Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Universidades, medicina e igreja na idade média europeia
João Bosco Botelho
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Catedrático.

Com a divisão do Império Romano, iniciada pelo Imperador Constantino e consolidada por Teodósio, entre os séculos IV e V, o Império Romano do Ocidente adotou Milão, na Itália, como capital, e o Império Romano do Oriente, Constantinopla, atual Istambul.

O Império Romano do Ocidente sofreu profunda transformação sócio-política nos anos seguintes em consequência da cristianização, da invasão dos visigodos e da gradativa mudança do sistema mercantil-escravista para o feudal. Simultaneamente, as práticas médicas também foram envolvidas nas alterações em curso.

Com a cristianização das práticas administrativas, maior no Império do Ocidente, a influência exercida pela Igreja na Medicina transformou a doença em sinônimo de pecado e a cura divina no melhor tratamento. Desse modo, abandonou os avanços no diagnóstico e tratamento greco-romanos e retornou de forma agressiva às concepções médicas correntes, nos dois milênios anteriores, na Mesopotâmia e no Egito, quando a Medicina estava fortemente agregada às vontades dos muitos deuses e deusas.

No Império Romano do Ocidente, a partir do século VI, na medida em que a Igreja proibia o estudo da anatomia humana, reforçava a aura sagrada da doença e operava o tratamento exclusivamente no milagre, também fecharam-se as escolas de Medicina e os médicos laicos tornaram-se minguados.

Os tratamentos de qualquer doença passaram a ser realizados nos mosteiros pelos padres e freiras das diferentes ordens religiosas. Entre os mosteiros que se destacaram no exercício médico destaca-se o de Monte Cassino, na Itália, construído sobre antigo templo de Apolo.

Outras desastrosas mudanças acompanharam a cristianização, na Europa central: abandono das normas de higiene pessoal e coletiva, fechamento das casas públicas de banho para evitar o contato dos corpos, favelização generalizada das cidades, desabastecimento de água potável, esgotos a céu aberto, enterramento dos mortos nas áreas urbanas, incontáveis ratos reproduzindo-se nos lixos acumulados e sem coleta organizada, sem dúvida, contribuíram para o agravamento das doenças endêmicas, que culminariam com os surtos da peste negra, matando mais da metade da população europeia.

Sem outras opções, milhares de pessoas desesperadas e doentes usavam relíquias e talismãs, esperançosas da proteção das doenças, e seguiam as romarias na busca dos milagres, nos santuários cristãos, em Jerusalém, até a conquista pelos árabes, posteriormente, substituída por Santiago de Compostela.

Exemplo marcante de como a superstição era importante pode ser sentido nas palavras de Santo Agostinho: “O perfume de azeviche afugenta os demônios e seu uso desata e desfaz o quebranto, ligaduras e encantamentos e todos os fantasmas tristes e melancólicos”.

Nos séculos seguintes, sob pressão das populações desassistidas, os padres também exerceram a Medicina fora dos muros dos mosteiros. Sem nenhuma formação técnica, os tratamentos realizados pelos religiosos expunham o despreparo retratado no elevado número de complicações e mortes entre os doentes.

Em consequência dos atritos, alguns causando revoltas populares, com destruição de igrejas, os padres e freiras foram proibidos de exercer a Medicina fora dos mosteiros por determinação do Concílio de Remis (1131) e do Concílio de Roma (1139).

Esta situação insustentável contribuiu para a organização, sob a guarda da Igreja, nos mosteiros e nas abadias, de centros de ensino de Medicina, a partir da leitura dos livros de Hipócrates e Galeno, com o ensino pautado em dois procedimentos:

- Lectio: leitura e comentários das obras greco-romanas;
- Disputio: debate após a leitura.

A Escola de Medicina de Salerno, no sul da Itália, organizada nas dependências do já famoso convento beneditino, representou uma das mais importantes nesse processo de reconstrução da Medicina laica no medievo europeu. Uma das principais heranças desse grupo de Salerno, reproduzindo os ensinamentos hipocráticos, notabilizou-se na famosa frase: Primo, nou nuocere (Em primeiro, não façam mal).

Simultaneamente, entre os séculos XI e XII, surgiram outros centros de ensino que iriam mudar o perfil da Medicina medieval europeia, que mantiveram características semelhantes: maior influência laica com estrutura teórica hipocrático-galênica:

- Escola de Medicina de Monte Cassino;
- Universidade de Bolonha;
- Universidade de Montpellier;
- Universidade de Oxford;
- Universidade de Cambridge;
- Universidade de Toulouse;
- Colégio Robert De Sorbon que Originou a Sorbonne.

Como sequência, ao desmancharam-se os nós que sustentavam as proibições eclesiásticas, Mondino de Luzzi(1270-1326), professor da Universidade de Bolonha, realizou uma das primeiras dissecções humanas em 1315.

A Cátedra, como símbolo do ensino medieval, remonta a essa época. O professor sentado numa grande cadeira ditava a aula aos alunos calados e atentos, ávidos de conhecimentos, sem questionar as exposições do catedrático.
Santa Luzia, protetora dos olhos.