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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – Jorge Tufic 7/15

Zemaria Pinto


Ficha biobibliográfica

 

Autor: Jorge Tufic

Nome completo: Jorge Tufic Alaúzo

Naturalidade: Sena Madureira – AC

Nascimento: 13 de agosto de 1930

Falecimento: 14 de fevereiro de 2018

 

Obra poética:

·       Varanda de pássaros (1956)

·       Chão sem mácula (1966)

·       Faturação do ócio (1975)

·       Os códigos abertos (1978)

·       Lâmina agreste (1978)

·       Cordelim de alfarrábios (1979)

·       Os mitos da criação e outros poemas (1980)

·       Sagapanema (1981)

·       Oficina de textos (1982)

·       O traço e o verso (1985)

·       Poesia reunida (1988)

·       Retrato de mãe (1995)

·       Boléka, a onça invisível do universo (1995)

·       A insônia dos grilos (1998)

·       Poema-coral das abelhas (1999)

·       Sinos de papel (1999)

·       Os quatro elementos (1996, com Francisco Carvalho, Luciano Maia e Virgílio Maia)

·       Quando as noites voavam (1999)

·       Sonetos de Jorge Tufic (2000)

·       Cordelim de alfarrábios II (2003)

·       Zéfiro com soneata barroca (2004)

·       O sétimo dia (2005)

·       Guardanapos pintados com vinho (2008)

 


POEMAS

     

                       I                                                        

Amo arrumar palavras. Porque sei

que há traças percorrendo

em rios os papéis.

 

Coisa difícil é dar. Difícil

como saber se damos quando damos

ou tiramos quando tiramos.

 

Mas as traças são cegas.

Cega a vontade de morrer

mais cega a de escrever.

 

Palavras são sangue, mesmo

as que gravadas sem propósito.

E ninguém mais do que as traças

sabe disso.

 

                      II

Ouvi um chamado distante,

sem voz. Em seguida a surpresa

de assistir à queda de um ovo

pintado com as cores do arco-íris.

 

– Algum anjo brincalhão

querendo tirar barrigada.

 

Depois outro ovo e mais outro,

tantos, de tantas cores,

que ao chegar em meu quarto

estava transfigurado. Decerto

não atendi ao chamado da  poesia...

 

                     III

O poeta vai pela rua.

Ninguém está vendo o poeta

porque o poeta é transparente.

 

O poeta atravessa a ponte

o poeta desfolha a rosa

o poeta contempla o mar.

 

Ninguém está vendo o poeta.

Mas duvido que ninguém sinta

a sua presença abstrata.    

 

A poesia de Jorge Tufic se caracteriza pela diversidade. O contemporâneo convive com a tradição e a experimentação, com as formas fixas, especialmente o soneto, na qual ele é mestre. Os três poemas aqui recortados dão a dimensão exata dessa tese: se a forma é moderna, o conteúdo se confunde com o próprio tempo, na escolha de temas que se resumem em um só: o labor poético no banal cotidiano, transfigurado pela poesia.

Os poemas são agrupados num crescendo: enquanto o primeiro trata do chão dia a dia, o segundo busca as alturas do sagrado, sem perder o humor, índice de civilidade e inteligência, ou melhor, índice de humanidade. Por fim, o terceiro poema olha de perto essa instituição pouco compreendida, o poeta, e sua relação com a poesia.

É curioso observar que esses poemas foram publicados no primeiro livro de Tufic, Varanda de pássaros, de 1956. Cinquenta anos depois, o tema é ainda recorrente em sua poesia, como se observa neste fragmento extraído de um poema do livro O sétimo dia, de 2005:

Poeta não se define: é um ser à parte.

De homem se veste, de animal caminha,

mas algo nele de anjo se avizinha

quando em fatias brancas se reparte.

A poesia, o poema, o poeta são temas caros a Jorge Tufic, não como busca de elaborações conceituais – ele que também se aventura pelo árido território da teoria –, mas como uma forma lúdica de compreender esses fenômenos que se complementam no fazer poético: a poesia está em toda parte e o poema é o registro da poesia do cotidiano, feito pelo poeta-operário.

Palavras versus traças. O poema seria a forma encontrada pelo poeta para salvar o papel da voracidade dos insetos? Observe que o texto se estrutura em colunas paralelas: uma, tratando do ato de escrever e seu significado; outra, falando do caráter destruidor da traça, metáfora das dificuldades que o poeta encontra para realizar seu trabalho. Separemos uma e outra.

1                                                                                      2

 

Amo arrumar palavras.                                                                  Porque sei

que há traças percorrendo

em rios os papéis.

 

Coisa difícil é dar. Difícil

como saber se damos quando damos

ou tiramos quando tiramos.

                        

Mas as traças são cegas.

Cega a vontade de morrer

mais cega a de escrever.

 

Palavras são sangue, mesmo

as que gravadas sem propósito.

E ninguém mais do que as traças

sabe disso.

 

A coluna 1 tem nexo, mantém-se de pé sozinha. A coluna 2, entretanto, subordina-se à primeira, nas suas três ocorrências. As traças existem porque existe a poesia, resumida na palavra “palavras”: “amo arrumar palavras”; “palavras são sangue”. Traduzindo: “amo escrever poesia”; “poesia é vida”. Mas as traças, na sua voracidade cega, destroem tudo que emana vida. É desse embate, dessa tensão permanente, alimentada pela vontade cega/voraz de escrever que nasce o poema.

O chamado da poesia. Esse é um recurso recorrente para explicar o talento poético: o poeta como um missionário, um apóstolo, um visionário, um místico a atender um “chamado” superior. Tema central do segundo poema, subjacente ao humor explícito, Tufic brinca a sério ao referir-se ao “chamado distante, sem voz”. A sequência, entretanto, é de puro nonsense: uma chuva de ovos multicoloridos, como se o autor do chamado sem voz estivesse insatisfeito com a poesia produzida. A palavra “transfigurado”, para denotar o estado do poeta, não é gratuita, pois tem conotação de transformação mística – neste caso, negativa, pois a “ovação” (seria essa a finalidade humorística da chuva de ovos?) deixou o poeta insatisfeito consigo mesmo.

Aqui temos, tal como no primeiro poema, explicitada a tensão que engendra o fazer poético: o poeta como traça de si mesmo, buscando não a destruição da poesia, mas a sua inalcançável completude.

O terceiro poema procura humanizar o poeta, sem tirar-lhe, entretanto, sua aura demiúrgica, a ponte que o liga ao sagrado, porquanto criador de mundos e criaturas. O poeta vai pela rua, mas ninguém o vê. Sua transparência é a invisibilidade de qualquer ser humano na multidão da metrópole: todos são iguais, ninguém se destaca na massa amorfa que caminha anônima pela cidade. Mas a presença do poeta é mais forte e haverá de ser sentida na multidão. Note que a construção do texto não quantifica as pessoas que sentem sua “presença abstrata”: “mas duvido que ninguém sinta”, pode ser lido como “duvido que alguém não sinta”. Isto é, pelo menos uma pessoa, naquela multidão, será tocada, não exatamente pela presença do poeta, mas pela presença da própria poesia – que está em todo lugar. E, num movimento circular (o círculo é um símbolo da perfeição, logo, da divindade), esse alguém pode ser o próprio poeta.


Poemas (Mauri Mrq e Jorge Tufic).