Amigos do Fingidor

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Práticas de curas na pré-história
João Bosco Botelho

Feiticeiro da gruta de Trois Frères, 10.000 anos.

De modo geral, quando se pensa a Medicina como uma especialidade social relacionada ao tratamento de doenças, existe a tendência de associá-la aos médicos e hospitais como partes indispensáveis ao exercício da cura das moléstias. Ao contrário desse pressuposto, hipervalorizado nos últimos cem anos, historicamente, as práticas de curas também envolveram outros agentes sociais também reconhecidos como curadores.

O certo é que as ações manuais humanas, usando ou não instrumentos, sobre outros homens e mulheres, para interromper as ameaças à vida, se perdem no tempo. Mesmo com escassos registros, as análises arqueológicas e paleopatológicas são competentes para estabelecer evidências de algumas práticas de curas na pré-história, em torno de 10.000 a.C.

É razoável pressupor que os grupos de Homo sapiens caçadores e coletores, presentes na Europa central, nesse período, em permanente enfrentamento das condições climáticas gélidas, na metade do ano, nas disputas pessoais ou com outros animais, priorizassem a sobrevivência em torno da segurança pessoal e coletiva.

A possibilidade de alguém ferir-se, determinando imobilidade, ou morrer, causando mudança no equilíbrio do grupo, podem ter provocado a especialização de alguns membros, que se voltaram à busca de soluções, estruturando os primeiros passos da arqueologia do curador.

Viver era o mais importante!

Nesta fase, quando o homem primitivo começou a tentar modificar o processo da vida para evitar a morte temida – fez-se médico.

Assim, as primeiras práticas de cura concretizaram-se na pré-história em comunidade ágrafas. A ação intencional do homem sobre o homem com intenção de mudar o curso da morte data de 25.000 anos, com o achado do osso do braço de um neanderthal que foi submetido à amputação. A cirurgia foi bem sucedida e o homem viveu muito tempo após a intervenção cirúrgica.

Sem dúvida, muitas doenças que existem até hoje estavam presentes muito antes do aparecimento do Homo sapiens. A questão maior é procurar entender como os nossos ancestrais se relacionavam com certas doenças, na luta cotidiana pela sobrevivência.

O estudo dos fósseis mostra que o homem pré-histórico estava sujeito a muitas doenças semelhantes as que nós, homens modernos, continuamos enfrentando. A fratura traumática representou uma das mais frequentes. Em algumas, confirmou-se sinais evidentes de infecção do osso, a osteomielite, igual a que se encontra nos hospitais de hoje. Também, evidência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico.

Infelizmente, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram corpos ou órgãos anteriores a 7.000 anos. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o pleistoceno médio, isto é, em torno de 100.000 anos.

A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico frequente nos países subdesenvolvidos, inclusive no Brasil, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, em torno de 7.000 anos a.C., constituindo-se, sem dúvida, no primeiro exemplar médico de tuberculose óssea.

O achado das doenças na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para conservar a saúde e evitar a morte. Nesse sentido, é possível teorizar comparando os comportamentos dos neandertalenses e outros ancestrais com os de certos animais quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas.

É provável que os homens pré-históricos tivessem se comportado de modo semelhante, fazendo a sucção da área ferida sangrante e pressionando o local para parar a hemorragia, construindo as primeiras medidas terapêuticas utilizadas pelos nossos antepassados.

Perdura a questão da existência de ritual mítico-religioso ligado à busca das causas e das soluções das doenças. Na gruta de Trois Frères, no Sul da França, é extraordinariamente significativa a pintura rupestre de um personagem em movimento de dança, datando de 10.000 anos a.C., travestido de cervo, em atitude que sugere ritual médico-mítico. De certo modo, é semelhante ao ritual da dança dos bisões, praticado pelo pajé, no Norte dos Estados Unidos, durante cerimônia simbolizando o poder animal na cura das doenças.

Durante o Neolitico, entre 10.000 a 7.000 anos a.C., o homem passou a incorporar procedimentos empíricos no tratamento das doenças. Algumas vezes, extremamente agressivos, como a trepanação do crânio, isto é a abertura da cavidade craniana com o auxilio de instrumentos suficientemente fortes para cortar os ossos que protegem o cérebro.

É facilmente comprovado que alguns dos homens pré-históricos que sofreram essa “cirurgia” sobreviveram muito tempo após a realização, o suficiente para favorecer novo crescimento do osso cortado.

Foram encontradas dezenas de outros crânios, com marcas semelhantes e com datações muito mais recentes, comprovadas pelo carbono 14, no altiplano boliviano e em algumas ilhas do Pacífico, em culturas que não tiveram contato interétnico sugerindo que o conteúdo do crânio tem sido entendido com maior importância, relacionado às doenças, se comparado com outras áreas do corpo.


Craniotomia realizada há 10.000 anos.