Amigos do Fingidor

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – Alencar e Silva 9/15


Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Alencar e Silva

Nome completo: Joaquim de Alencar e Silva

Naturalidade: Fonte Boa – AM

Nascimento: 21 de setembro de 1930

Falecimento: 25 de setembro de 2011

 

Obra poética:

·       Painéis (1952)

·       Lunamarga (1965)

·       Território Noturno (1982)

·       Sob Vésper (1986)

·       Poesia reunida (1987)

·       Sob o sol de Deus (1992)

·       Ouro, incenso e mirra (1994)

·       Solo de outono (2000)

·       Crepuscularium (2006)

·       Sonetos reunidos (2011)


DESCE A NOITE NO VALE E AS SOMBRAS CANTAM

 

Desce a noite no vale e as sombras cantam

trescalantes canções de fim de dia.

Nada pode igualar-se à nostalgia

das luzes mortas que ainda se levantam

e andam na noite e à própria noite encantam

com marcados compassos de agonia,

enquanto a brisa vai ficando fria

e as sombras soltas pela noite cantam.

Fez-se noite no vale e agora é a hora

de recolher ao ninho o coração

entre as notas longínquas da canção

que em doces vozes o embalara outrora.

          Vão-se os últimos pássaros do outono.

          Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.

 

Alencar e Silva é, dos poetas fundadores do Clube da Madrugada, aquele mais arraigado à tradição. Sua poesia sempre se pautou por uma sintaxe existencial, sem grandes voos formais inovadores, mas, por isso mesmo, mantendo unidade e coerência ao longo de uma produção que se estendeu por quase 60 anos. Mestre do verso decassílabo, Neto, como os amigos o chamam, tem como temas essenciais o banal cotidiano dos encontros e desencontros amorosos, o ofício do verso e o mistério que se encerra entre o ser e o não ser. Este tema – “o grande vendaval” a que ele alude em Sob Vésper (1986) – tem sido recorrente: “Tudo traz sob a pele a sua morte”, ele escrevia em Lunamarga (1965). Poesia simples e cativante, Alencar e Silva esculpiu, a cada livro, miniaturas em palavras de bronze, que testemunham, justificam e perpetuam a aventura humana sobre a terra.

O poema em análise faz parte de uma coletânea intitulada Solo de Outono (2000), onde o autor “comemora” seus 70 anos. São poemas que guardam as características gerais da obra do autor – melodia fluida para temas intimistas –, acrescidas de uma indizível tristeza, própria dos que, sabiamente, enfrentam o passar dos anos com a tranquilidade do inevitável, vivendo intensamente essa nova – e última – fase. Isto é o que pode pensar o leitor não familiarizado com a obra do poeta: a recorrência ao tema da morte, comum na obra do autor (como referido antes), é um véu tênue entre intenção e realização.

“Outono” e “noite” são, no poema de Alencar e Silva, símiles: palavras de sentido diverso que, no contexto do poema, adquirem um significado que as aproxima. O outono, como símbolo da velhice, antepondo-se à primavera, que simboliza a juventude; o verão, a estação solar, simboliza o esplendor da vida adulta. Se compararmos as estações com as fases da vida, resta ao inverno expressar a própria ausência de vida, pois é a estação do recolhimento. Assim, o outono ganha uma dimensão ainda mais complexa, pois é uma passagem entre a vida e a sua ausência.

Na comparação das fases do dia com a vida humana, a noite, com a sua escuridão, marca a proximidade da morte, opondo-se à claridade, expressão maior da existência: a manhã significando a infância e a tarde, a idade adulta. A madrugada, também escura, podemos intuir, seria o breve tempo da gravidez – o tempo do sono primordial, que prepara o corpo para a manhã que nasce. Outono e noite têm, portanto, uma raiz metafórica comum, efeito das comparações entre a vida humana e os ciclos da natureza: a rotação da terra sobre si mesma em 24 horas e sua órbita em torno do globo solar, por 365 dias, ambos divididos em quartos perfeitos – as quatro partes do dia e as quatro estações do ano.

Estabelecidos estes parâmetros, a leitura do poema deve fluir sem obstáculos, como a água de um rio que mana – sobre pedras, asperezas e peraus – mansa e cristalina. Vejamos os substantivos que se destacam nos versos iniciais: noite, vale, sombras, canções, dia. Como já sabemos o significado poético do primeiro e do último, cuidemos dos outros três. “Vale” é uma depressão situada à base de um monte ou entre duas elevações. Podemos imaginar o poeta descrevendo o que observa a partir de um ponto elevado, olhando “de cima”. O poeta ouve o coro das sombras, metáfora de suas lembranças. Observe a convergência entre “desce a noite” e “canções de fim de dia”, formando uma única imagem, plástica e sonora, mas nem por isso menos melancólica e dolorida.

Em seguida, o poeta descreve o acender-se de luzes no vale: são luzes mortas, sem brilho, que ainda assim encantam. Mas duas expressões marcam a sequência de versos: “nostalgia” e “compassos de agonia”. Aquele ritual fere fundo a alma do poeta, pela tristeza e sofrimento que se desprende das canções. A noite se aprofunda – “a brisa vai ficando fria” – e o coro das sombras se eleva pelo vale, até envolvê-lo por inteiro. As notas da canção vão ficando cada vez mais distantes, confundindo-se com uma inaudível canção da distante infância – “que em doces vozes o embalara outrora”. Este movimento circular, pontuado pelos compassos da canção, une os dois fios da vida do poeta: a do velho e a do menino.

É muito interessante a relação que Alencar e Silva estabelece entre “a hora de recolher ao ninho o coração” e a constatação de que “vão-se os últimos pássaros do outono”: o coração recolhido ao ninho não se vai embora como os outros pássaros, em busca do calor do verão; antes, entrega-se à noite que domina o vale, porque é chegada sua hora de retirar-se, para esperar, tranquilo, o inevitável inverno. E num verso sobre todos harmonioso ele arremata: “Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.” E encerra-se o ciclo da vida com um simples e natural cerrar-se de olhos.  

Deixo uma última nota: a expressão “vale das sombras” substitui, no imaginário ocidental, o que os gregos chamavam de infernos – a região dos mortos, o reino de Hades, situado nas profundezas da terra. Ressalve-se que aqui não há nenhuma conotação de cunho religioso, não se separa inferno e paraíso – é apenas o lugar para onde todos, indistintamente, irão um dia.  O vale das sombras de Alencar e Silva, sem qualquer cunho místico, preserva, valoriza e embeleza essa geografia mítica, herdada de um tempo anterior à história. 

Desce a noite no vale e as sombras cantam
(Mauri Mrq e Alencar e Silva)