Amigos do Fingidor

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Lira da Madrugada – Thiago de Mello 1/15

Zemaria Pinto


 Ficha biobibliográfica

 

Autor: Thiago de Mello

Nome completo: Amadeu Thiago de Mello

Naturalidade: Barreirinha – AM

Nascimento: 30 de março de 1926

Falecimento: 14 de janeiro de 2022

 

Obra poética:

·       Silêncio e palavra (1951)

·       Narciso cego (1952)

·       A lenda da rosa (1983)

·       Vento geral (1960)

·       Faz escuro mas eu canto (1965)

·       A canção do amor armado (1966)

·       Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975)

·       Os estatutos do Homem (1977)

·       Vento geral – poesia 1951/1981 (1981)

·       Horóscopo para os que estão vivos (1984)

·       Mormaço na floresta (1984)

·       Num campo de margaridas (1986)

·       De uma vez por todas (1996)

·       Campo de milagres (1998)

·       Acerto de contas (2015) 


O TESTEMUNHO

Thiago de Mello (1926-2022) 

III – AMAR

                      

 

No campo de silêncio

onde, existindo, sou,

não me retardo. Tardo

 

a ser, e quando sou

– sou pouco. O muito é a dor.

As têmporas estalam.

 

O tempo que ficou,

e, aquém de mim, me espera,

reclama o existir turvo.

 

Então, perdido, torno;

a caminho transbordo,

transvio-me de mim:

 

quando chego, sou pouco.

Crestam-me a vida vã

saudades de ter sido.

 

A dor é eco longínquo

de grito soterrado.

O ser é estrela extinta,

 

lua de treva em céu

já desabado, pedra

lavada pela chuva.

 

Permaneço, contudo,

e comigo a amargura,

quando o amor é o caminho

 

que em mim se faz e faz-me

correr ao campo branco

onde alvoradas sonham,

 

onde me espera o pasto

onde a fome fareja

a dor antiga, eterna:

 

dor esplêndida e dura

dor de ser e de amar.

Porque de amar, perdura.

 

 

E trago dessa viagem

uma treva mais doce

para a noite do mundo.

 

Às vezes é uma aurora

que me aclara também:

e vejo em amargor

 

a face que me coube,

a face dessa noite

noite tão noite e fria

 

que é minha e de meu mundo,

ai, mundo meu não mundo,

perdido, em pranto, e pouco.

 

O muito em mim, e grande,

e sofredor grandioso

mesmo o coração:

        pois nele cabe Deus.

 

Na história da literatura amazonense Thiago de Mello ocupa uma posição singular: seu livro Silêncio e Palavra, de 1951, saudado pela nata da crítica brasileira como a mais grata revelação da Geração de 45, coloca a literatura amazonense no mapa da literatura brasileira. Mesmo morando no Rio de Janeiro, nunca perdeu contato com sua terra e, a despeito de realizar uma literatura universal, sua condição de jovem cabocloum jungle boy da poesia – despertava o interesse de mestres como Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athayde e Gilberto Freyre, entre outros. O pessoal que, três anos depois, iria fundar o Clube da Madrugada ainda ensaiava seus primeiros passos quando Thiago obtinha reconhecimento nacional. Até que ponto isso estimulou os que aqui ficaram? No mínimo, abriu-lhes a perspectiva do aeroporto, incutindo-lhes a confiança de que também eles poderiam voar alto. Foi o que fizeram os participantes da “caravana”, que em 1951 e 1953 empreenderam viagens procurando saber o que afinal se produzia no restante do país.

A poesia de Thiago de Mello tem três fases distintas: a primeira, marcadamente lírica e existencialista; a segunda, de cunho social e político; a terceira, reunindo características das duas anteriores, traz à tona a preocupação com a saúde do planeta. Em resumo, uma poesia que começa intimista, voltada ao interior do poeta, evolui para uma poesia de interesse coletivoinicialmente, com relação ao país, que passou mais de 20 anos em regime de exceção, e, na fase atual, com relação a todo o planeta. Nesta, além da abordagem sobre o meio ambiente, quando o poeta se transforma em guerreiro defensor da floresta, persiste a inquietação política e social.

O poema “O testemunho” está inserido na primeira fase, como parte da coleção de poemas O andarilho e a manhã (1953-1955), inserido em Vento Geral, volume que reúne 30 anos da poesia de Thiago de Mello, de 1951 a 1981. O poema, na verdade, divide-se em três partes: “Ser”, “Ter” e “Amar”. Vamos analisar com mais detalhes a última, mas, para sua melhor compreensão, façamos um breve relato sobre as primeiras. O poema relaciona o fazer poético com uma predestinação divina: o poeta não escolhe, é escolhido. Mas isso é dito por palavras formando imagens nem sempre claras ao leitor menos atento. EmSer”, ele ouve o chamamento e sua reação é de recusa, mas é inútil: o poeta alimenta-se de “dor e silêncio”, no campoonde pastam manhãs” – ele mesmo. Thiago de Mello dá uma conotação metafísica para explicar o que o vulgarmente chamamos inspiração. A segunda parte do poema, “Ter”, mostra, sob alta tensão poética, a recompensa por essa escolha: “dor sofrida é salário”; mais adiante: “com essa dor se cunha / a moeda em cuja efígie / vê-se o perfil dos anjos”. O ofício do poeta é construir a manhã – “envolta em cânticos” – para se contrapor à “noite do mundo”.

Amar” é a síntese dialética desse movimento entre o ser e o ter. O poeta inicia falando da dificuldade para criar: “no campo de silêncio... / tardo / a ser, e quando sou / – sou pouco. O muito é a dor”. As estrofes seguintes metaforizam essa dor da criação: “lua de treva em céu / desabado, pedra / lavada pela chuva”. Mas a luta não é de todo vã, “pois a dor antiga, eterna... / dor de ser e de amar” permite ao poeta trazer dessa viagem ao âmago de si “uma treva mais doce / para a noite do mundo” – e às vezes uma aurora que o aclara também. ele percebe – humilde, mas amargurado – que pouco avançara na construção da manhã. Consola-o, no entanto, saber que o que há de grande em si, inclusive de grandioso sofrer, é seu coração, “pois nele cabe Deus”.

Essa conclusão pode parecer decepcionante, do ponto de vista estético, mas devemos analisá-la sob a perspectiva do homem e não do artista, pois é este que, desde a primeira parte do poema, se nos apresenta, ao tentar fugir do chamado da poesia. A um poema frustrado, o poeta-artista reagiria como Drummond: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã”. O poeta-homem, contudo, se recolhe piedosamente em suas orações, pedindo forças renovadas – para continuar tentando, ou quem sabe, parar, de uma vez por todas. As preces de Thiago de Mello, ao que parece, foram para continuar construindo manhãs – o que ele faz com maestria há mais de 60 anos.

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Este é o primeiro de uma série de 15 textos de breves análise de poemas, extraídos do livro Lira da Madrugada, que comemorou os 60 anos do Clube da Madrugada. Junto com o livro, saiu um CD, com as músicas que Mauri Mrq compôs para os poemas e que hoje podem ser ouvidas no YouTube: 


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