Amigos do Fingidor

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 6/8

 Zemaria Pinto

 

Amazonas amazonas. Carvajal prepara o encontro do seu leitor com as amazonas usando uma conhecida técnica narrativa de suspense: espalha as informações ao longo texto, desde o primeiro contato, com Aparia, já citado. No segundo contato, há nova citação, desta vez mais explícita quanto ao perigo que corriam:

 

Estavam os índios muito atentos, ouvindo o que o Capitão lhes dizia e lhe recomendaram que, se fôssemos ver as amazonas, que chama na sua língua coniupuiara, que quer dizer grandes senhoras, que víssemos o que fazíamos, porque éramos poucos e elas muitas, e que nos matariam. Que não parássemos em sua terra, porque eles ali nos dariam tudo de que tivéssemos mister. Disse-lhe o Capitão que não podia fazer outra coisa senão passar de largo, para dar notícia a quem o enviava, que era o seu rei e senhor. (p. 30)

 

Se no contato inicial havia promessa de riqueza, neste há a ameaça de morte, amenizada pela declaração de paz e de lealdade para com o rei. Mas essa lealdade não poderia prescindir de observá-las “para dar notícia”, pois era fato sem precedentes, e fugir dele não era do feitio do Capitão.

Na “aldeia de medíocre tamanho”, já referida, o Capitão toma conhecimento de mais detalhes sobre as amazonas, ao interrogar a respeito da praça dos adoradores do sol, onde havia “dois leões ferocíssimos”:

 

Perguntou o Capitão a um índio o que era aquilo e o que significava naquela praça, e o índio respondeu que eles são súditos e tributários das amazonas, e que não as forneciam senão de penas de papagaios e de guacamaios[1] para forrarem os tetos dos seus adoratórios. Que as povoações que eles tinham eram daquela maneira, conservando-o ali como lembrança e o adoravam como emblema de sua senhora, que é quem governa toda a terra das ditas mulheres. (p. 51-52)

 

As amazonas de Carvajal eram ricas, belicosas e muito bem organizadas socialmente, ao ponto de terem súditos e tributários, que faziam de seu emblema objeto de culto.

No dia 24 de junho de 1542 dá-se, afinal, o desejado – ainda que não admitido – encontro:

 

Íamos desta maneira caminhando e procurando um lugar aprazível para folgar e celebrar a festa do bem-aventurado São João Batista, precursor de Cristo, e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e senhorio das amazonas. (p. 58)

 

Observe-se a organização militar imaginada por Carvajal: as amazonas já sabiam da chegada da expedição às suas terras; foram encontrá-los guerreiros homens preparados para a luta. Talvez pudesse o Capitão desviar-se do assédio incômodo, mas Carvajal mostra-o curioso:

 

Estavam estes povos já avisados e sabiam da nossa ida, e por isso nos vieram receber no caminho por água, mas não com boa intenção. Chegando perto, como o Capitão os quisesse trazer à paz, começando a falar-lhes e a chamá-los, riram-se eles e faziam burla de nós; aproximavam-se e diziam que andássemos, pois ali abaixo nos esperavam, para prender-nos a todos e levar-nos às amazonas. (p. 59)

  

O Capitão, “ofendido com a soberba dos índios”, ordena o ataque, dispersando os índios que “voltaram para a aldeia a dar notícia do que tinham visto”. Mesmo conhecendo o perigo, ordena o Capitão o saque a uma aldeia – no centro da qual se reunia “uma multidão” –, com uma finalidade, digamos, previsível: “para buscar comida”. Assim que chegaram em terra, foram devidamente recepcionados: “parecia que choviam flechas” (p.59).

Apesar da defesa de balhesteiros e arcabuzeiros, a superioridade numérica dos índios desta vez prevaleceu:

 

Foi isto causa de que nos fizeram tanto mal que antes que saltássemos em terra já tinham ferido a cinco dos nossos, dos quais eu fui um deles, levando uma flecha na ilharga, que me chegou ao vazio e se não fossem os hábitos, ali teria ficado. (p. 60)

 

O texto não é claro. Este primeiro ferimento, pelo que se depreende da leitura, não tirou o frade de combate. Talvez o tenha ferido de raspão, apenas, protegido pelo hábito, feito de um tecido muito espesso.

