Aldisio Filgueiras
(Poeta, jornalista, membro da Academia Amazonense de Letras)
Os
homens constroem cidades à sua imagem e semelhança. O medo dos homens faz das
cidades fortalezas. A religião dos homens faz das cidades santuários e arenas
de guerras santas. A ganância dos homens faz das cidades paraísos fiscais e
centrais de mercadorias, cujo único valor é despertar o querer pelo que não se
precisa.
A
maldade dos homens faz das cidades campos de extermínio. A indiferença dos
homens faz das fortalezas, dos santuários, dos paraísos fiscais, dos campos de
extermínio, um simples acidente de percurso, porque os homens sempre têm a
arrogante certeza de que tudo já foi escrito e sempre será como sempre foi: o
mundo não tem cura – com certeza, por isso, sempre que escavam sob os próprios
pés, surge a antiguidade de uma cidade, com a cara e a coragem dos que a
habitaram, antes que outra ambição de cidade a substituísse.
Quando
uma cidade (isto é, os que a habitam) comemora a sua fundação ela já é muito
mais antiga do que o seu calendário cívico tenha capacidade de registrar. Mesmo
que tenha sido fundada hoje e agora.
Hoje e
agora, aos 354 de fundação e 174 de elevação a essa categoria que a todos
enleva, Manaus cumpre, desta vez, o ritual de aniversário, meio que sem jeito
de festejar: a garganta dos rios que a cortejam está seca; o céu do seu
território sem indústrias, pleno de fumaça, e não de nuvens; a floresta que a
circunda, empurrada para cada vez mais longe dos seus mirantes, que ainda nem
foram de todo construídos – Manaus sempre quis ver a floresta de longe; e sua
população multirracial, perplexa, tatua na pele, como está na moda, o sinal
interrogação, que não deixa o sono tranquilo, e impregna de mal-estar o café da
manhã e o resto dos dias.
Qual é
a importância da idade de uma cidade, senão o que representa no presente e para
os presentes – os ausentes não podem saber o que estão perdendo?
É
possível extrair dessa interrogação uma oferenda aos presentes deste presente e
à memória venerável dos ausentes e, quem sabe, para esclarecimento dos que
virão (e para que não precisem escavar muito fundo para saber qual a imagem e
semelhança do que herdaram) uma verdadeira história desta cidade que amamos e
odiamos, como a nós mesmos, porque a construímos exatamente como a queremos ou
a queríamos... e não deu certo.
Se
alguma coisa não vai bem com uma cidade é porque a humanidade que a constrói e
desconstrói a todo momento está doente. A História, mesmo em fragmentos, é o
“remédio caseiro” que levará à cura de todos os males. É preciso conhecê-la,
como à palma da mão. A História nos lembra que NÓS (assim em letras graúdas)
somos a cidade. NÓS temos a idade da cidade; ela é a NOSSA responsabilidade,
ninguém mais – responsabilidade não se transfere (vamos brincar – não é uma
festa de aniversário? – de tentar lembrar o nome de quem elegemos para nos
representar na última eleição).
Manaus
é a nossa imagem e semelhança. Queiramo-nos bem, e tudo, tudo vai dar pé.
Quando nos sentimos mal (ou bem), estamos diante do espelho. Manaus ainda não
se viu no espelho. Não sabe(mos) o que está(mos) perdendo. Os portugueses não
construíram um império contando piada em botequim. Provavelmente, foi assim que
o perderam. Manaus pede passagem. Queiramo-la bem. Nós merecemos.