Zemaria Pinto
Tragédia do homem comum , tragédia coletiva ,
Pequeno teatro
da felicidade (1997b, p.9-63), estreada em
1977, desloca o eixo das atenções do universo
índio e mergulha num mundo
de referências brancas. Metateatro
recheado de alusões intertextuais tem como
pano de fundo
a pequena e pobre
Manaus de 1836, ocasião em que o conflito entre
cabanos e legais recrudesce e torna-se mais sangrento. A peça
inicia com três
atores mambembes
fornecendo informações ao público que irá
assistir ao espetáculo que eles vão representar com seu grupo :
– No ano de 1836 a vila
de Manaus ficou seis meses sob ocupação
dos revolucionários cabanos. Ainda que no início a revolução
buscasse altos ideais ,
aos poucos ela
foi degenerando em anarquia
e pasto para os mais diversos tipos de caudilho .
Em 1836, todos
os ideais tinham se perdido.
Na peça
encenada dentro da peça
os atores mambembes
representam-se a si mesmos
como personagens .
Tem início a trama :
uma jovem , filha
do ferreiro , que
se preparava para a vida
monástica em
Belém, fora assassinada na noite anterior ,
próximo de onde
estavam acampados os atores . Era a terceira ocorrência semelhante
em poucos
dias : duas outras noviças também foram mortas e seviciadas nas mesmas circunstâncias . O acusado do crime
é Geraldo Taqueirinha, oficial cabano, filho de Freire Taqueirinha, o segundo
homem mais
poderoso do governo
cabano em Manaus, que
fica furioso , pois sabe que o filho é um devasso inconsequente.
Hermínia, sua esposa ,
não apenas
defende o filho como
incute no marido a ideia de que o castigo não se abaterá somente sobre o rapaz , mas sobre toda a família ,
ainda mais
que se tratava de crime
político : as moças, das poucas pessoas letradas do lugar ,
eram acusadas de escrever um
manifesto em
nome dos legais .
Pedro, o sapateiro , um homem de muitas
leituras, que não simpatizava com a violência, obtém dos atores
o testemunho definitivo :
um deles viu o assassinato
precedido de tortura e violência sexual .
Um tribunal
de investigação é instalado, sob a presidência
do Vigário Geral ,
que recebera a denúncia
de Pedro e dos atores . O tribunal revela-se uma farsa :
o sapateiro é torturado e morto , sendo-lhe imputada a morte
da filha do ferreiro ;
os atores renegam o depoimento
anterior , afirmando ter
visto um
mapinguari violentando e degolando a moça .
Sem se deixar
envolver pelas armadilhas
do maniqueísmo, o texto deixa clara a
ideia de que o poder ,
nas mãos de quem
quer esteja, é instrumento
de destruição . A cabanagem foi a mais sangrenta revolta do período da Regência – e os livros de história
registram que a rebelião ,
antes de ser tomada por líderes populares
emergentes , deu-se em
função de mesquinhos
interesses privados .
E registram também inúmeras atrocidades da outra
parte , que ,
afinal , saiu-se vencedora. O que poderia ser um punhado
de dramas individuais
transforma-se numa grande tragédia coletiva ,
onde o homem
comum é manipulado, tornando-se algoz de seus próprios interesses .
Aqui não
há heróis e todos ,
sem exceção ,
em algum
momento , são
pusilânimes : o sapateiro
sente um estranho
remorso pela
morte das jovens ,
pois era ele que deveria
ter escrito
o manifesto; não o fez por medo . Por medo, os atores voltam atrás
em seu
depoimento. Por medo, o Vigário Geral precisa manter o impossível equilíbrio entre
o secular e o sagrado .
O próprio Taqueirinha sofre do medo
de perder o poder : “– O governo é talvez
o fardo mais
pesado que um
homem pode carregar .
E muitas vezes carrega sozinho contra
o próprio povo .”
A cadeia
de pusilanimidades permite que os atores brinquem com
a figura do chefe
do governo cabano, Correia
Sena , que em boa hora vai
a uma reunião na vila
de Serpa, apresentando duas versões para o fato : ele sabia ou
não sabia dos planos de seu substituto ?
A viagem de Correia
Sena deixa a
Freire Taqueirinha o encargo de decretar o estado de guerra , com direito a fuzilamento sumário dos legais .
Estava salva a reputação
da família .
A opção
por fazer teatro dentro
do teatro remete-nos de pronto a Shakespeare, para quem o mundo é um palco e nós meros atores . A opção
pela metalinguagem
tem, entretanto , um
componente mais
prático : evitar
o óbvio realismo
que uma representação
direta dos fatos
históricos exigiria. Assim , o que é
encenado é uma ilusão da ilusão , uma superilusão, que
não permite o mínimo
vestígio naturalista. Na leitura ,
é claro , esse
efeito tende a se esvanecer .
Ao leitor
amador da boa literatura não passará
despercebida a influência da Commedia dell’arte no modo como a companhia mambembe
se organiza e “encena” o texto , bem como no nome dos atores-personagens, relacionados com o espírito medieval : Pampineia, narradora de Boccaccio, o cruzado Bohemond e Rossinhol, o rouxinol ,
tema caro
aos trovadores . Há também
referências explícitas aos irmãos Marx, no início
e no fim , bem
como à composição
de uma Lady Macbeth portuguesa, na figura
da ambiciosa (e pusilânime )
Hermínia Taqueirinha. Pequeno teatro da felicidade
é um jogo
de espelhos , desde
o falso título
ao falso tom
de comédia com
que inicia e termina: o público /leitor ,
se olhar /ler com atenção ,
ver-se-á, mero simulacro ,
a entrar e sair da prodigiosa carroça
dos atores .