Amigos do Fingidor

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Lira da Madrugada – Alcides Werk 11/15


Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Alcides Werk

Nome completo: Alcides Werk Gomes de Matos

Naturalidade: Aquidauana – MS

Nascimento: 20 de dezembro de 1934

Falecimento: 13 de novembro de 2003

 

Obra poética:

·       Da noite do rio (1974)

·       Trilha dágua (1980)

·       Poems of the water and the land – Poemas da água e da terra (1987, edição bilíngue)

·       In natura – poemas para a juventude (1999)

·       Cantos ribeirinhos e outros poemas (2002)

·       A Amazônia de Alcides Werk – toda poesia (2004 – póstumo)


NA PRAIA DA PONTA NEGRA

 

Às vezes tenho vontade

de andar de jeans, ser moderno,

fazer versos esquisitos,

gerar palavras estranhas,

somar asfalto com lua,

misturar brigas de rua

com rosa, com cal e mar.

Mas, quando te sonho nua

na praia da Ponta Negra,

com gestos de pré-amar,

todo o meu ser se acomoda,

e eu volto a me ver menino

que sonhara ser poeta

em noites de romantismo,

e, conquistado, me esqueço

das conquistas que faria:

minha alma mansa flutua

nas águas pretas do rio

e esvoaça sobre a tua

como um pássaro no cio.

 

 

 

NO ROADWAY

 

As águas do Roadway são negras

porque são filhas do rio Negro,

ou porque os homens as toldaram?

 

As águas lavam tudo,

mas não lavam a si mesmas.

 

Meu pequeno espírito, absorto,

filosofa sobre essas obviedades.

 

vi muitas pessoas

lavar o lado sujo de suas almas

no rio Negro.

 

Estamos ficando velhos

precocemente

eu e o rio Negro.

 

 

IGARAPÉ DE MANAUS

 

A água, que é mãe da vida

(antes pura, clara, doce),

passa prostituída,

triste, amarga, poluída,

como se mater não fosse.

  

A lírica de Alcides Werk tem duas vertentes bem acentuadas: uma, telúrica, voltada para as coisas da terra; outra, confessional, onde a sensibilidade do poeta se expõe, muitas vezes, perigosamente. Os poemas “Na praia da Ponta Negra”, “No Roadway” e “Igarapé de Manaus” fazem uma espécie de ponte entre uma e outra vertente. São poemas que enfatizam a preocupação do escritor com o meio ambiente, porém no âmbito da cidade, longe das paisagens desenhadas em outros poemas, onde sobressai a descrição da natureza e dos fenômenos, inclusive sociais, a ela ligados.

“Na praia da Ponta Negra” é um poema de amor. O poeta coloca-se numa posição conservadora, um homem de meia-idade, que compara a agitação da praiaou talvez da sua calçadacom o modernojeito” de fazer poesia. Talvez ele se imagine um seresteiro, um romântico, e aquela agitação dos jovens não tenha nada a ver com a sua poesia. Quando ele fala em somarasfalto com lua”, por exemplo, a palavra asfalto denota a agitação da cidade e soma-se ao jeans, ao tênis, enquanto a palavra lua é seu contraponto de sonho. O asfalto, aqui mesmo; a lua, impossível, impassível e inalcançável. Mas quando o poeta sonha com sua amada, a praia da Ponta Negra se transforma e torna-se aquele lugar bucólico do seu tempo de menino, em que ele apenas sonhava ser poeta.

Observe o jogo que o autor empreende com as palavras: “Mas, quando eu te sonho nua / na praia da Ponta Negra, / com gestos de pré-amar”. Esta última palavra, composta, a rigor, não existe. No texto ela significa algo comoantes do amor”, a frase toda seria “com gestos de antes do amor”. Mas se formos mais fundo, no âmago mesmo do poema, “pré-amar” se relaciona diretamente compreamar”, palavra que significa maré cheia ou nível máximo da maré. Ou seja: “gestos de pré-amar” também significa que a mulher amada está transbordando – no nível máximo da maré – de gestos de amor, de carinho. Observe que essa sensualidade faz parte de um sonho: não são os corpos que se encontram, mas as almas. E a alma do poeta esvoaça sobre a da mulher amada “como um pássaro no cio”. Numa referência exterior, lembro-me de um poema de Manuel Bandeira, chamado “A arte de amar”, em que ele, depois de falar sobre a incomunicabilidade das almas, conclui afirmando: “Porque os corpos se entendem, mas as almas não”. Manuel Bandeira escrevia numa época de negação aos valores espirituais, embora ele mesmo cultivasse uma espiritualidade que parecia tímida, em face da exigência materialista de algumas facções modernistas. Alcides, neste poema, declara-se romântico e avesso ao moderno, e, consequentemente, ao Modernismo. Daí o seu posicionamento frontalmente contrário ao de Manuel Bandeira.

O poema “No Roadway” conecta-se com o primeiro pelo uso do rio Negro como metáfora. Em “Na praia da Ponta Negra” o rio é o lugar que guarda as lembranças do poeta-menino e, no sonho, é o leito de amor do poeta adulto. Roadway é o nome original do porto de Manaus, explorado inicialmente pelos ingleses da Manáos Harbour, ainda no início do século 20. O poema é um alerta amargo sobre os vícios testemunhados pelo porto, há um século. A função do rio aqui é menos nobre que no poema anterior: suas águas lavam “o lado sujo das almas das pessoasque transitam pelo Roadway e por isso vão ficando mais escuras, vão se toldando, porque vão acumulando a sujeira. E o poeta, impotente, conclui que está envelhecendo junto com o seu rioprecocemente. Esta última palavra remete-nos de volta ao início do primeiro poema em que o poeta declara tervontade” de parecer jovem, estabelecendo uma segunda conexão.

O poemaIgarapé de Manaus” é uma das mais belas páginas da poesia ecológica – se é que existe uma poesia ecológica. Há muito tempo dizia-se poesia engajada, de cunho político. “Igarapé de Manaus”, em suas cinco linhas, vale por um tratado sobre a destruição de um rio por uma cidadeou por seus bárbaros habitantes. Nãomuito a explicar: a singeleza do poema, mesmo usando uma palavra em latim (mater, mãe – o que reforça o caráter mítico da figura), fala por si mesma. A água, mãe da vida, que um dia passou, por ali mesmo, “pura, clara, doce”, agora passa “prostituída, triste, amarga, poluída” – que imagem terrível! –, sem mais ostentar a condição de mãe. Pense numa pessoa que, depois de muito tempo afastada de sua mãe, encontra-a nessas condições descritas pelo poeta. É apenas isso. Poesia panfletária nem sempre é boa poesia. Alcides Werk, com seu imenso talento para a indignação e seu maior ainda amor pela natureza, consegue, em 22 palavras, escrever um tratado sociológico sobre o descaso e a destruição. Mas esse sofrimento do Igarapé de Manaus vai acabar: como último ato dessa tragédia, vão aterrá-lo.[1]   

 

Na praia da Ponta Negra - No Roadway - Igarapé de Manaus
(Mauri Mrq-Alcides Werk) 



[1] Referência ao projeto Prosamim, de “saneamento” dos igarapés de Manaus, em andamento quando da escritura deste texto.