Amigos do Fingidor

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Lira da Madrugada – Moacir Andrade 2/15

  

Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Moacir Andrade

Nome completo: Moacir Couto de Andrade

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 17 de março de 1927

Falecimento: 17 de julho de 2016

 

Obra poética:

·       Portais (2006)


ESPERA                    

               Moacir Andrade (1927-2016)


Como rosas de ouro debruçadas

sob esta noite – musgos ressequidos

mora minh’alma que sonha contigo

fundida em sóis e tardes cismarentos.

 

Chegaste agora musa do meu canto

gregoriano canto de alvoradas

oh cofres de oferendas encantadas

pousando nos meus olhos como brumas.

 

És meu vaticínio predizendo

que o meu por ti será atado

como plectro aos sons gerando estrelas

num bailado de cores encantadas

lívido estou, agora, neste instante,

navegando meu sonho como astros

montado neste azul do meu tormento

galopando meus versos do infinito.

 

Tu és amor, a chama que me aquece

sons de flauta, de liras irreais

ninando este abandono olor da morte

que me esmaga de dor, de angústia e pranto.

   

Notável artista plástico, Moacir Andrade jamais deixou de escrever poemas, uma atividade paralela, embora bissexta, usando a nomenclatura de Manuel Bandeira para os poetas eventuais. Talvez por ser produzida esparsamente, a poesia de Moacir Andrade não guarda um “programa”, uma unidade: são registros momentâneos, “dores de cotovelo”, homenagens a amigos, reflexos de momentos particulares. Em conversa pessoal, o próprio pintor confidenciou-me que sua arte está toda em seus quadros, sendo a poesia uma espécie de passatempo, um hobby ocasional. Entretanto, como não poderia deixar de ser, há um forte colorido nas imagens que o poeta cria, como se as quisesse levar para um quadro, embora não prevaleçam sobre o abstrato que domina a sua poesia, feita mais de sentimentos e menos de matéria concreta.

O poema “Espera” faz parte de uma coletânea reunindo vários autores, o que dificulta sua análise comparativa com poemas de um determinado grupo, dentro da obra do autor. De qualquer forma vamos observar o poema em si mesmo, seus aspectos técnicos e sua inserção histórica no grupo que fez poesia dentro do Clube da Madrugada.

O poema divide-se em quatro estrofes, mas talvez a intenção inicial do autor tenha sido dividi-lo em cinco, ocorrendo na terceira um erro de impressão, o que não altera em nada a essência do texto. Os versos, na sua maioria, são decassílabos, com dois eneassílabos (o nono e o décimo primeiro) e um octossílabo (o décimo), o que parece ser outra falha, especialmente em relação a este último, onde há um truncamento da ideia que se quer passar. Porque estou a contar sílabas se o poeta pode optar pelo verso livre dessas amarras tolas? É que o poema, pela forma como se estrutura, física e mentalmente, pede simetria de estrofação e de métrica, do contrário não consegue atingir o ideal romântico que está em seu cerne. É um caso de forma imbricada ao conteúdo, necessariamente. Vejamos a primeira estrofe.

Os símbolos positivos transformam-se em negativos, num movimento brusco, depressivo: “rosas de ouro” se transformam em “musgos ressequidos”; “noite”, em “sóis e tardes cismarentos”; estes abrigam a alma do eu lírico que sonha com a amada impossível. Na segunda estrofe, a chegada da “musa” é saudada com um “gregoriano canto de alvoradas / oh cofres de oferendas encantadas”. Curioso é que esse canto coral é o canto do poeta, individual, e que este pouse em seus “olhos como brumas”, outro símbolo negativo, pois embaça a visão. Em outras palavras, a chegada da musa transtorna o eu lírico, impedindo-o de ver a realidade.

A terceira e alongada estrofe começa com uma tautologia: “és meu vaticínio predizendo”. O verso seguinte, embora pareça truncado, tem uma leitura simples: “que o meu destino ao teu será atado”. Os versos consequentes “como plectro aos sons gerando estrelas / num bailado de cores encantadas” são ilustrativos, sem relação direta com o discurso poético, mas buscando um efeito plástico, a partir das imagens que produz. A sequência enfatiza a ideia de solidão atormentada, estabelecendo uma relação inusitada entre “navegando” e a combinação montado/galopando.

A última estrofe fecha a ideia clássica do poeta romântico que só encontra a paz na morte – o mal do século. Século 19. A “chama que me aquece” não é a presença física, mas apenas a idealizada, que o faz ouvir “sons de flauta, de liras irreais”, e trazem também o “olor da morte”. Neste ponto, o que parecia dúbio se esclarece: a amada só existe em sonhos e na imaginação do poeta: está morta. Analisemos o último verso do poema, um heroico perfeito: “que me esmaga de dor, de angústia e pranto”. É a presença espectral da amada que o esmaga, que o atormenta. A “espera” a que o título de refere não é pela chegada da mulher amada, mas sim pela viagem final do poeta ao encontro dela.

Essa vertente ultrarromântica – no Brasil, a chamada “segunda geração romântica”, de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela – tem certas características que hoje podem soar estranhas, como essa fidelidade extrema diante da morte. Mesmo antes do Romantismo, e até depois dele, era comum essa idealização da vida, optando o poeta por viver como uma personagem de si mesmo. Daí morrerem cedo, acometidos da imensa tristeza de viver. Além da tuberculose, claro, que, aos olhos de hoje, era mera consequência dessa prostração. Os poetas que chegavam à maturidade, entretanto, eram aqueles que separavam vida e poesia – e levavam suas vidinhas medianas longe das musas, chegando-se a elas somente quando convocados – pelo estro, que pressiona e impulsiona, ou pela necessidade financeira, o que é, por si, justificável. 

A poesia de Moacir Andrade, a tomar como parâmetro o texto “Espera”, distancia-se da excelência dos poetas não pintores do Clube da Madrugada. Volto novamente às lições de Manuel Bandeira, ao escrever na sua autobiografia intelectual, Itinerário de Pasárgada, que – parceiro de Jaime Ovalle e Villa-Lobos, entre outros – ao colocar letra em uma melodia, ele só pensava no efeito musical, jamais na poesia. Moacir Andrade, como um bom vate, acertou em cheio ao elaborar a letra que iria harmonizar com a boa música que Mauri Mrq faria para ela.  


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