Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 9/10


Zemaria Pinto


1.  Peças cariocas

As peças tratadas neste bloco, além do cenário motivador do título, escancaram o tema político dos anos 1960/70, sem subterfúgios: depois de tanta censura, a promessa do general Geisel, de uma distensão lenta e gradual, permitia ousar uma crítica menos velada ao “sistema”. Essa objetividade redunda em textos cuja leitura se completa sob a perspectiva histórica da época. Para os amazonenses, há um outro estranhamento: o referencial geográfico carioca, distante daquele teatro amazônico, trágico-iconoclasta, pleno de poesia.
Desentranhada do romance Operação Silêncio, de 1979, O elogio da preguiça, encenada pela primeira vez em 1980, põe em cena uma embaixatriz e um general ociosos e saudosos de tempos ainda mais duros, em oposição aos representantes da “classe operária”, Maria, a “afilhada” da embaixatriz, e João, que entra na história que nem o J. Pinto Fernandes, do poema “Quadrilha”, de Drummond. Recheada de expressões e situações chulas, bem ao gosto das platéias cosmopolitas, O elogio da preguiça cumpre sua função de farsa clássica, no emaranhado de quiproquós e na pouco sutil, mas muito engraçada, sessão espírita, onde o infeliz ectoplasma do camarada Stalin resolve dar o ar de sua graça
Ação entre amigos retoma o pano de fundo político, numa paisagem de fim de semana. Sem data de encenação ou escritura, trata-se de um thriller, com um crescendo que vai de uma tenebrosa tempestade a múltiplos assassinatos, com intermezzos de pesadelos, que ajudam a delinear melhor as principais personagens. Nesse tipo de trama, é melhor não adiantar nada para não frustrar o clímax, mas garanto que o culpado não é o mordomo, até porque nãoum nesse drama motivado pela vingança de uma vítima do regime militar

As peças cariocas parecem hoje deslocadas no conjunto da obra dramática de Márcio Souza, mas, do ponto de vista de sua evolução como escritor – dramaturgo, romancista, ensaísta –, elas são como elementos que se encaixam num grande painel de época. Se as metáforas das peças míticas, das tragédias e das chanchadas perduram é porque mantêm a “atualidade de sensações e preocupações”, enquanto as peças cariocas tratam de temas historicamente – talvez seja mais sensato dizerpresentemente” –  superados, como a ameaça ao estado democrático, ainda que subtemas, como a corrupção política e o ócio de uma classe decadente e improdutiva, nunca tenham sido tão atuais. De qualquer forma, a denúncia do grotesco representado pela tutela imposta pelo estado policial-militar é parte indissociável do legado do autor.