Amigos do Fingidor

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Gal Costa em quatro ou cinco tempos

 De musa da Tropicália a diva do samba-canção

Zemaria Pinto


“Eu não tenho medo de mudar, gosto do novo e encaro os possíveis erros de frente, porque sei que só assim se pode criar. O caminho é feito de descobertas e sou feliz assim.”

(Gal Costa, em 1970)[1]

 

 

Se você chegou até aqui é porque percebeu que o título é uma provocação. Não há apenas duas Gal, mas múltiplas. Tomemos a mão da menina extremamente tímida, que, aos 24 anos, ainda quase Maria da Graça, iniciou uma revolução estética e de costumes – enquanto o país era dilacerado por uma ditadura sanguinária. Gal, sem pegar em armas, fez a sua parte na Resistência.

O primeiro álbum de que ela participou foi Domingo (1967), de Caetano, onde era coadjuvante de luxo. Caetano, na contracapa, justifica a parceria: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas”. Como se percebe, Caetano ainda não abrira a mente para as inovações que ele, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Os Mutantes et cetera promoveriam a partir do ano seguinte, quando lançaram Tropicalia ou Panis et circencis, onde Gal seria novamente figurante, não mais cantando sambas...

 

Em 1969, enfim, o primeiro solo: na capa, o seu nome e o rosto em close, saindo de um look de plumas, o olhar perdido nalgum vão do éter... “Não identificado”, de Caetano, a primeira faixa, era o primeiro estranhamento. O arranjo do maestro Rogério Duprat, pleno de cordas, colocava o ouvinte numa sala de cinema, onde se projetava um filme de sci-fi, mas a poesia da letra apontava, num processo metalinguístico, para algo mais singelo: apenas um “iê-iê-iê romântico”. E Caetano cria uma rima interna sublime: “um anticomputador”: romântico x anticom...

Na sequência, “Sebastiana”, do repertório de Jackson do Pandeiro, com uma levada de rock, no arranjo de Gil, era o tributo à tradição, um dos pilares da Tropicália. “Saudosismo”, de Caetano, cumpre a mesma função, ao reverenciar criticamente a Bossa Nova: “as notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis”. E conclui com uma avalanche de “chega de saudade, chega de saudade, chega de saudade...”. O novo chegara.

E Gal repete “Baby”, gravada com Caetano, uma das mais emblemáticas e polêmicas do álbum manifesto Tropicalia (assim mesmo, sem acento). “Leia na minha camisa: Baby, I love you”. A letra de Caetano reforça a ideia de Iê-iê-iê romântico e clama “você precisa ouvir aquela canção do Roberto”. E o álbum traz duas delas, com o indefectível parceiro Erasmo: “Se você pensa” e “Vou recomeçar”. A MPB se expandia, ainda que a contragosto dos caretas.

O álbum traz ainda outras canções de Gil, Torquato Neto, Caetano, Tom Zé e Jorge Ben. A polêmica “Lost in the Paradise”, com letra em inglês, era uma agressão ao purismo de muita gente. Mas, a composição mais forte do álbum, uma parceria de Gil e Caetano, era “Divino, maravilhoso” – uma alusão à luta armada que se desenvolvia nas sombras, com a imprensa censurada, noticiando apenas os releases paridos nos quartéis: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. No mesmo ano, a dupla de compositores gravou “Alfômega”, no terceiro disco de Caetano, uma letra hermética, onde Gil grita ao fundo o nome do guerrilheiro Marighella. A censura comeu mosca. Marighella, assassinado covardemente em novembro daquele ano, hoje é História.

 

Talvez para compensar os dois anos como coadjuvante, que ela, baixinho, dizia que foram anos de aprendizado, Gal lança ainda em 1969 o segundo disco solo, radicalizando as propostas do disco anterior. Na capa, apenas as três letras do primeiro nome sobre um quadro policrômico, com representações de animais míticos e o seu rosto, em meio perfil, em destaque, no lugar de uma possível assinatura. O quadro era uma leitura do artista plástico baiano Dicinho, creditado como Dircinho, do conjunto das músicas do disco – de “Cinema Olympia” a “Pulsars e Quasars”. Ouça o quadro (ou a capa) e veja o disco. Ou vice-versa. A música psicodélica invadia o Brasil.

Gil, Caetano, Jorge Ben, Roberto/Erasmo e a dupla Macalé/Capinam assinavam as nove faixas do disco. Lanny Gordin (ainda chamado Alexander) faz a diferença na guitarra, correspondendo plenamente aos arranjos sempre ousados do maestro Duprat.

Entre as canções, destacam-se “The empty boat”, de Caetano, só pela provocação; “Cultura e civilização”, de Gil, um rock pesado, onde Gal solta a voz com personalidade; “Com medo, com Pedro”, também de Gil, parece dialogar com “Divino, maravilhoso”: “quem pisar no fundo / encontra a porta / do fim de tudo”; “Objeto sim, objeto não”, do quase onipresente Gil, permite ao maestro Duprat exercitar seu lado “música concreta”, com a fragmentação da melodia em sons que se encontram mais adiante, guiados pela vibrante voz de Gal. “Pulsars e quasars”, de Macalé e Capinam, é outra ousadia do trio Gal-Gordin-Duprat, numa síntese: “os ruídos terão sentidos e teus sentidos perdidos”.