 

Travou-se aqui mui grande e perigosa batalha, porque os índios andavam misturados com os nossos espanhóis, que se defendiam tão corajosamente, que era uma coisa maravilhosa de ver-se. (p. 60)

 

Após “mais de uma hora” de combate, os índios pareciam redobrar o ânimo, mesmo tropeçando em seus próprios mortos. Vejamos o depoimento de Carvajal para explicar tanto ímpeto e selvageria, naquele parágrafo que é o mais importante de todo o texto, pela sua historicidade:

 

Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos e tributários das amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão porque os índios tanto se defendiam. (p. 60)

 

Primeiro, deve-se atentar para o estilo de Carvajal, quando enfatiza o que já fora dito antes sobre súditos e tributários, bem como sua conhecida vinda, pelo que “foram pedir-lhes socorro”. Agora o ponto do devaneio, que, com o tempo transformou-se em mistificação: “e vieram dez ou doze”. Estas cinco palavras ecoam ainda hoje na memória coletiva da Amazônia: dez ou doze mulheres-guerreiras! Atuando “como capitãs”, os índios “não ousavam mostrar-lhes as espáduas”, e os que o faziam eram inapelavelmente mortos a pauladas. E Carvajal dá o seu testemunho para a eternidade incrédula: “a estas nós as vimos!”. Ainda que aquelas mulheres-guerreiras fossem de uma tribo só de mulheres, “dez ou doze” representam uma amostra, apenas – insignificante, aliás –, diante do arcabouço mental do mito, que tomava forma a partir daquele depoimento.

 

Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo guerra como dez índios. (p. 60)

 

A descrição não bate com nenhum biótipo feminino da região; mas, alvas, altas e fortes, bem que poderiam ser europeias – o padrão de beleza com o qual Carvajal estava familiarizado. Se pensarmos nas Afrodites renascentistas, poderiam ser gregas. Guardemos a informação de que “andam nuas em pelo”, ainda que “tapadas as suas vergonhas”, porque vamos precisar dela adiante.

As dez ou doze mulheres-guerreiras deixaram os bergantins de tal forma que “pareciam porco-espinho”, de tanta flecha. Interessante é que ainda encontravam tempo para matar a pauladas os vassalos covardes. Uma nota de decepção é registrada ao final do encarniçado combate:

 

Foi Nosso Senhor servido dar força e coragem aos nossos companheiros, que mataram sete ou oito dessas amazonas, razão pela qual os índios afrouxaram e foram vencidos e desbaratados com farto dano de suas pessoas. (p. 61)

 

As duas a cinco coniupuiaras que sobreviveram e fugiram frustraram o Capitão, que desejava, certamente, capturá-las, para mostrá-las a El Rei. Entretanto, prenderam “um índio trombeteiro, de cerca de trinta anos de idade, que começou a contar ao Capitão muitas coisas do interior da terra.”[2] Para compensar o dano de não haver aprisionado uma autêntica amazona, “o Capitão o levou consigo” (p. 61).

 

Nesse ponto da viagem, na foz do rio que hoje chamamos de Nhamundá, um Carvajal angustiado calcula que diste “mil e quatrocentas léguas, antes mais do que menos”, desde o ponto em que deixaram Pizarro – “e não sabemos ainda o que falta daqui até o mar”.

Estafados, os espanhóis deixam-se “ir à garra”,[3] quando sofrem novo ataque de índios emboscados: “só a mim feriram, que me deram um flechaço num olho, que passou a flecha para o outro lado” (p. 62). Entre aqueles índios já não estavam as amazonas; tratava-se, aliás, como Carvajal deixa bem claro, de uma outra aldeia. Mas, como estavam relativamente próximos ao lugar do conflito anterior, podemos supor que eram súditos machos das coniupuiaras. É preciso enfatizar, entretanto, que, ao contrário do que reza o credo popular, Carvajal não foi ferido pelas amazonas. A propósito, analisemos esse ferimento, a partir das palavras do próprio narrador: “um flechaço no olho”, poderia ser mera hipérbole; um fragmento que o atingisse poderia levá-lo àquela expressão. O problema reside no trecho “que passou a flecha para o outro lado”. Aqui não temos como interpretar as palavras de Carvajal, a não ser literalmente: a flecha penetrou na órbita ocular de um dos olhos do cronista, atravessando sua caixa craniana, transpassando-a, até o ponto posterior à referida órbita. O estrago não seria apenas no olho! Claro que se trata de um outro milagre; sem dúvida, o mais sensacional de todos. Mas Carvajal é um homem de fé, e conhece suas limitações humanas, tanto que nem admite o maravilhoso do acontecimento, refletindo sobre ele com uma humildade dominicana:

 

Desta ferida perdi um olho e não estou sem fadiga e falta de dor, posto que Nosso Senhor, sem que o mereça, me quis conservar a vida para que me emende e o sirva melhor do que até aqui. (p.62)

 

 A narrativa segue com a mesma riqueza de detalhes de antes. Carvajal não volta, em nenhum momento, ao assunto do ferimento que lhe roubara um dos olhos.  

 



[1] Da família dos papagaios: “talvez araras ou jandaias” (p. 51, em nota do tradutor). 

[2] Carvajal se precipita ao dizer que o índio “começou a contar”, pois mais adiante afirma que o Capitão “já o entendia por um vocabulário que havia feito”.

[3] À deriva, ao sabor da correnteza; “de bubuia”, como se diz na região.