Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Deuses, heróis, bufões – uma dramaturgia amazônica 6/10



Zemaria Pinto


Tragédia do homem comum, tragédia coletiva, Pequeno teatro da felicidade (1997b, p.9-63), estreada em 1977, desloca o eixo das atenções do universo índio e mergulha num mundo de referências brancas. Metateatro recheado de alusões intertextuais tem como pano de fundo a pequena e pobre Manaus de 1836, ocasião em que o conflito entre cabanos e legais recrudesce e torna-se mais sangrento. A peça inicia com três atores mambembes fornecendo informações ao público que irá assistir ao espetáculo que eles vão representar com seu grupo: 

– No ano de 1836 a vila de Manaus ficou seis meses sob ocupação dos revolucionários cabanos. Ainda que no início a revolução buscasse altos ideais, aos poucos ela foi degenerando em anarquia e pasto para os mais diversos tipos de caudilho. Em 1836, todos os ideais tinham se perdido.     

Na peça encenada dentro da peça os atores mambembes representam-se a si mesmos como personagens. Tem início a trama: uma jovem, filha do ferreiro, que se preparava para a vida monástica em Belém, fora assassinada na noite anterior, próximo de onde estavam acampados os atores. Era a terceira ocorrência semelhante em poucos dias: duas outras noviças também foram mortas e seviciadas nas mesmas circunstâncias. O acusado do crime é Geraldo Taqueirinha, oficial cabano, filho de Freire Taqueirinha, o segundo homem mais poderoso do governo cabano em Manaus, que fica furioso, pois sabe que o filho é um devasso inconsequente. Hermínia, sua esposa, não apenas defende o filho como incute no marido a ideia de que o castigo não se abaterá somente sobre o rapaz, mas sobre toda a família, ainda mais que se tratava de crime político: as moças, das poucas pessoas letradas do lugar, eram acusadas de escrever um manifesto em nome dos legais. Pedro, o sapateiro, um homem de muitas leituras, que não simpatizava com a violência, obtém dos atores o testemunho definitivo: um deles viu o assassinato precedido de tortura e violência sexual. Um tribunal de investigação é instalado, sob a presidência do Vigário Geral, que recebera a denúncia de Pedro e dos atores. O tribunal revela-se uma farsa: o sapateiro é torturado e morto, sendo-lhe imputada a morte da filha do ferreiro; os atores renegam o depoimento anterior, afirmando ter visto um mapinguari violentando e degolando a moça.

Sem se deixar envolver pelas armadilhas do maniqueísmo, o texto deixa clara a ideia de que o poder, nas mãos de quem quer esteja, é instrumento de destruição. A cabanagem foi a mais sangrenta revolta do período da Regência – e os livros de história registram que a rebelião, antes de ser tomada por líderes populares emergentes, deu-se em função de mesquinhos interesses privados. E registram também inúmeras atrocidades da outra parte, que, afinal, saiu-se vencedora. O que poderia ser um punhado de dramas individuais transforma-se numa grande tragédia coletiva, onde o homem comum é manipulado, tornando-se algoz de seus próprios interesses. Aqui nãoheróis e todos, sem exceção, em algum momento, são pusilânimes: o sapateiro sente um estranho remorso pela morte das jovens, pois era ele que deveria ter escrito o manifesto; não o fez por medo. Por medo, os atores voltam atrás em seu depoimento. Por medo, o Vigário Geral precisa manter o impossível equilíbrio entre o secular e o sagrado. O próprio Taqueirinha sofre do medo de perder o poder: “– O governo é talvez o fardo mais pesado que um homem pode carregar. E muitas vezes carrega sozinho contra o próprio povo.”

A cadeia de pusilanimidades permite que os atores brinquem com a figura do chefe do governo cabano, Correia Sena, que em boa hora vai a uma reunião na vila de Serpa, apresentando duas versões para o fato: ele sabia ou não sabia dos planos de seu substituto? A viagem de Correia Sena deixa a Freire Taqueirinha o encargo de decretar o estado de guerra, com direito a fuzilamento sumário dos legais. Estava salva a reputação da família.

A opção por fazer teatro dentro do teatro remete-nos de pronto a Shakespeare, para quem o mundo é um palco e nós meros atores. A opção pela metalinguagem tem, entretanto, um componente mais prático: evitar o óbvio realismo que uma representação direta dos fatos históricos exigiria. Assim, o que é encenado é uma ilusão da ilusão, uma superilusão, que não permite o mínimo vestígio naturalista. Na leitura, é claro, esse efeito tende a se esvanecer.

Ao leitor amador da boa literatura não passará despercebida a influência da Commedia dell’arte no modo como a companhia mambembe se organiza e “encena” o texto, bem como no nome dos atores-personagens, relacionados com o espírito medieval: Pampineia, narradora de Boccaccio, o cruzado Bohemond e Rossinhol, o rouxinol, tema caro aos trovadores. Há também referências explícitas aos irmãos Marx, no início e no fim, bem como à composição de uma Lady Macbeth portuguesa, na figura da ambiciosa (e pusilânime) Hermínia Taqueirinha. Pequeno teatro da felicidade é um jogo de espelhos, desde o falso título ao falso tom de comédia com que inicia e termina: o público/leitor, se olhar/ler com atenção, ver-se-á, mero simulacro, a entrar e sair da prodigiosa carroça dos atores.