Amigos do Fingidor

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Um diálogo poético com Thiago de Mello 2/2




Tenório Telles*


Fui seguindo viagem, navegando as águas da tua poesia e parando nos diversos portos que são os teus livros. Notei que eles testemunham episódios da tua longa caminhada. Tem muita gente que pensa que a tua lírica é apenas de combate ou, como preferem outros, comprometida socialmente. Tua poética possui diversos matizes e tons. Aliás, o início do teu percurso criativo é marcado por uma dicção reflexiva sobre o existir e o sentido da tua presença neste vasto mar que se chama vida: O poema “Rumo” é revelador dessa inquietude e dessa busca: “Minhas faces mais diversas / são labirintos antigos / que me confundem e perdem // Para chegar até onde / não me presumo, mas sou, / sigo em forma de palavra”.
Sabe, amigo velho, hoje consigo compreender o sentido do verso que abre o poema que acabei de citar: “Somente sou quando em verso”. Tenho a impressão que o que dá existência às coisas são as palavras. Existimos pelas palavras. Penso que o mundo não existe em si mesmo. Acho que tudo é uma grande ilusão. Ou como dizia Shakespeare, um teatro. De bufões, loucos e espectros. Quando afirmas que és pela poesia, lembro de uma passagem do professor Bosi em que ele afirma que o poético é um ato de ressignificação e de “reencantar pessoas, coisas e eventos, mas também reconhecer-se em si mesma, palavra que se dobra sobre a palavra”. Acredito que a única forma de ser verdadeiro e de chegar ao cerne das coisas é pela poesia e por isso teu verso é epifânico.
Gosto da delicadeza dos teus poemas afetivos. Não seriam propriamente amorosos, mas enamorados, cheios de ternura, vibração e calorosos. “Num campo de margaridas” é tão bonito e comovente. E de uma densidade crua e delicada. Ele está sempre comigo. Lembro sempre dele. Ouço o ritmo dos versos e fico perscrutando o movimento das cenas. O jogo entre o onírico e a vigília. E de como o encontro dos enamorados se dá dentro do sonho:

   Sonhei que estavas dormindo
   num campo de margaridas
   sonhando que me chamavas,
   que me chamavas baixinho
   para me deitar contigo
   [...]

   Mas eu não fui, meu amor,
   que pena!, mas não podia,
   porque eu estava dormindo
   num campo de margaridas
   sonhando que te chamava
   que te chamava baixinho
   e que em meu sonho chegavas,
   que te deitavas comigo
   e me abraçavas macia
   num campo de margaridas.

Thiago, percebi que nos teus poemas tu contas na verdade uma história. Há uma narrativa permeando teu discurso poético. Entre tantas coisas e temas [liberdade, utopia, amor, justiça...] que teces com os fios do teu canto, o que sobressai é a tua vida, teu itinerário poético-existencial: a descoberta do mundo, da poesia, o sonho de uma sociedade diferente, libertária e mais justa. Plasmando tudo isso, um Eu à procura de si, de um lugar na existência e desejoso de compreensão e acolhimento. Esse ser, esse menino desconsolado, esse homem em busca de redenção se anuncia e se enuncia ao longo dos poemas. Tuas dores são dores que te aproximam dos outros e também de mim.
Nos versos de o “Encontro com o pai”, senti tua tristeza, a angústia da criança que um dia esperou do pai a “antiga ternura / e velhos carinhos / jamais transmitidos”, mas que viste “acumulados” em seus olhos. Talvez por isso és tão veemente no artigo oitavo dos “Estatutos do homem”: “Fica decretado que a maior dor / sempre foi e será sempre / não poder dar amor a quem se ama”. Imagino a falta que fez esse afeto silenciado no olhar do teu pai. Eu também convivi com esse silêncio e sei a dor que ele causa. Tua mãe, dona Maria Mitouso de Melo, teve sabedoria para depurar essas feridas com o bálsamo do amor e do cuidado. O poema que dedicas a ela é de uma ternura e comoção que faz qualquer um chorar:

   Dona Maria está partindo.
   Parece que está dormindo.
   Mas já está chegando ao finzinho
   do vale que leva à eternidade.

   Quero só ver o que a eternidade
   vai fazer com Dona Maria.
   Ela sempre garantiu, desde mocinha,
   que ia morar lá no céu.
   E muito ouvi dela que Jesus,
   de quem era serva fiel,
   A esperava, contente.

E por falar em eternidade, caro amigo, noto que, embora ressaltes que não tenhas “lá essas certezas” quanto a essa matéria, desde os teus primeiros livros há uma atmosfera de dúvida, uma ânsia de compreensão de si e do mundo – uma certa angústia metafísica. No “Silêncio e palavra”, de 1951, flagra-se um sinal alusivo a um certo sentido de transcendência presente na tua fala poética. Quarenta e cinco anos depois publicaste um poema, a propósito denominado “Da eternidade”, em que reiteras esse vínculo com uma percepção que considera a possibilidade da transcendência e de um princípio primevo que gerou todas as coisas:

   Da eternidade venho. Dela faço
   parte, desde o começo da vida
   dos que me fizeram ser
   até chegar ao que sou.

Como abarcar a complexidade dessa nossa vida tão cheia de segredos e coisas que nos ultrapassam? Embora nos achemos autossuficientes, o fato é que sabemos tão pouco sobre o que somos, nosso lugar no mundo, nosso destino, o que nos espera... Várias vidas não seriam suficientes para esclarecer tantas dúvidas e mistérios. A vida foi dadivosa contigo, meu bom amigo. Chegaste até aqui e estás próximo de completar uma centena de anos. Sobreviveste a tantas coisas e viste muito neste mundo tão grande e inapreensível. E por teres vivido tanto, aprendeste a “cultivar... o dom de ver, / mesmo o que visto dói de ausente brasa”.
Foi para te celebrar – tua vida e teu canto – que escrevi esta carta para ser lida por ti e por todos os que te querem bem. Que aprenderam a respeitar tua história e a amar teus versos. Escrevi esta carta também para registrar teus longos anos de vida, tua luta, teu comprometimento com a causa do ser humano e a transformação do mundo. E porque te mantiveste fiel a ti e ao propósito de ser no mundo – e combateste o bom combate sem te renderes como os guerreiros de Leônidas, que resistiram até o fim pela liberdade –, relembro, neste momento, para louvar tua vida e tua poesia, os versos do poeta grego Simonides dedicados ao general espartano e seus soldados:

   Digam aos espartanos, estranhos que passam,
   Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos.

Estas palavras, amigo leitor, é para testemunhar um poeta e sua história. E também para celebrar a amizade – para que não esqueçamos a mensagem desse filho de nossa terra que cantou a liberdade, a utopia e um novo sonho para a humanidade – na certeza de que um dia

   haverá girassóis em todas as janelas,
   que os girassóis terão direito
   a abrir-se dentro da sombra;
   e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
   abertas para o verde onde cresce a esperança.

Thiago, este pequeno gesto é para que saibas que nada foi em vão e que a tua poesia foi inspiração e força para os teus amigos e leitores. E também para os que continuam sonhando com um mundo mais generoso, mais verde e mais solidário. Parabéns, querido amigo. Que as musas continuem inspirando teu canto e te guardando.




*Tenório Telles é poeta e ensaísta, autor de Canção da esperança & outros poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no Amazonas.