Tenório
Telles*
Thiago,
Fiquei sensibilizado, no nosso último
encontro, com o teu ânimo e altivez com que enfrentas as circunstâncias do
tempo que te afligem. Nem as dores e nem o cansaço dos anos abateram teu ser
resistente, pois como dizes
De madeira lilás
(ninguém me crê)
se fez meu coração. Espécie escassa
de cedro, pela cor e por conter
no seu âmago a morte que o ameaça.
[...]
No crepúsculo
estou da ribanceira,
entre as janelas e o chão que me abençoa
as nervuras. Já não faz mal que doa
meu bravo coração, de água e madeira.
Filho da terra verde ribeirinha, dos
encantados e dos rios amazônicos – teu coração tem o vigor das árvores
centenárias da floresta e teu ser, a fundura dos rios e seus mistérios. Por
isso resististe às tempestades, às dores e às perdas que te foram dadas viver. E
agora mais uma primavera, florescente girassol, abre-se no teu peito: completas
93 anos e segues tua travessia com coragem, humor e sem lamentos.
Ao chegar em casa decidi revisitar teus
livros e logo me deparei com o poema “Na manhã do milênio”, em que refletes
sobre o significado da existência e te questionas sobre a validade dos teus
sonhos, as promessas não cumpridas do nosso tempo e o sentido da tua própria
poesia. Teu poema é doloroso porque nos expressa igualmente em nossas
inquietações, buscas e sonhos nem sempre realizados. Mas tua capacidade de
encantar as palavras, colori-las e revesti-las de humanidade o tornou belo e
pungente. Li-o devagar, ouvindo cada verso, imaginando tuas mãos deslizando
pela página, tua respiração e o compasso do teu coração relembrando os fatos e
vivências que evocas no texto:
De que valeu o assombro indignado
e esta perseverança que me acende
em pleno dia a estrela que me guia,
seguro do meu chão e do meu sonho?
[...]
De que valeram todas as palavras
que proferi na treva da esperança?
Tão pouco, talvez nada. Não consola
saber que fiz, que fiz a minha parte,
que reparti com tantos o diamante,
que olhei o sol de frente e não fugi
(nem do meu próprio medo).
De consolo não cuido. Pois valeu.
Que tudo vale a pena quando a alma
não é pequena.
Não sei o tamanho
da minha alma. Só sei que vou varando
o fim do rio, já posso discernir
a margem que me chama. Mas obstinado
confiante sigo no poder distante
da estrela alucinante. Que destino
de estrela é o de brilhar.
E mesmo extinta
brilhante permanece sobre o mundo.
Este poema bem poderia ser teu
testemunho poético ou tua carta ao mundo – como declarou Emily Dickinson ao conceber
um de seus textos. Hoje percebo que teu canto transcende qualquer declaração ou
tema particular. Tua poesia é teu chão, tuas vivências e tua infância, onde
aprendeste a enfrentar os humores da natureza e, “entre os rebojos”, perdeste o
medo. Teus versos tresmalhados de água, barro e vida se fizeram protesto e
canção. Por isso carregas esse “grito que cresce”
Cada
vez mais na garganta,
cravando seu travo triste
na verdade do meu canto.
Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
que viu a vida crescer
nos centros da terra firme.
Que sabe a vida da chuva
pelo estremecer dos verdes.
Caro
amigo,
Sei o quanto a vida te foi cara pelas
tuas escolhas e pelos compromissos que assumiste diante do teu tempo e da
humanidade. Entre um existir resignado e a luta pela construção de um mundo
menos bárbaro e desigual, te lançaste nas águas da história e, como os antigos
argonautas, foste em busca da lâmpada capaz de despertar os seres humanos do
negror da indiferença e da ignorância. Tua arma foi teu canto: sabias que as
noites passam e por mais que os perversos prolonguem seu domínio de sombras e
mentiras, a aurora, brasa incendida sob as cinzas, se tornará fogo, claridade.
E não sendo possível deter o tempo, sabes que “a manhã vai chegar”. Que o novo
é inevitável. Entre noites, guerras e solidão o destino humano se tece
indiferente. E o que importa, como disseste, é “poder dar amor a quem se ama /
sabendo que é a água / que dá à planta o milagre da flor”.
Pensando nisso, lembrei do poema que
escreveste quando estiveste preso com o Cony, o Callado e o Glauber Rocha. Era
o início do ciclo de sombras que se abateu sobre o país e vocês, como os
espartanos nas Termópilas se lançaram contra a força dos senhores do poder.
Nessa “Iniciação do prisioneiro”, escrito no cárcere em novembro de 1965,
ressaltas exatamente a necessidade de afirmar o Amor como alento e contraponto
àquele momento de suplício:
É
preciso que Amor seja a primeira
palavra a ser gravada nesta cela.
Para servir-me agora e companheira
seja amanhã de quem precise dela.
Alguns anos depois viveste situação
semelhante no Chile quando o sonho de Allende e do povo chileno foi tragado
pelo fogo e pela morte. Por pouco não perdeste a vida, como ocorreu com o
cantor Víctor Jara e outros artistas chilenos. Mas a providência te queria vivo,
apesar do longo inferno que tiveste que amargar no exílio. Há um fato da tua
história que me comove ainda hoje. Ele me foi relatado por um poeta peruano.
Contou-me que estavas no Peru e para saciar tua saudade da pátria organizaram
uma expedição clandestina ao rio Solimões para que pudesses ver, sentir o cheiro
e estar próximo da tua terra. Fico imaginando os sentimentos que rebojavam
dentro de ti – tão perto e tão longe do país. Dos teus familiares. Essas
experiências te ensinaram que, apesar das intempéries, é preciso continuar
navegando
Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir,
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.
(Conclui na próxima sexta-feira)
*Tenório Telles é poeta e ensaísta,
autor de Canção da esperança & outros
poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no
Amazonas.