Amigos do Fingidor

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Medicina nas primeiras cidades do Egito
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João Bosco Botelho
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Horus, um dos importantes deuses curadores.

Com a consolidação do sedentarismo, nas margens dos rios permanentes e piscosos, em torno de 5.000 anos a.C., no Norte da África — Egito e Mesopotâmia — e algumas áreas da Ásia — Índia —, importantes modificações foram se processando nos antigos grupos nômades de caçadores-coletores. Entre as mais significativas, que mudariam para sempre as relações sociais humanas anteriores, se destacaram: a construção das elites dominantes laicas e religiosas, as práticas agrícolas, os ajustes e defesa da territorialidade e os panteões.

Como fruto dessas mudanças, as sociedades francamente hierarquizadas acolheram regras destinadas às propriedades privadas, moldando os assentamentos mais duradouros.

Os aldeamentos foram substituídos pelas primeiras cidades e, no milênio seguinte, as civilizações regionais se consolidaram e assimilaram diferentes formas de poderes, predominando o teocrático e o mercantil-escravista. As guerras contínuas pela posse do território ofereciam escravos e terras, fortalecendo a escravidão e a propriedade privada.

Muitas mudanças provocadas pelo sedentarismo contribuíram para fortalecer a figura social do médico. De modo geral, os registros disponíveis, no Egito (Novo Império, XVIII a XX dinastias, 1.540 a 1.069 a.C.), Mesopotâmia (Babilônia, no período de Hammurabi, 1792-1750 a.C.) e Índia (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), indicam que apesar de poucos, os médicos já eram personagens sociais reconhecidos e com nominação própria, instruídos na arte de curar por meio de remédios e cirurgias.

Os médicos dessas cidades, sem um processo teórico que explicassem a saúde e a doença, apesar de terem iniciado a Medicina como uma especialidade social, ficavam atados às crenças e ideias religiosas, onde a vontade dos deuses e deusas era mais poderosa do que os remédios e as cirurgias.

Por outro lado, mesmo com a comprovação histórica da estreita ligação dos médicos ao panteão — Medicina divina — em ensaios de acertos e erros, compondo o conhecimento historicamente acumulado, houve a busca de novos saberes da natureza circundante para curar as doenças — Medicina empírica. É possível que a proximidade entre essas duas práticas médicas, em especial as praticadas nos templos pelos representantes dos deuses e deusas, os sacerdotes e as sacerdotisas, tenha promovido a semente que levaria à construção da Medicina oficial, amparada pelo poder dominante.

De certo modo, mutatis mutantis, nos quatro cantos do planeta, continuamos comprovando a existência dessas três Medicinas.

EGITO
O processo de mutações em torno do sedentarismo de caçadores e coletores, nas margens férteis do Rio Nilo, foi iniciado em torno de 6.000 anos, seguido da gênese da territorialidade, elites, práticas agrícolas e panteões.

Desde os primórdios dos registros, a presença do médico estava assinalada como um especialista social desfrutando de relevância. Os famosos papiros médicos, produzidos em diferentes fases, Ebers (1550 a.C.), Smith (1540-1600 a.C.), Berlin (1540 a.C.), Brugsch (1540 a.C.), Londres (1540 a.C.), Kahoun (2000 a.C) e Chester-Baetty (1300 a.C.) contêm extraordinárias referências de diagnósticos e tratamento de muitas doenças.

Apesar de os tratamentos estarem descritos como receitas de bolo, sem previsibilidade das variações dependentes das mudanças do binômio doente-doença, é possível perceber a expectativa em torno de três questões que ainda dominam as discussões médicas dos dias atuais:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

Por outro lado, sem um processo teórico capaz de explicar a saúde e a doença fora da vontade dos deuses e deusas, a Medicina egípcia caminhava ao lado dos incontáveis taumaturgos:
- Thoth, curou Horus da picada do escorpião;
- Imnhotep, filho de Ptah;
- Isis, a curadora de Ra, ressuscitava certos mortos;
- Sechmet, a protetora das doenças femininas;
- Zoser, rei da Terceira Dinastia, identificava-se como Sa ou aquele que cura e nas inscrições do templo recebeu o título de médico divino.
- Sekhmet, deus com cabeça de leão, sanguinário, causador de doenças e epidemias;
- Hem Ka, relacionado à circuncisão.

Os médicos eram distribuídos no território e recebiam diferentes identidades:
- Per Âa Sounou, médico da corte;
- Sounou Grergetl, médico das colonias;
- Hérishef Néknet, médico das minas e dos templos.

Entre os muitos fatos de extraordinária importância no processo de estruturação da Medicina como especialidade social, iniciada nas primeiras cidades, atada ao sedentarismo dos grupos nômades de caçadores e coletores, está centrado na claríssima busca para vencer as limitações impostas pelas doenças e pela morte. Mesmo com a forte presença das idéias e crenças religiosas nas curas, os fartos registros dos papiros apontam para os caminhos traçados pelos primeiros médicos no aprimoramento dos diagnósticos e das terapêuticas.

Foram encontrados depósitos específicos de leite materno, sugerindo que havia o aproveitamento dirigido às puerperais com dificuldade de amamentação. A formação dos bancos de leite materno, no Brasil, ainda de modo artesanal, só foi iniciada há pouco tempo.

No Papiro de Ebers está descrito um quadro clínico que sugere ser o infarto do miocárdio e o reconhecimento tácito de não haver tratamento: “Se examinares um homem que sofre do estômago, que se queixa de dores no braço e no peito, mais precisamente na parte lateral... diz-se então que se trata da doença wid*... deves dizer: é a morte que se aproxima dele”.

No Papiro de Smith, o tratamento prescrito para a luxação da mandíbula é exatamente igual ao de hoje: “Se examinares um homem com deslocamento da mandíbula, acharás sua boca aberta (e) se sua boca não pode ser fechada, deves colocar teu(s) polegar(es) no fim dos dois ramos da mandíbula, no interior da boca (e) tuas duas garras abaixo do queixo (e) deves produzir um recuo de tal forma que volte ao seu lugar. deves dizer a respeito disso: eis alguém que tem deslocamento da mandíbula, uma doença de que tratarei. Deves amarrá-la com ymrw* (e) mel, todos os dias até a recuperação”.

* “Tradução” dos hieróglifos, segundo Pain Entralgo.

Depósito de leite materno.