Zemaria
Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Jorge Tufic
Nome completo: Jorge Tufic Alaúzo
Naturalidade: Sena Madureira – AC
Nascimento: 13 de agosto de 1930
Falecimento: 14 de fevereiro de 2018
Obra poética:
· Varanda de pássaros (1956)
· Chão sem mácula (1966)
· Faturação do ócio (1975)
· Os códigos abertos (1978)
· Lâmina agreste (1978)
· Cordelim de alfarrábios (1979)
· Os mitos da criação e outros poemas (1980)
· Sagapanema (1981)
· Oficina de textos (1982)
· O traço e o verso (1985)
· Poesia reunida (1988)
· Retrato de mãe (1995)
· Boléka, a onça invisível do universo (1995)
· A insônia dos grilos (1998)
· Poema-coral das abelhas (1999)
· Sinos de papel (1999)
· Os quatro elementos (1996, com Francisco Carvalho, Luciano Maia e Virgílio Maia)
· Quando as noites voavam (1999)
· Sonetos de Jorge Tufic (2000)
· Cordelim de alfarrábios II (2003)
· Zéfiro com soneata barroca (2004)
· O sétimo dia (2005)
· Guardanapos pintados com vinho (2008)
POEMAS
I
Amo arrumar palavras. Porque sei
que há traças percorrendo
em rios os papéis.
Coisa difícil é dar. Difícil
como saber se damos quando damos
ou tiramos quando tiramos.
Mas as traças são cegas.
Cega a vontade de morrer
mais cega a de escrever.
Palavras são sangue, mesmo
as que gravadas sem propósito.
E ninguém mais do que as traças
sabe disso.
II
Ouvi um chamado distante,
sem voz. Em seguida a surpresa
de assistir à queda de um ovo
pintado com as cores do arco-íris.
– Algum anjo brincalhão
querendo tirar barrigada.
Depois outro ovo e mais outro,
tantos, de tantas cores,
que ao chegar em meu quarto
estava transfigurado. Decerto
não atendi ao chamado da poesia...
III
O poeta vai pela rua.
Ninguém está vendo o poeta
porque o poeta é transparente.
O poeta atravessa a ponte
o poeta desfolha a rosa
o poeta contempla o mar.
Ninguém está vendo o poeta.
Mas duvido que ninguém sinta
a sua presença abstrata.
A poesia de Jorge Tufic
se caracteriza pela diversidade. O contemporâneo convive com a tradição e a
experimentação, com as formas fixas, especialmente o soneto, na qual ele é
mestre. Os três poemas aqui recortados dão a dimensão exata dessa tese: se a
forma é moderna, o conteúdo se confunde com o próprio tempo, na escolha de
temas que se resumem em um só: o labor poético no banal cotidiano, transfigurado
pela poesia.
Os poemas são agrupados
num crescendo: enquanto o primeiro trata do chão dia a dia, o segundo busca as
alturas do sagrado, sem perder o humor, índice de civilidade e inteligência, ou
melhor, índice de humanidade. Por fim, o terceiro poema olha de perto essa
instituição pouco compreendida, o poeta, e sua relação com a poesia.
É curioso observar que
esses poemas foram publicados no primeiro livro de Tufic, Varanda de pássaros, de 1956. Cinquenta anos depois, o tema é ainda
recorrente em sua poesia, como se observa neste fragmento extraído de um poema
do livro O sétimo dia, de 2005:
De
A poesia, o poema, o
poeta são temas caros a Jorge Tufic, não como busca de elaborações conceituais
– ele que também se aventura pelo árido território da teoria –, mas como uma
forma lúdica de compreender esses fenômenos que se complementam no fazer poético:
a poesia está em toda parte e o poema é o registro da poesia do cotidiano,
feito pelo poeta-operário.
Palavras versus traças. O poema seria a forma
encontrada pelo poeta para salvar o papel da voracidade dos insetos? Observe
que o texto se estrutura em colunas paralelas: uma, tratando do ato de escrever
e seu significado; outra, falando do caráter destruidor da traça, metáfora das
dificuldades que o poeta encontra para realizar seu trabalho. Separemos uma e
outra.
1
2
Amo arrumar palavras.
Porque sei
que há traças
percorrendo
em rios os
papéis.
Coisa difícil é dar. Difícil
como saber se damos quando damos
ou tiramos quando tiramos.
Mas as traças
são cegas.
Cega a vontade de morrer
mais cega a de escrever.
Palavras são sangue, mesmo
as que gravadas sem propósito.
E ninguém mais
do que as traças
sabe disso.
A coluna 1 tem nexo,
mantém-se de pé sozinha. A coluna 2, entretanto, subordina-se à primeira, nas
suas três ocorrências. As traças existem porque existe a poesia, resumida na
palavra “palavras”: “amo arrumar palavras”; “palavras são sangue”. Traduzindo:
“amo escrever poesia”; “poesia é vida”. Mas as traças, na sua voracidade cega,
destroem tudo que emana vida. É desse embate, dessa tensão permanente,
alimentada pela vontade cega/voraz de escrever que nasce o poema.
O chamado da poesia. Esse
é um recurso recorrente para explicar o talento poético: o poeta como um
missionário, um apóstolo, um visionário, um místico a atender um “chamado”
superior. Tema central do segundo poema, subjacente ao humor explícito, Tufic
brinca a sério ao referir-se ao “chamado distante, sem voz”. A sequência,
entretanto, é de puro nonsense: uma
chuva de ovos multicoloridos, como se o autor do chamado sem voz estivesse
insatisfeito com a poesia produzida. A palavra “transfigurado”, para denotar o
estado do poeta, não é gratuita, pois tem conotação de transformação mística –
neste caso, negativa, pois a “ovação” (seria essa a finalidade humorística da
chuva de ovos?) deixou o poeta insatisfeito consigo mesmo.
Aqui temos, tal como no
primeiro poema, explicitada a tensão que engendra o fazer poético: o poeta como
traça de si mesmo, buscando não a destruição da poesia, mas a sua inalcançável
completude.
O terceiro poema procura
humanizar o poeta, sem tirar-lhe, entretanto, sua aura demiúrgica, a ponte que
o liga ao sagrado, porquanto criador de mundos e criaturas. O poeta vai pela
rua, mas ninguém o vê. Sua transparência é a invisibilidade de qualquer ser
humano na multidão da metrópole: todos são iguais, ninguém se destaca na massa
amorfa que caminha anônima pela cidade. Mas a presença do poeta é mais forte e
haverá de ser sentida na multidão. Note que a construção do texto não
quantifica as pessoas que sentem sua “presença abstrata”: “mas duvido que
ninguém sinta”, pode ser lido como “duvido que alguém não sinta”. Isto é, pelo
menos uma pessoa, naquela multidão, será tocada, não exatamente pela presença
do poeta, mas pela presença da própria poesia – que está em todo lugar. E, num
movimento circular (o círculo é um símbolo da perfeição, logo, da divindade),
esse alguém pode ser o próprio poeta.