Zemaria Pinto
Amazonas amazonas. Carvajal prepara o encontro do seu leitor com
as amazonas usando uma conhecida técnica narrativa de suspense: espalha as
informações ao longo texto, desde o primeiro contato, com Aparia, já citado. No
segundo contato, há nova citação, desta vez mais explícita quanto ao perigo que
corriam:
Estavam os índios muito atentos, ouvindo o que o Capitão lhes dizia e
lhe recomendaram que, se fôssemos ver as amazonas, que chama na sua língua coniupuiara, que quer dizer grandes
senhoras, que víssemos o que fazíamos, porque éramos poucos e elas muitas, e
que nos matariam. Que não parássemos em sua terra, porque eles ali nos dariam
tudo de que tivéssemos mister. Disse-lhe o Capitão que não podia fazer outra
coisa senão passar de largo, para dar notícia a quem o enviava, que era o seu
rei e senhor. (p. 30)
Se no
contato inicial havia promessa de riqueza, neste há a ameaça de morte,
amenizada pela declaração de paz e de lealdade para com o rei. Mas essa lealdade
não poderia prescindir de observá-las “para dar notícia”, pois era fato sem
precedentes, e fugir dele não era do feitio do Capitão.
Na “aldeia
de medíocre tamanho”, já referida, o Capitão toma conhecimento de mais detalhes
sobre as amazonas, ao interrogar a respeito da praça dos adoradores do sol,
onde havia “dois leões ferocíssimos”:
Perguntou o Capitão a um índio o que era aquilo e o que significava
naquela praça, e o índio respondeu que eles são súditos e tributários das
amazonas, e que não as forneciam senão de penas de papagaios e de guacamaios[1] para
forrarem os tetos dos seus adoratórios. Que as povoações que eles tinham eram
daquela maneira, conservando-o ali como lembrança e o adoravam como emblema de
sua senhora, que é quem governa toda a terra das ditas mulheres. (p. 51-52)
As
amazonas de Carvajal eram ricas, belicosas e muito bem organizadas socialmente,
ao ponto de terem súditos e tributários, que faziam de seu emblema objeto de
culto.
No dia 24
de junho de 1542 dá-se, afinal, o desejado – ainda que não admitido – encontro:
Íamos desta maneira caminhando e procurando um lugar aprazível para
folgar e celebrar a festa do bem-aventurado São João Batista, precursor de
Cristo, e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos
alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa
terra e senhorio das amazonas. (p. 58)
Observe-se
a organização militar imaginada por Carvajal: as amazonas já sabiam da chegada
da expedição às suas terras; foram encontrá-los guerreiros homens preparados
para a luta. Talvez pudesse o Capitão desviar-se do assédio incômodo, mas
Carvajal mostra-o curioso:
Estavam estes povos já avisados e sabiam da nossa ida, e por isso nos
vieram receber no caminho por água, mas não com boa intenção. Chegando perto,
como o Capitão os quisesse trazer à paz, começando a falar-lhes e a chamá-los,
riram-se eles e faziam burla de nós; aproximavam-se e diziam que andássemos,
pois ali abaixo nos esperavam, para prender-nos a todos e levar-nos às
amazonas. (p. 59)
O Capitão,
“ofendido com a soberba dos índios”, ordena o ataque, dispersando os índios que
“voltaram para a aldeia a dar notícia do que tinham visto”. Mesmo conhecendo o
perigo, ordena o Capitão o saque a uma aldeia – no centro da qual se reunia
“uma multidão” –, com uma finalidade, digamos, previsível: “para buscar
comida”. Assim que chegaram em terra, foram devidamente recepcionados: “parecia
que choviam flechas” (p.59).
Apesar da
defesa de balhesteiros e arcabuzeiros, a superioridade numérica dos índios
desta vez prevaleceu:
Foi isto causa de que nos fizeram tanto mal que antes que saltássemos
em terra já tinham ferido a cinco dos nossos, dos quais eu fui um deles,
levando uma flecha na ilharga, que me chegou ao vazio e se não fossem os
hábitos, ali teria ficado. (p. 60)
O texto
não é claro. Este primeiro ferimento, pelo que se depreende da leitura, não
tirou o frade de combate. Talvez o tenha ferido de raspão, apenas, protegido
pelo hábito, feito de um tecido muito espesso.
