Amigos do Fingidor

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Manaus – nossa imagem e semelhança

 Aldisio Filgueiras

(Poeta, jornalista, membro da Academia Amazonense de Letras)

 

Os homens constroem cidades à sua imagem e semelhança. O medo dos homens faz das cidades fortalezas. A religião dos homens faz das cidades santuários e arenas de guerras santas. A ganância dos homens faz das cidades paraísos fiscais e centrais de mercadorias, cujo único valor é despertar o querer pelo que não se precisa.

A maldade dos homens faz das cidades campos de extermínio. A indiferença dos homens faz das fortalezas, dos santuários, dos paraísos fiscais, dos campos de extermínio, um simples acidente de percurso, porque os homens sempre têm a arrogante certeza de que tudo já foi escrito e sempre será como sempre foi: o mundo não tem cura – com certeza, por isso, sempre que escavam sob os próprios pés, surge a antiguidade de uma cidade, com a cara e a coragem dos que a habitaram, antes que outra ambição de cidade a substituísse.

Quando uma cidade (isto é, os que a habitam) comemora a sua fundação ela já é muito mais antiga do que o seu calendário cívico tenha capacidade de registrar. Mesmo que tenha sido fundada hoje e agora.

Hoje e agora, aos 354 de fundação e 174 de elevação a essa categoria que a todos enleva, Manaus cumpre, desta vez, o ritual de aniversário, meio que sem jeito de festejar: a garganta dos rios que a cortejam está seca; o céu do seu território sem indústrias, pleno de fumaça, e não de nuvens; a floresta que a circunda, empurrada para cada vez mais longe dos seus mirantes, que ainda nem foram de todo construídos – Manaus sempre quis ver a floresta de longe; e sua população multirracial, perplexa, tatua na pele, como está na moda, o sinal interrogação, que não deixa o sono tranquilo, e impregna de mal-estar o café da manhã e o resto dos dias.

Qual é a importância da idade de uma cidade, senão o que representa no presente e para os presentes – os ausentes não podem saber o que estão perdendo?

É possível extrair dessa interrogação uma oferenda aos presentes deste presente e à memória venerável dos ausentes e, quem sabe, para esclarecimento dos que virão (e para que não precisem escavar muito fundo para saber qual a imagem e semelhança do que herdaram) uma verdadeira história desta cidade que amamos e odiamos, como a nós mesmos, porque a construímos exatamente como a queremos ou a queríamos... e não deu certo.

Se alguma coisa não vai bem com uma cidade é porque a humanidade que a constrói e desconstrói a todo momento está doente. A História, mesmo em fragmentos, é o “remédio caseiro” que levará à cura de todos os males. É preciso conhecê-la, como à palma da mão. A História nos lembra que NÓS (assim em letras graúdas) somos a cidade. NÓS temos a idade da cidade; ela é a NOSSA responsabilidade, ninguém mais – responsabilidade não se transfere (vamos brincar – não é uma festa de aniversário? – de tentar lembrar o nome de quem elegemos para nos representar na última eleição).

Manaus é a nossa imagem e semelhança. Queiramo-nos bem, e tudo, tudo vai dar pé. Quando nos sentimos mal (ou bem), estamos diante do espelho. Manaus ainda não se viu no espelho. Não sabe(mos) o que está(mos) perdendo. Os portugueses não construíram um império contando piada em botequim. Provavelmente, foi assim que o perderam. Manaus pede passagem. Queiramo-la bem. Nós merecemos.