“Cinema Olympia”, de Caetano, numa levada de rock, “Tuareg”, de Jorge Ben, num exótico arranjo árabe, não comprometem. “País tropical”, entretanto, do mesmo Ben, com o auxílio luxuoso de Gil e Caetano na interpretação, não é inesquecível, tantas as regravações dessa música, que, para meu gosto, tem o agravante de destoar do momento histórico. Mas, você não precisa concordar comigo, querida leitora.

Só falei de oito músicas? Ah, tá, faltou “Meu nome é Gal”, que segundo todas as fontes históricas, disfóricas e folclóricas foi feita só por Erasmo, entrando Roberto como sócio e não parceiro. Mas, o que importa é que o iê-iê-iê é fofíssimo, começando como um anúncio de classificado – de uma moça chamada Gal, de 24 anos, amiga de Gil e Caetano e mais um monte de gente boa, procurando namorado – e termina com a assinatura da cantora, da maneira mais completa: com a voz, a melhor tradução de Gal.

Este segundo disco vendeu muito menos que o primeiro, o que não quer dizer absolutamente nada. Azar do público. Pensando na construção histórica da cantora Gal Costa, diria que é um disco fundamental na definição do perfil e do jeito de cantar daquela que viria a ser a referência maior da geração que surge na segunda metade da década de 1960 e, sem envelhecer, chega ao zênite da plenitude na década seguinte.

 

Em 1970, Legal é o terceiro solo. Com capa e contracapa de Hélio Oiticica, arranjos de base de Lanny e Macalé, e arranjos de orquestra de Chiquinho de Moraes, é um disco mais ameno que o anterior, mas nem por isso menos ousado. Abrindo com “Eu sou terrível”, da dupla Roberto/Erasmo, a guitarra de Lanny e a voz de Gal no último volume, parece uma continuação do disco anterior. A letra, que na voz de Roberto soa como autoafirmação machista, na voz de Gal, é um grito ameaçador, de resistência: “estou com a razão no que digo / não tenho medo nem do perigo”. Alguém lembrou de “não temos tempo de temer a morte”?

Um xaxado de Gil, “Língua do P”, desfaz a impressão de continuidade. Uma intro de não mais que dez segundos, com guitarra, baixo e bateria, dá lugar a uma base com sanfona, zabumba e triângulo – e muita ironia: “gapa-ranpan-topô quepê vopô-cepê nãopão vaipai compom-prepre-enpen-derper bulhufas!” A censura, para sorte nossa, não compreendeu nada mesmo.

No quesito letras em inglês, uma overdose: “Love, try and die”, de Macalé, Gal e Lanny, é uma boutade à Broadway, com a voz de Gal soando límpida como água de fonte, e um coro luxuoso, formado por Erasmo, Tim Maia, Macalé e uma misteriosa Nana. Ou seria Naná, o percursionista? “London, London” dispensa comentários. É a melancólica “canção do exílio” de Caetano, com uma levada caribenha. O uso da gaita de boca é extraordinário, mas o músico não foi creditado. Para fazer justiça, ainda que tardia: foi Angela Ro Ro, ela mesma, com sua própria gaita, segundo depoimento tardio de Macalé. A terceira letra mistura inglês e português, blues e samba-canção: “The archaic lonely star blues”, de Macalé e Duda. Pura experimentação.

Aliás, da mesma dupla, “Hotel das estrelas” começa como um blues sombrio e evolui para um rock progressivo, de letra cortante: “no fundo do peito esse fruto / apodrecendo a cada dentada”. “Acauã”, de Zé Dantas, um clássico do repertório de Luiz Gonzaga, vira uma balada que, após uma pausa de segundos, se transforma pela guitarra de Lanny e pela voz de Gal. “Minimistério”, de Gil, remete-nos de volta a “Divino, maravilhoso” ao ecoar as sinistras palavras de Kurtz, no Coração das trevas: “oh, terror, terror, terror...”

Um inusitado frevo de Caetano, “Deixa sangrar” é uma referência direta ao Let it Bleed, dos Stones, mas é também uma espécie de “carnaval do apocalipse”, uma referência direta à situação política do Brasil: “deixa o mar ferver / deixa o sol despencar / deixa o coração bater / se despedaçar / chora depois, mas agora / deixa sangrar / deixa o carnaval passar”. A ditadura fazia sangrar, mas a sangria stoniana – que não tem nada com a conformista “Let it Be”, dos Beatles, posterior –, é uma celebração hedonista, a cara de Keith Richards, o que nos leva a entender o “carnaval do apocalipse” como uma metáfora da ditadura.

“Falsa baiana”, clássico do mineiro Geraldo Pereira, fecha o disco, de maneira surpreendente: Gal reverencia a Bossa Nova, especialmente o conterrâneo João Gilberto, cantando num tom que não usava desde o pioneiro Domingo. Uma transformação se anunciava.

