses bichos escrotos.

Como é que, apesar da pequena edição artesanal, seu livro passou a ser comentado em vários pontos do país?

Graças ao meu trabalho de poeta, sempre fui bastante conhecido no circuito alternativo do país, trocando figurinhas com Glauco Mattoso, Sebastião Nunes, Uilcon Pereira, Cairo Trindade, Mano Melo, Tanussi Cardoso, Samaral, Moacir Cyrne, J. Cardias, Jorge Domingos, Wilson Bueno e dezenas de outros vagabundos maravilhosos. Eles ajudaram a criar uma espécie de mítica em torno do “Manual do Canalha”, e isso me convenceu de que o livro merecia uma edição maior, de distribuição nacional.

Qual o seu objetivo ao escrever o “Manual”: vender muito e ficar rico; chocar a sociedade reacionária, dizendo tudo que se impôs como indizível; exercitar seu direito de falar o que quiser, mesmo que não seja politicamente correto; divertir-se e divertir os leitores? Ou tudo isso junto?

A idéia básica é divertir os outros, tudo o mais vem por acréscimo. Ele faz parte de uma trilogia fálica, sendo que os outros dois (“Manual do Espada” e “Manual do Garanhão”) já estão virtualmente escritos. No fundo, no fundo, esses livros são uma maneira quixotesca que encontrei para lutar contra a histeria coletiva que grassa no mundo, onde menininhos de cinco anos são tratados como perigosos tarados só porque passaram a mão na bunda da coleguinha de escola. Se não abrirmos os olhos, daqui a pouco até trepar com mulher vai ser considerado crime hediondo.

Você teme algum tipo de agressão verbal ou escrita – seja de um grupo gay, de um movimento de mulheres, ou mesmo de um maluco que venha a se sentir prejudicado pelo seu “Manual do Canalha”?

Das mulheres eu aceito tudo, até maçã envenenada e tapa na cara. Tenho uma verdadeira tara por mulheres violentas e bruxas confessas. Com os gays, audácia do bofe! Os boiolas não têm senso de humor. Desconfio que esse negócio de dar a bunda sem olhar pra trás potencializa a agressividade do ser humano. Dos gays, benza Deus, mas quero distância. E o verdadeiro macho não vai se sentir sacaneado ao ler o livro, a não ser que seja corno. Mas isso são outros quinhentos.

Ninguém precisa passar por uma experiência pra escrever sobre ela, mas não dá pra deixar de perguntar: você teve muitas namoradas? Passou por um divórcio ou dois? Já foi corno? Nunca broxou, como o Ziraldo? Enfim, o que há de autobiográfico no livro?

Eu fui casado quatro vezes. Com a primeira, tive três meninos (os gêmeos Marcelo e Marcel estão com 19 anos, e o caçula, Márcio, tem 16). Com a segunda tive um casal (a menina, Maíra, tem 15 anos, e o menino, Marcus, tem 11). Com a terceira tive uma menina, a minha caçula, Marisa, que tem nove anos. Com a quarta não tive nenhum filho porque fiz vasectomia em 1991. Moramos juntos sete anos e nos separamos este ano, no dia em que completei 40 anos. Atualmente, estou quase casado com uma publicitária e prestando assistência técnica às ex-mulheres. Pago pensão alimentícia a todas que têm filho comigo e, para honrar os compromissos financeiros, mantenho há quinze anos uma jornada tripla de trabalho, incluindo free-lances nos finais de semana. Não tiro férias há cinco anos. Claro que já fui corno e broxei algumas vezes. São experiências tão definitivas quanto necessárias, e quem diz que nunca passou por isso está sendo um grandissíssimo mentiroso.

Você cita, na bibliografia de consulta, “A arte de amar”, de Ovídio, e “Amor, sexo e espiritualismo”, de Robert Linnsen. É sério? O que você tirou desses livros para o seu “Manual do Canalha”? E do “Kama Sutra”?

Apesar de ser, como todo taurino, um sujeito eminentemente prático, tenho boa formação cultural, em termos de leitura. Leio tudo que me cai nas mãos, de bula de remédio a tratado sobre física quântica. Li as obras completas do Ovídio, em edição de bolso, quando tinha 15 anos. O “Kama Sutra” li com 18. O livro de Robert Linnsen apenas folheei numa biblioteca. Deve ter ficado retido alguma coisa, que acabei utilizando, inconscientemente ou não, no “Manual”.

A Internet tem grupos que só discutem sexo. Já pensou em botar seu “Manual” na Internet?

Colocar meus livros na Internet é uma coisa que me fascina. Penso que escrever tem muito a ver com a necessidade de ser lido. Como todo bom anarquista, sou um ardoroso defensor de que as informações são um patrimônio da humanidade e, como tal, devem circular pelo maior número de canais possíveis. Odeio o conceito de “direito autoral”, tanto que nos meus livros alternativos vai sempre escrito “Nenhum direito reservado. Copyright é coisa de viado”. A Internet me parece ser a porta de entrada para esse mundo libertário que trago na cabeça e no coração. Na primeira oportunidade, o “Manual do Canalha” vai entrar num site multilíngue e partir para conquistar o mundo. Quem viver, verá.

Clique sobre a imagem, para ler o texto de Millôr Fernandes.