·Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975)
·Os estatutos do Homem (1977)
·Vento geral – poesia 1951/1981 (1981)
·Horóscopo para os que estão vivos (1984)
·Mormaço na floresta (1984)
·Num campo de margaridas (1986)
·De uma vez por todas (1996)
·Campo de milagres (1998)
·Acerto de contas (2015)
O TESTEMUNHO
Thiago de Mello (1926-2022)
III – AMAR
No campo de silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo
a ser, e quando sou
– sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.
O tempo que ficou,
e, aquém de mim, me espera,
reclama o existir turvo.
Então, perdido, torno;
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:
quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.
A dor é ecolongínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,
lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.
Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho
que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,
onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:
dor esplêndida e dura
– dor de ser
e de amar.
Porque de amar, perdura.
E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para a noite do mundo.
Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor
a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria
que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.
O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
– sómesmo
o coração:
pois nele cabe Deus.
Na história
da literaturaamazonense
Thiago de Mello ocupa uma posiçãosingular: seulivroSilêncio e Palavra, de 1951, saudado pelanata da críticabrasileiracomo
a maisgratarevelação da Geração
de 45, coloca a literaturaamazonense
no mapa da literaturabrasileira. Mesmo
morando no Rio de Janeiro,
nunca perdeu contatocomsuaterra e, a despeito
de realizar uma literaturauniversal, suacondição de jovemcaboclo – umjungle boy
da poesia – despertava o interesse de mestrescomo Manuel Bandeira,
Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athayde e Gilberto Freyre, entreoutros. O pessoalque, três anosdepois, iria fundar
o Clube da Madrugadaainda ensaiava seusprimeirospassosquando Thiago já
obtinha reconhecimentonacional. Atéquepontoisso estimulou os queaqui ficaram? No mínimo,
abriu-lhes a perspectiva do aeroporto, incutindo-lhes a confiança
de quetambémeles poderiam voaralto. Foi o que
fizeram os participantes da “caravana”, queem 1951 e 1953 empreenderam viagens procurando saber o queafinal se
produzia no restante do país.
A poesia
de Thiago de Mello tem trêsfases distintas: a primeira,
marcadamente lírica e existencialista; a segunda,
de cunhosocial
e político; a terceira,
reunindo características das duas anteriores, traz à tona
a preocupaçãocom
a saúde do planeta.
Emresumo,
uma poesiaquecomeça intimista, voltada ao interior do poeta, evolui para uma poesia de interessecoletivo
– inicialmente, comrelação ao país,
que passou mais
de 20 anosemregime de exceção,
e, na faseatual,
comrelação
a todo o planeta.
Nesta, além da abordagemsobre o meioambiente, quando
o poeta se transforma emguerreirodefensor
da floresta, persiste a inquietação
política e social.
O poema
“O testemunho” está inserido na primeirafase, comoparte da coleção de poemasO andarilho
e a manhã (1953-1955), inserido emVentoGeral, volumeque reúne 30 anos
da poesia de Thiago de Mello, de 1951 a 1981. O poema, na verdade,
divide-se emtrêspartes: “Ser”,
“Ter” e “Amar”. Vamos analisarcommaisdetalhes a
última, mas,
parasuamelhorcompreensão,
façamos umbreve
relato sobre as primeiras. O poema relaciona o fazer
poético com uma predestinaçãodivina: o poetanão escolhe, é escolhido. Masisso é ditoporpalavras formando imagensnemsempreclaras ao leitormenosatento.
Em “Ser”, ele ouve o chamamento e suareação é de recusa, mas
é inútil: o poeta
alimenta-se de “dor e silêncio”, no campo
“onde pastam manhãs”
– elemesmo.
Thiago de Mello dá uma conotaçãometafísicaparaexplicar o que o vulgarmente chamamos inspiração.
A segundaparte
do poema, “Ter”,
mostra, sobaltatensãopoética, a recompensapor essa escolha:
“dor sofrida é salário”;
maisadiante:
“com essa dor
se cunha / a moedaemcujaefígie / vê-se o perfil
dos anjos”. O ofício
do poeta é construir a manhã – “envoltaemcânticos”
– para se contrapor à “noite do mundo”.
“Amar”
é a síntesedialética
desse movimentoentre
o ser e o ter. O poeta inicia falando da dificuldadeparacriar: “no campo de silêncio...
/ tardo / a ser,
e quando sou / – sou pouco. O muito
é a dor”. As estrofesseguintes metaforizam essa dor da criação:
“lua de trevaemcéu / já desabado, pedra
/ lavada pelachuva”.
Mas a lutanão é de todo
vã, “pois a dorantiga, eterna...
/ dor de ser
e de amar” permite ao poetatrazer dessa viagem
ao âmago de si
“uma trevamaisdoce / para a
noite do mundo”
– e às vezes uma auroraque o aclara também.
Aíele
percebe – humilde, mas
amargurado – quepouco
avançara na construção da manhã.
Consola-o, no entanto, saberque o que
há de grandeemsi, inclusive
de grandiososofrer, é seucoração, “pois nele cabe Deus”.
Essa conclusão
pode parecer decepcionante, do ponto
de vistaestético,
mas devemos analisá-la sob a perspectiva
do homem e não
do artista, pois
é esteque,
desde a primeiraparte do poema,
se nos apresenta, ao tentarfugir do chamado da poesia.
A umpoema
frustrado, o poeta-artista reagiria como
Drummond: “Lutarcompalavras / é a lutamais vã. / Entanto
lutamos / mal rompe a manhã”. O poeta-homem, contudo,
se recolhe piedosamenteemsuasorações, pedindo forças
renovadas – paracontinuar
tentando, ouquem
sabe, parar, de uma vezpor todas. As preces
de Thiago de Mello, ao que parece, foram
paracontinuar
construindo manhãs – o queele faz commaestria há
mais de 60 anos.
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Este é o primeiro de uma série de 15 textos de breves análise de poemas, extraídos do livro Lira da Madrugada, que comemorou os 60 anos do Clube da Madrugada. Junto com o livro, saiu um CD, com as músicas que Mauri Mrq compôs para os poemas e que hoje podem ser ouvidas no YouTube:
Clique sobre a figura, para ter acesso ao YouTube.