Os símbolos da resistência se espalham pelas dez faixas de Legal. Com Gil e Caetano no exílio, Gal vai encontrar-se com eles em Londres. Em agosto de 1970, assistem ao lendário Festival da Ilha de White. Gal encanta-se em particular com Jimi Hendrix, que morreria no mês seguinte. De volta para o Brasil, ela frequenta, em Ipanema, um lugar conhecido como Dunas do Barato – descrito por quem andava por lá como um oásis de liberdade em meio ao ambiente repressivo do país. Com o tempo, o local ganhou um segundo nome, em homenagem a sua mais notável frequentadora: Dunas da Gal.

 

Para falar do quarto disco solo, o emblemático Gal a todo vapor, também conhecido como FA-TAL, gravado ao vivo, é preciso dizer de uma das mudanças fundamentais na indústria da música de entretenimento nestes 50 anos. Hoje, ou pelo menos até a explosão do streaming e da pandemia, há uma sequência básica: disco, show do disco, disco do show. No início dos anos 1970, um disco ao vivo, com todas as suas imperfeições técnicas, era um acontecimento raro. Havia ainda o conceito de “ao vivo, no estúdio”, mas essa é uma outra história.

Gravado no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana, em 1971, o disco é todo ele uma invenção coletiva, da qual participam, entre muitos outros: o veterano bossa-novista Roberto Menescal (direção de produção), Lanny Gordin (arranjos, direção musical e guitarra); Novelli (baixo); Jorginho (bateria); Baixinho (percussão); Luciano Figueiredo (cenografia e capa); Óscar Ramos (capa) e Wally Salomão (naquela época, ainda Sailormoon, na direção geral). Na contracapa, uma foto parcial de Gal tocando violão e as palavras “boca microfone mão violão”. Estas palavras combinavam com a capa, onde se lia, sobre a boca vermelhíssima de Gal, “FA-TAL”. Óscar me confidenciou que ele e Luciano não concordaram, de início, com a interferência de Wally, por achá-la óbvia, mas acabou virando um emblema do disco e a síntese da sensualidade que ele emana ainda hoje.

O disco lançado como álbum duplo, hoje é disponibilizado, em CD e no streaming, na ordem inversa – primeiro o disco dois, depois o um. E isso tem uma explicação. Na ordem que prevaleceu, o show começa intimista, com Gal cantando e se acompanhando ao violão e evolui, na nona faixa, “Vapor barato”, para um trabalho coletivo, sob o comando febril de Lanny. Na verdade, essa era a ordem das músicas no show. Das dezenove faixas, apenas três haviam sido gravadas antes por Gal: “Coração vagabundo”, “Hotel das estrelas” e “Falsa Baiana”. Entre as novidades, composições de Caetano e das duplas Macalé/Wally, Moraes/Galvão e Roberto/Erasmo. Gil é uma inexplicável ausência. Do repertório de Luiz Gonzaga, a lancinante “Assum Preto”, cantada como jamais será cantada novamente. Ainda no capítulo “velha guarda”/tradição, a clássica “Antonico”, de Ismael Silva. A lista fecha com duas faixas do folclore baiano: “Fruta gogóia” e “Bota a mão nas cadeira”. 

Ao contrário dos discos anteriores, onde uma Gal politizada desafia o establishment, a censura, a ditadura, este continua no mesmo tom, mas, sem falar em política, desafia os “bons costumes” – ou eu preciso explicar o que é “vapor”?

É difícil apontar destaques sem ser prolixo e redundante. Gal a todo vapor é, como se dizia na época, um desbunde. Uma experiência única e definitiva. Não é apenas o “ponto alto da contracultura no Brasil”, um chavão desgastado. É, sim, um dos momentos culminantes da música e, por extensão, da cultura brasileira.

 

Em 1974, assisti a um show de Gal Costa pela primeira vez, na quadra do Olímpico Clube, em Manaus. Não sei mais o que é memória ou o que é sonho, delírio, invenção. Era o show do quinto disco solo, Índia, lançado no ano anterior – portanto, dois anos após a catarse de Gal a todo vapor. Transpirando sensualidade, Gal cantou músicas do novo disco, e, para encanto da geral, várias de FA-TAL. Hoje percebo que Índia, se não era um caminho novo, era um novo jeito de caminhar, como diria o querido Thiago.

À guarânia clássica, de origem paraguaia, um tanto cafona para os meus mal-acostumados ouvidos, somava-se um dolorido samba-canção de Lupicínio, “Volta”. Ali nascia uma nova Gal.

Em não mais que três anos, a presença de Gal Costa eternizara-se na música brasileira – e nem precisava das dezenas de discos e centenas de interpretações antológicas dos cinquenta anos seguintes. Aqueles primeiros quatro discos bastavam.

    

              



[1] In: LIMA, Marisa Alvarez. Marginália: Arte & Cultura na “idade da pedrada”. 3. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.