Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Renascimento após a morte: a maior das curas


João Bosco Botelho

 

    O cuidado com a saúde pode ter começado em qual­quer ponto da escala genealógica do homem. Sem dúvida que o aperfeiçoa­mento da linguagem teve grande importância, já que a elaboração dos sons para caracterizar a dor do seu desconforto deve ter sido um dos pontos de partida para o domínio da natureza com objetivo de gerar o conforto, consequentemente fugindo da dor e do sofrimento de qualquer natureza. A abordagem de Engels continua interessante como um dos precursores que entenderam o processo da hominização por meio das transformações do traba­lho e das linguagens.  

    A medicina surgiu como especialidade social em comunidades ágrafas de caçadores e coletores. Nessa fase, milhares de anos antes da linguagem escrita, os ancestrais distantes comunicaram as experiências e sentimentos por meio das ações concretas, gestos isolados, olhares ou com o silên­cio. Pode ter sido por meio dessa linguagem simbólica que nossos antepas­sados referiram a dor no braço estraçalhado em acidente de caça ou o desconforto causado pela febre.

    Nessa época remota, os nossos antepassados utilizavam as cavernas para proteção contra as intempéries da natureza gelada, fabricavam e usavam artefatos de pedra e osso trabalhados com delicadeza e objetividade, além de usar fogo domado e de praticar o sepultamento ritual dos mortos.

    O historiador Mircea Eliade, com propriedade incompará­vel, atribuiu a dificuldade quase intransponível de mensurar esse passado no fato de que as crenças e as ideias não serem fossilizá­veis. Quando os arqueólogos descobrem um túmulo com significação histó­rica, todos os detalhes do esqueleto e das oferendas são importantes para compreender o grupo social, porém grande parte dos valores e revelações intrínsecas do morto continuará nas suposições. Essas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida em que recuamos no tempo. Por esta razão, alguns reconhecidos autores, como Leroi-Gourhan, assumem posição crítica em relação à existência de religiosidade anterior há 40.000 anos.

    A partir dessa data é claríssima a presença nos sepultamentos rituais da crença na vida após a morte. Os mortos foram enterrados acompanhados de artefatos de caça e pesca e grandes porções de carne.

    O imaginável renascimento após a morte pode representar, em última análise, a mais importante das curas, quando as doenças e sofrimentos são superados pela possibilidade de recomeçar a vida. Essa fantástica busca pode ter começado com o juízo arcaico de ser possível renascer a partir dos ossos, ligada ao sepultamento ritual. Nesse sentido, essa construção pode estar relacionada às passagens do Antigo Testamento: a mulher, a partir da costela do primeiro homem (Gn 2, 21‑24), e o renascimento a partir dos ossos descarnados (Ez 37, 1‑8). Assim, não deve parecer estranha a crença popu­lar no poder curador dos ossos dos santos, conservados como relíquias e amuletos contra a doença e o infortúnio.