·Poems
of the water and the land – Poemas da água e da terra
(1987, edição bilíngue)
·In natura – poemas para a juventude (1999)
·Cantos ribeirinhos e outros poemas (2002)
·A Amazônia de Alcides Werk – toda poesia (2004 – póstumo)
NA PRAIA DA PONTA NEGRA
Às vezes
tenho vontade
de andar
de jeans,
sermoderno,
fazerversosesquisitos,
gerarpalavras
estranhas,
somarasfaltocomlua,
misturarbrigas
de rua
comrosa,
comcal
e mar.
Mas, quandotesonho
nua
na praia
da PontaNegra,
comgestos
de pré-amar,
todo o meuser se acomoda,
e eu
volto a mevermenino
que sonhara serpoeta
emnoites
de romantismo,
e, conquistado, me
esqueço
das conquistasque faria:
minhaalmamansa flutua
nas águas
pretas do rio
e esvoaça sobre
a tua
comoumpássaro no cio.
NO ROADWAY
As águas
do Roadway são negras
porquesão
filhas do rioNegro,
ouporque
os homens as toldaram?
As águas
lavam tudo,
masnão
lavam a si mesmas.
Meupequenoespírito, absorto,
filosofa sobre
essas obviedades.
Já vi muitas pessoas
lavar o ladosujo de suasalmas
no rioNegro.
Estamos ficando velhos
precocemente
– eu
e o rioNegro.
IGARAPÉ DE MANAUS
A água,
que é mãe
da vida
(antespura, clara,
doce),
passaaí
prostituída,
triste, amarga,
poluída,
como se maternão fosse.
A lírica
de Alcides Werk tem duas vertentesbem acentuadas: uma, telúrica,
voltada para as coisas
da terra; outra,
confessional, onde a sensibilidade do poeta se
expõe, muitas vezes, perigosamente. Os poemas “Na praia
da PontaNegra”,
“No Roadway” e “Igarapé de Manaus” fazem
uma espécie de ponteentre uma e outravertente. Sãopoemasque
enfatizam a preocupação do escritorcom o meioambiente, porém no âmbito da cidade,
longe das paisagens
desenhadas emoutrospoemas, onde
sobressai a descrição da natureza e dos fenômenos,
inclusivesociais,
a ela ligados.
“Na praia
da PontaNegra”
é umpoema
de amor. O poeta
coloca-se numa posição conservadora, umhomem de meia-idade, que
compara a agitação da praia – outalvez da suacalçada – com o
moderno “jeito”
de fazerpoesia.
Talvezele
se imagine um seresteiro, um romântico, e aquela agitação
dos jovensnão
tenha nada a vercom a suapoesia. Quandoelefalaemsomar “asfaltocomlua”, porexemplo, a palavraasfalto denota a agitação
da cidade e soma-se ao jeans, ao tênis,
enquanto a palavralua é seucontraponto de sonho.
O asfalto, aquimesmo; a lua,
impossível, impassível
e inalcançável. Masquando
o poetasonhacomsuaamada, a praia
da PontaNegra
se transforma e torna-se aquelelugarbucólico
do seutempo
de menino, emqueeleapenas sonhava serpoeta.
Observe o jogoque o autor
empreende com as palavras:
“Mas, quandoeutesonho nua / na praia
da PontaNegra,
/ comgestos
de pré-amar”. Esta últimapalavra, composta,
a rigor, não
existe. No textoela
significa algocomo
“antes do amor”,
a frasetoda
seria “comgestos
de antes do amor”.
Mas se formos maisfundo, no âmagomesmo do poema,
“pré-amar” se relaciona diretamentecom “preamar”, palavraque
significa marécheiaounívelmáximo da maré.
Ou seja: “gestos
de pré-amar” também significa que a mulheramada está transbordando – no nívelmáximo da maré
– de gestos de amor,
de carinho. Observe que
essa sensualidade faz parte de umsonho: nãosão os corposque se
encontram, mas as almas.
E a alma do poeta esvoaça sobre a da mulher amada
“como umpássaro
no cio”. Numa referênciaexterior, lembro-me de umpoema de Manuel Bandeira,
chamado “A arte de amar”,
em que ele, depois
de falarsobre
a incomunicabilidade das almas, conclui afirmando: “Porque
os corpos se entendem, mas as almasnão”. Manuel Bandeira
escrevia numa época de negação
aos valoresespirituais,
emboraelemesmo cultivasse uma espiritualidadeque
parecia tímida, emface da exigência
materialista de algumas facções modernistas. Alcides, neste poema, declara-se romântico e avesso
ao moderno, e, consequentemente, ao Modernismo. Daí o seuposicionamentofrontalmentecontrário ao de Manuel Bandeira.
O poema
“No Roadway” conecta-se com o primeiropelouso do rioNegrocomometáfora. Em
“Na praia da PontaNegra” o rio
é o lugarqueguarda as lembranças
do poeta-menino e, no sonho, é o leito de amor
do poetaadulto.
Roadway é o nomeoriginal
do porto de Manaus, explorado inicialmentepelos ingleses da Manáos Harbour, ainda
no início do século 20. O poema é umalertaamargosobre os
vícios testemunhados peloporto, há um século.
A função do rioaqui é menosnobreque
no poemaanterior:
suas águas lavam “o ladosujo das almas
das pessoas” que
transitam pelo Roadway e porissovão
ficando mais escuras, vão se toldando, porquevão acumulando a sujeira.
E o poeta, impotente, conclui que
está envelhecendo juntocom o seurio – precocemente.
Esta últimapalavra
remete-nos de volta ao início do primeiropoemaemque o poeta declara ter “vontade” de parecerjovem,
estabelecendo uma segunda conexão.
O poema
“Igarapé de Manaus” é uma das mais belas páginas
da poesiaecológica
– se é que existe uma poesiaecológica.
Há muitotempo
dizia-se poesia engajada, de cunhopolítico.
“Igarapé de Manaus”, emsuascincolinhas, valeporumtratadosobre a destruição
de umriopor uma cidade
– ouporseus bárbaros habitantes.
Não há muito
a explicar: a singeleza
do poema, mesmo
usando uma palavraemlatim (mater, mãe – o que reforça o caráter mítico da figura), falaporsimesma. A água, mãe da vida, queumdiajá passou, poralimesmo, “pura, clara, doce”, agorapassa “prostituída, triste,
amarga, poluída” – queimagemterrível!
–, semmaisostentar a condição
de mãe. Pense numa pessoaque, depois
de muitotempo
afastada de suamãe,
encontra-a nessas condições descritas pelopoeta. É apenasisso. Poesiapanfletárianemsempre
é boa poesia. Alcides Werk, comseuimensotalentopara a indignação e seumaioraindaamorpela natureza, consegue, em
22 palavras, escreverumtratado
sociológico sobre o descaso e a
destruição. Masesse
sofrimento do Igarapé de Manaus vai acabar: como último ato dessa tragédia, vão
aterrá-lo.[1]
Na praia da Ponta Negra - No Roadway - Igarapé de Manaus
(Mauri Mrq-Alcides Werk)
[1]
Referência ao projeto Prosamim, de “saneamento” dos igarapés de Manaus, em
andamento quando da escritura deste texto.