Amigos do Fingidor

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Um diálogo poético com Thiago de Mello 1/2



Tenório Telles*


Thiago,

Fiquei sensibilizado, no nosso último encontro, com o teu ânimo e altivez com que enfrentas as circunstâncias do tempo que te afligem. Nem as dores e nem o cansaço dos anos abateram teu ser resistente, pois como dizes

   De madeira lilás (ninguém me crê)
   se fez meu coração. Espécie escassa
   de cedro, pela cor e por conter
   no seu âmago a morte que o ameaça.
   [...]
   No crepúsculo estou da ribanceira,
   entre as janelas e o chão que me abençoa
   as nervuras. Já não faz mal que doa
   meu bravo coração, de água e madeira.

Filho da terra verde ribeirinha, dos encantados e dos rios amazônicos – teu coração tem o vigor das árvores centenárias da floresta e teu ser, a fundura dos rios e seus mistérios. Por isso resististe às tempestades, às dores e às perdas que te foram dadas viver. E agora mais uma primavera, florescente girassol, abre-se no teu peito: completas 93 anos e segues tua travessia com coragem, humor e sem lamentos.
Ao chegar em casa decidi revisitar teus livros e logo me deparei com o poema “Na manhã do milênio”, em que refletes sobre o significado da existência e te questionas sobre a validade dos teus sonhos, as promessas não cumpridas do nosso tempo e o sentido da tua própria poesia. Teu poema é doloroso porque nos expressa igualmente em nossas inquietações, buscas e sonhos nem sempre realizados. Mas tua capacidade de encantar as palavras, colori-las e revesti-las de humanidade o tornou belo e pungente. Li-o devagar, ouvindo cada verso, imaginando tuas mãos deslizando pela página, tua respiração e o compasso do teu coração relembrando os fatos e vivências que evocas no texto:

   De que valeu o assombro indignado
   e esta perseverança que me acende
   em pleno dia a estrela que me guia,
   seguro do meu chão e do meu sonho?
   [...]
   De que valeram todas as palavras
   que proferi na treva da esperança?
   Tão pouco, talvez nada. Não consola
   saber que fiz, que fiz a minha parte,
   que reparti com tantos o diamante,
   que olhei o sol de frente e não fugi
   (nem do meu próprio medo).
   De consolo não cuido. Pois valeu.
   Que tudo vale a pena quando a alma
   não é pequena.
                            Não sei o tamanho
   da minha alma. Só sei que vou varando
   o fim do rio, já posso discernir
   a margem que me chama. Mas obstinado
   confiante sigo no poder distante
   da estrela alucinante. Que destino
   de estrela é o de brilhar.
                             E mesmo extinta
   brilhante permanece sobre o mundo.

Este poema bem poderia ser teu testemunho poético ou tua carta ao mundo – como declarou Emily Dickinson ao conceber um de seus textos. Hoje percebo que teu canto transcende qualquer declaração ou tema particular. Tua poesia é teu chão, tuas vivências e tua infância, onde aprendeste a enfrentar os humores da natureza e, “entre os rebojos”, perdeste o medo. Teus versos tresmalhados de água, barro e vida se fizeram protesto e canção. Por isso carregas esse “grito que cresce”

   Cada vez mais na garganta,
   cravando seu travo triste
   na verdade do meu canto.

   Canto molhado e barrento
   de menino do Amazonas
   que viu a vida crescer
   nos centros da terra firme.
   Que sabe a vida da chuva
   pelo estremecer dos verdes. 

Caro amigo,

Sei o quanto a vida te foi cara pelas tuas escolhas e pelos compromissos que assumiste diante do teu tempo e da humanidade. Entre um existir resignado e a luta pela construção de um mundo menos bárbaro e desigual, te lançaste nas águas da história e, como os antigos argonautas, foste em busca da lâmpada capaz de despertar os seres humanos do negror da indiferença e da ignorância. Tua arma foi teu canto: sabias que as noites passam e por mais que os perversos prolonguem seu domínio de sombras e mentiras, a aurora, brasa incendida sob as cinzas, se tornará fogo, claridade. E não sendo possível deter o tempo, sabes que “a manhã vai chegar”. Que o novo é inevitável. Entre noites, guerras e solidão o destino humano se tece indiferente. E o que importa, como disseste, é “poder dar amor a quem se ama / sabendo que é a água / que dá à planta o milagre da flor”.
Pensando nisso, lembrei do poema que escreveste quando estiveste preso com o Cony, o Callado e o Glauber Rocha. Era o início do ciclo de sombras que se abateu sobre o país e vocês, como os espartanos nas Termópilas se lançaram contra a força dos senhores do poder. Nessa “Iniciação do prisioneiro”, escrito no cárcere em novembro de 1965, ressaltas exatamente a necessidade de afirmar o Amor como alento e contraponto àquele momento de suplício:

   É preciso que Amor seja a primeira
   palavra a ser gravada nesta cela.
   Para servir-me agora e companheira
   seja amanhã de quem precise dela.

Alguns anos depois viveste situação semelhante no Chile quando o sonho de Allende e do povo chileno foi tragado pelo fogo e pela morte. Por pouco não perdeste a vida, como ocorreu com o cantor Víctor Jara e outros artistas chilenos. Mas a providência te queria vivo, apesar do longo inferno que tiveste que amargar no exílio. Há um fato da tua história que me comove ainda hoje. Ele me foi relatado por um poeta peruano. Contou-me que estavas no Peru e para saciar tua saudade da pátria organizaram uma expedição clandestina ao rio Solimões para que pudesses ver, sentir o cheiro e estar próximo da tua terra. Fico imaginando os sentimentos que rebojavam dentro de ti – tão perto e tão longe do país. Dos teus familiares. Essas experiências te ensinaram que, apesar das intempéries, é preciso continuar navegando

   Como um rio, que nasce
   de outros, saber seguir,
   junto com outros sendo
   e noutros se prolongando
   e construir o encontro
   com as águas grandes
   do oceano sem fim.
  
   Mudar em movimento,
   mas sem deixar de ser
   o mesmo ser que muda.
   Como um rio.


(Conclui na próxima sexta-feira)

*Tenório Telles é poeta e ensaísta, autor de Canção da esperança & outros poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no Amazonas.