Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 2/4

Zemaria Pinto

  

III

Antísthenes de Oliveira Pinto nasceu em Manaus, no dia 28 de novembro de 1929; era uma quinta-feira. O quinto dia da semana tem uma simbologia complexa. Na tradição pagã, é o dia consagrado a Júpiter, o organizador. Para os pitagóricos, por outro lado, é o número “nupcial” por excelência, pois é a soma do princípio celeste masculino, o 3, com o princípio terrestre feminino, o 2 (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 241). Isso não explica mas por certo avaliza a dedicação de Antísthenes ao trabalho e à família.

Filho de Antísthenes Nogueira Pinto e Delmira de Oliveira Pinto, Antísthenes foi casado com D. Ruth de Albuquerque Pinto – tendo deixado 5 filhos: Marcos, Antísthenes Filho, Wagner, Rita de Cássia e Márcia Cilene.  Exerceu muitas funções, no aspecto profissional: auxiliar de farmácia, escrivão de polícia, vendedor viajante, corretor de imóveis, corretor de seguros, gerente de rotisseria, empresário de artistas, professor de história e geografia – e, sobretudo, jornalista, militando no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã e na Tribuna da Imprensa, no Rio de Janeiro. Depois de mais de 10 anos longe de Manaus, voltou em 1970, onde, em paralelo ao exercício da crônica jornalística, desempenhou as funções de Diretor de Cultura e Promoções da Prefeitura de Manaus; Presidente do Conselho Diretor da Fundação Dr. Thomas; Superintendente Cultural do Amazonas; diretor administrativo da Imprensa Oficial do Estado e diretor do Museu do Porto de Manaus.

Ao longo de 19 anos de convivência, lembro-me de visitá-lo em pelo menos quatro endereços, em Manaus: 10 de Julho, Jardim Paulista, Parque 10 e Joaquim Nabuco. Trabalhando pela sobrevivência até os últimos dias, até onde lhe permitiu sua saúde, jamais teve tempo para se dedicar à sua arte de modo integral, o que não o impediu de nos legar uma extensa e premiada obra: 18 livros distribuídos em vários gêneros, ao longo de 35 anos, entre 1957 e 1992.

Poesia: Sombra e asfalto, Ossuário, Angústia numeral, A rebelião dos bichos, Curvas do tempo, mais a Poesia reunida.

Romances: Terra firme, A solidão e os anjos e Várzea dos afogados.

Novelas: Chavascal, Os agachados e Porão das almas.

Contos: É proibido perturbar os pássaros e Os suicidas.

Crônicas: Quelônios do Carabinani e Os garis das alturas.

Ensaios: Literatura: novos horizontes e Oito poetas amazonenses

Antísthenes Pinto faleceu em Manaus, aos 71 anos, a 03 de dezembro de 2000, um domingo – paradoxalmente, o dia da alegria, o dia do sol, o dia da luz.

 

IV

O modernismo no Brasil é consequência da explosão das vanguardas no resto mundo: impressionismo, expressionismo, cubismo, abstracionismo, futurismo, foram rótulos reunidos sob um título genérico. A preparação foi lenta: a exposição de Anita Malfatti, em 1917, que provocou a manifestação irada de Monteiro Lobato – Paranoia ou mistificação?; a publicação de Carnaval, de Manuel Bandeira, em 1919, de onde saiu o poema-ícone de 22, “Os Sapos”; a divulgação das obras de Brecheret e Di Cavalcanti, em 1920; e o golpe de misericórdia:  a publicação, em 1921, da série Mestres do passado, de Mário de Andrade, que, com reverência e até mesmo carinho, demolia impiedosamente a poesia parnasiana dos “príncipes” Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, entre outros menos notáveis. O que aconteceu em fevereiro de 1922 foi apenas um marco – uma festa para registrar a revolução fartamente anunciada.

Vieram, então, as divergências dos grupos de Antas e Antropófagos, que se estendia até a política, com as simpatias relativas a fascistas e comunistas. Apareceram novas gerações de escritores, e novas formas de olhar o mundo, como o romance nordestino, que reeditava o realismo do século XIX, com uma visão mais politizada; a poesia de cunho místico, que reeditava o simbolismo; e a poesia existencialista, que questionava o papel do homem diante de si mesmo e da sociedade, desnudando suas angústias frente às situações extremas da vida, mas também em confronto com a banalidade da vida.  