Travou-se aqui mui grande e perigosa
batalha, porque os índios andavam misturados com os nossos espanhóis, que se
defendiam tão corajosamente, que era uma coisa maravilhosa de ver-se. (p. 60)
Após “mais
de uma hora” de combate, os índios pareciam redobrar o ânimo, mesmo tropeçando
em seus próprios mortos. Vejamos o depoimento de Carvajal para explicar tanto
ímpeto e selvageria, naquele parágrafo que é o mais importante de todo o texto,
pela sua historicidade:
Quero que saibam qual o motivo de se defenderem
os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos e tributários das
amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou
doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios
como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as
espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão
porque os índios tanto se defendiam. (p. 60)
Primeiro,
deve-se atentar para o estilo de Carvajal, quando enfatiza o que já fora dito
antes sobre súditos e tributários, bem como sua conhecida vinda, pelo que
“foram pedir-lhes socorro”. Agora o ponto do devaneio, que, com o tempo
transformou-se em mistificação: “e vieram dez ou doze”. Estas cinco palavras
ecoam ainda hoje na memória coletiva da Amazônia: dez ou doze
mulheres-guerreiras! Atuando “como capitãs”, os índios “não ousavam
mostrar-lhes as espáduas”, e os que o faziam eram inapelavelmente mortos a
pauladas. E Carvajal dá o seu testemunho para a eternidade incrédula: “a estas
nós as vimos!”. Ainda que aquelas mulheres-guerreiras fossem de uma tribo só de
mulheres, “dez ou doze” representam uma amostra, apenas – insignificante, aliás
–, diante do arcabouço mental do mito, que tomava forma a partir daquele
depoimento.
Estas mulheres são muito alvas e altas, com
o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e
andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas
mãos, fazendo guerra como dez índios. (p. 60)
A
descrição não bate com nenhum biótipo feminino da região; mas, alvas, altas e
fortes, bem que poderiam ser europeias – o padrão de beleza com o qual Carvajal
estava familiarizado. Se pensarmos nas Afrodites renascentistas, poderiam ser
gregas. Guardemos a informação de que “andam nuas em pelo”, ainda que “tapadas
as suas vergonhas”, porque vamos precisar dela adiante.
As dez ou
doze mulheres-guerreiras deixaram os bergantins de tal forma que “pareciam
porco-espinho”, de tanta flecha. Interessante é que ainda encontravam tempo
para matar a pauladas os vassalos covardes. Uma nota de decepção é registrada
ao final do encarniçado combate:
Foi Nosso Senhor servido dar força e coragem aos nossos companheiros,
que mataram sete ou oito dessas amazonas, razão pela qual os índios afrouxaram
e foram vencidos e desbaratados com farto dano de suas pessoas. (p. 61)
As duas a
cinco coniupuiaras que sobreviveram e
fugiram frustraram o Capitão, que desejava, certamente, capturá-las, para
mostrá-las a El Rei. Entretanto, prenderam “um índio trombeteiro, de cerca de
trinta anos de idade, que começou a contar ao Capitão muitas coisas do interior
da terra.”[2] Para
compensar o dano de não haver aprisionado uma autêntica amazona, “o Capitão o
levou consigo” (p. 61).
Nesse ponto
da viagem, na foz do rio que hoje chamamos de Nhamundá, um Carvajal angustiado
calcula que diste “mil e quatrocentas léguas, antes mais do que menos”, desde o
ponto em que deixaram Pizarro – “e não sabemos ainda o que falta daqui até o
mar”.
Estafados,
os espanhóis deixam-se “ir à garra”,[3] quando sofrem novo ataque de
índios emboscados: “só a mim feriram, que me deram um flechaço num olho, que
passou a flecha para o outro lado” (p. 62). Entre aqueles índios já não estavam
as amazonas; tratava-se, aliás, como Carvajal deixa bem claro, de uma outra
aldeia. Mas, como estavam relativamente próximos ao lugar do conflito anterior,
podemos supor que eram súditos machos das coniupuiaras.
É preciso enfatizar, entretanto, que, ao contrário do que reza o credo popular,
Carvajal não foi ferido pelas amazonas. A propósito, analisemos esse ferimento,
a partir das palavras do próprio narrador: “um flechaço no olho”, poderia ser
mera hipérbole; um fragmento que o atingisse poderia levá-lo àquela expressão.
O problema reside no trecho “que passou a flecha para o outro lado”. Aqui não
temos como interpretar as palavras de Carvajal, a não ser literalmente: a
flecha penetrou na órbita ocular de um dos olhos do cronista, atravessando sua
caixa craniana, transpassando-a, até o ponto posterior à referida órbita. O
estrago não seria apenas no olho! Claro que se trata de um outro milagre; sem
dúvida, o mais sensacional de todos. Mas Carvajal é um homem de fé, e conhece
suas limitações humanas, tanto que nem admite o maravilhoso do acontecimento,
refletindo sobre ele com uma humildade dominicana:
Desta ferida perdi um olho e não estou sem fadiga e falta de dor,
posto que Nosso Senhor, sem que o mereça, me quis conservar a vida para que me
emende e o sirva melhor do que até aqui. (p.62)
A narrativa segue com a mesma riqueza de detalhes de antes. Carvajal
não volta, em nenhum momento, ao assunto do ferimento que lhe roubara um dos
olhos.
[1]
Da família dos papagaios: “talvez araras ou jandaias” (p. 51, em nota do
tradutor).
[2]
Carvajal se precipita ao dizer que o índio “começou a contar”, pois mais
adiante afirma que o Capitão “já o entendia por um vocabulário que havia
feito”.
[3]
À deriva, ao sabor da correnteza; “de bubuia”, como se diz na região.