Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Alencar e
Silva
Nome completo: Joaquim de Alencar e Silva
Naturalidade: Fonte Boa – AM
Nascimento: 21 de setembro de 1930
Falecimento: 25 de setembro de 2011
Obra poética:
· Painéis (1952)
· Lunamarga (1965)
· Território Noturno (1982)
· Sob Vésper
(1986)
· Poesia reunida (1987)
· Sob o sol de Deus (1992)
· Ouro, incenso e mirra (1994)
· Solo de outono
(2000)
· Crepuscularium (2006)
· Sonetos reunidos (2011)
DESCE A NOITE NO VALE E AS SOMBRAS CANTAM
Desce a noite no vale e as sombras
cantam
trescalantes canções de fim de dia.
Nada pode igualar-se à nostalgia
das luzes mortas que ainda se levantam
e andam na noite e à própria noite
encantam
com marcados compassos de agonia,
enquanto a brisa vai ficando fria
e as sombras soltas pela noite
cantam.
Fez-se noite no vale e agora é a hora
de recolher ao ninho o coração
entre as notas longínquas da canção
que em doces vozes o embalara
outrora.
Vão-se os últimos pássaros do outono.
Fecha-se a noite. E já me apaga o
sono.
Alencar e Silva é, dos poetas fundadores do Clube da Madrugada, aquele
mais arraigado à tradição. Sua poesia sempre se pautou por uma sintaxe
existencial, sem grandes voos formais inovadores, mas, por isso mesmo, mantendo
unidade e coerência ao longo de uma produção que se estendeu por quase 60 anos.
Mestre do verso decassílabo, Neto, como os amigos o chamam, tem como temas
essenciais o banal cotidiano dos encontros e desencontros amorosos, o ofício do
verso e o mistério que se encerra entre o ser e o não ser. Este tema – “o
grande vendaval” a que ele alude em Sob
Vésper (1986) – tem sido recorrente: “Tudo traz sob a pele a sua morte”,
ele escrevia em Lunamarga (1965).
Poesia simples e cativante, Alencar e Silva esculpiu, a cada livro, miniaturas
em palavras de bronze, que testemunham, justificam e perpetuam a aventura
humana sobre a terra.
O poema em análise faz parte de uma coletânea intitulada Solo de Outono (2000), onde o autor
“comemora” seus 70 anos. São poemas que guardam as características gerais da
obra do autor – melodia fluida para temas intimistas –, acrescidas de uma
indizível tristeza, própria dos que, sabiamente, enfrentam o passar dos anos
com a tranquilidade do inevitável, vivendo intensamente essa nova – e última –
fase. Isto é o que pode pensar o leitor não familiarizado com a obra do poeta:
a recorrência ao tema da morte, comum na obra do autor (como referido antes), é
um véu tênue entre intenção e realização.
“Outono” e “noite” são, no poema de Alencar e Silva, símiles: palavras de
sentido diverso que, no contexto do poema, adquirem um significado que as
aproxima. O outono, como símbolo da velhice, antepondo-se à primavera, que
simboliza a juventude; o verão, a estação solar, simboliza o esplendor da vida
adulta. Se compararmos as estações com as fases da vida, resta ao inverno
expressar a própria ausência de vida, pois é a estação do recolhimento. Assim,
o outono ganha uma dimensão ainda mais complexa, pois é uma passagem entre a
vida e a sua ausência.
Na comparação das fases do dia com a vida humana, a noite, com a sua
escuridão, marca a proximidade da morte, opondo-se à claridade, expressão maior
da existência: a manhã significando a infância e a tarde, a idade adulta. A
madrugada, também escura, podemos intuir, seria o breve tempo da gravidez – o
tempo do sono primordial, que prepara o corpo para a manhã que nasce. Outono e
noite têm, portanto, uma raiz metafórica comum, efeito das comparações entre a
vida humana e os ciclos da natureza: a rotação da terra sobre si mesma em 24
horas e sua órbita em torno do globo solar, por 365 dias, ambos divididos em
quartos perfeitos – as quatro partes do dia e as quatro estações do ano.
Estabelecidos estes parâmetros, a leitura do poema deve fluir sem
obstáculos, como a água de um rio que mana – sobre pedras, asperezas e peraus –
mansa e cristalina. Vejamos os substantivos que se destacam nos versos
iniciais: noite, vale, sombras, canções, dia. Como já sabemos o significado
poético do primeiro e do último, cuidemos dos outros três. “Vale” é uma
depressão situada à base de um monte ou entre duas elevações. Podemos imaginar
o poeta descrevendo o que observa a partir de um ponto elevado, olhando “de
cima”. O poeta ouve o coro das sombras, metáfora de suas lembranças. Observe a
convergência entre “desce a noite” e “canções de fim de dia”, formando uma
única imagem, plástica e sonora, mas nem por isso menos melancólica e dolorida.
Em seguida, o poeta descreve o acender-se de luzes no vale: são luzes
mortas, sem brilho, que ainda assim encantam. Mas duas expressões marcam a sequência
de versos: “nostalgia” e “compassos de agonia”. Aquele ritual fere fundo a alma
do poeta, pela tristeza e sofrimento que se desprende das canções. A noite se
aprofunda – “a brisa vai ficando fria” – e o coro das sombras se eleva pelo
vale, até envolvê-lo por inteiro. As notas da canção vão ficando cada vez mais
distantes, confundindo-se com uma inaudível canção da distante infância – “que
em doces vozes o embalara outrora”. Este movimento circular, pontuado pelos
compassos da canção, une os dois fios da vida do poeta: a do velho e a do
menino.
É muito interessante a relação que Alencar e Silva estabelece entre “a
hora de recolher ao ninho o coração” e a constatação de que “vão-se os últimos
pássaros do outono”: o coração recolhido ao ninho não se vai embora como os
outros pássaros, em busca do calor do verão; antes, entrega-se à noite que
domina o vale, porque é chegada sua hora de retirar-se, para esperar, tranquilo,
o inevitável inverno. E num verso sobre todos harmonioso ele arremata: “Fecha-se
a noite. E já me apaga o sono.” E encerra-se o ciclo da vida com um simples e
natural cerrar-se de olhos.
Deixo uma última nota: a expressão “vale das sombras” substitui, no
imaginário ocidental, o que os gregos chamavam de infernos – a região dos
mortos, o reino de Hades, situado nas profundezas da terra. Ressalve-se que
aqui não há nenhuma conotação de cunho religioso, não se separa inferno e
paraíso – é apenas o lugar para onde todos, indistintamente, irão um dia. O vale das sombras de Alencar e Silva, sem
qualquer cunho místico, preserva, valoriza e embeleza essa geografia mítica,
herdada de um tempo anterior à história.