No Amazonas, temos, em 1922, o poema A Uiara, de Octavio Sarmento, publicado apenas em jornal e semi-inédito por 80 anos, como uma manifestação ainda pré-modernista.[1] O marco inaugural do movimento é a publicação, em 1935, de Ritmos de inquieta alegria, de Violeta Branca. Em 1951, com a publicação de Silêncio e palavra, de Thiago de Mello – e, principalmente, com a repercussão que essa obra viria alcançar, pelas penas dos mais importantes críticos literários da época – numa época em que os grandes críticos, como Tristão de Athayde, Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux e Cavalcante Proença, por exemplo, escreviam ordinariamente para os jornais... Com a publicação, eu dizia, de Silêncio e palavra, o Amazonas entrava em sintonia com a literatura, e especialmente com a poesia produzida nos “centros culturais mais avançados do país”. Eu explico o porquê desse “entrava em sintonia” com um breve trecho da introdução à Pequena antologia Madrugada, publicada em 1958, escrita por Jorge Tufic.

 

O cenário era a conhecida praça da Polícia Militar do Estado. E estava fundado, assim, o Clube da Madrugada. Seus fundadores tinham fama de boêmios, loucos, maníacos etc. Mas cada um daqueles boêmios, loucos ou maníacos sentia na própria carne o angustiante problema da terra que pisava. Saturados até à medula do academismo cediço e rotineiro, resolviam, ali mesmo, numa bela madrugada amazônica, externar suas ideias, dizendo da necessidade de se reunirem para oferecer resistência – parte que eram desse organismo ameaçado por cruenta enfermidade – aos males que, tão visivelmente, afligiam e perturbavam até o mais indiferente. (TUFIC, p. 8-9)

 

O Clube da Madrugada representava, pois, uma reação ao conservadorismo vigente na literatura feita até então. Mas não era só isso – havia um forte desejo de mudança que implicava em promover uma ruptura para começar do ponto zero, eliminando qualquer ideia de continuísmo. Era uma tomada de posição contra o que se chamava à época de “êxodo anual”, quando as melhores cabeças da terra iam em busca dos tais “centros culturais mais avançados do país”. Mais do que uma reação ao marasmo intelectual, era uma reação ao marasmo político, social e econômico por que passava o Amazonas.[2]

Uma observação interessante: na noite de 22 de novembro de 1954, quando o Clube foi fundado, apenas Farias de Carvalho e Luiz Bacellar representavam os poetas, a literatura de invenção, propriamente – os demais participantes eram de outras áreas do conhecimento, como os professores Saul Benchimol, Teodoro Botinelly e Francisco Batista, que viriam tornar-se notáveis economistas. O Clube da Madrugada representa um marco na história da cultura de Manaus: há um antes e um depois do Clube do Madrugada. Notem que eu falei “história da cultura” e não da literatura – pois além da poesia e da ficção, havia representantes das artes plásticas, como Moacir Andrade, mas também ensaístas cujo espectro de abordagem ia desde a própria literatura até os estudos sociais, políticos, econômicos e antropológicos. Devo ressaltar, como exemplo do que quero dizer, o nome do professor Jefferson Peres, ex-senador da república, um dos mais destacados parlamentares da virada do século, também membro do Clube da Madrugada. 

O papel de Antísthenes Pinto dentro do Clube se consolida com o passar do tempo, quando seu nome se torna referência na poesia, na prosa de ficção e na crônica. Ele se identifica de tal forma com o Clube que se considera o próprio – muitas vezes o ouvi dizendo, quase sempre irritado, “enquanto eu estiver vivo o Clube da Madrugada não morrerá”.  Antísthenes foi presidente do Clube em várias ocasiões e numa delas conduziu à presidência seu filho Wagner Pinto, garantindo a continuidade do Clube.



[1] Para maior aprofundamento, consultar SARMENTO, Octávio. A Uiara & outros poemas. Organização e notas: Zemaria Pinto. Manaus: AAL/Valer: 2007.

[2] Para mais informações, consultar PINTO, Zemaria. Lira da madrugada. Manaus: Coreli e Jiquitaia, 2014.