Amigos do Fingidor

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 1/4


Zemaria Pinto

 

I

Para efeito deste trabalho, delimitei a abordagem da obra de Antísthenes Pinto à sua poesia de invenção e ao seu trabalho de ficcionista-artesão, avaliado a partir de romances e novelas, deixando de fora da análise os contos, além de crônicas e ensaios. Esta é a razão do título. E por que os contos ficaram de fora? Porque não se enquadram nessa categoria de “ficção artesanal”, estando mais próximos da invenção, o que exigiria uma análise à parte e um tempo/espaço de que não dispunha. Fico devendo, bem como sobre crônicas e ensaios, gêneros que passam ao largo deste escopo.

 

II

Ezra Pound classificou os escritores em seis categorias: lançadores de modas, beletristas, bons escritores sem qualidades salientes, diluidores, mestres e inventores. Imagine uma pirâmide. Na base, estão os lançadores de moda, os best-sellers. Os beletristas especializaram-se em reproduzir fórmulas gastas. Os bons escritores sem qualidades salientes destacam-se dos demais, mas não tanto assim: são epígonos, seguidores de uma determinada corrente. Os diluidores especializaram-se em reproduzir a técnica dos grandes mestres. Os mestres são aqueles que estão no penúltimo patamar da pirâmide – sobre eles não há questionamentos. Mas e os inventores, o topo da hipotética pirâmide? Reproduzindo as palavras do próprio Pound: os inventores são escritores que “descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo” (1977, p. 42). Longe de mim querer classificar os escritores amazonenses pelos parâmetros do norte-americano, até porque eles só se aplicam quando uma literatura – um conjunto significativo de obras – é analisada com o devido distanciamento histórico. A lembrança de Pound, entretanto, tem para mim uma motivação sentimental: foi tema de algumas das primeiras conversas que tive com Antísthenes Pinto – lá pelos idos de 1981, há quase 40 anos. E também porque, para mim, seu livro de poemas Angústia numeral, o primeiro de Antísthenes que li, representava – no âmbito da literatura produzida no Amazonas – aquilo a que Pound chamava de invenção.

 

Eu sou velho porque antes que todos

me chamem de velho eu o sou;

eu sou as paredes das cidades abandonadas,

eu sou a flor que renasceu na terra e no ar,

eu sou os respingos da chuva que o chofer de taxi limpa para ver a estrada,

eu sou a primavera desmaiada no pântano,

(...)

eu sou o rio que esquecido de si mesmo

constrói novas águas e o leito, e as margens

de garças escarlates

e passa e passa como os teus olhos no vazio.

(1976, p. 59)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral ecoavam Allen Ginsberg, num dos mais terríveis poemas escritos no século XX.[1]

 

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,

arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,

“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos da cidade contemplando jazz,

que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,

que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake e entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio (...)

(GINSBERG, p. 41)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral dialogavam com Roberto Piva e seus instantâneos de uma São Paulo delirada.

 

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina

a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na Tarde de esterco

Praça da República dos meus Sonhos

onde tudo se fez febre e pombas crucificadas

onde beatificados vêm agitar as massas

onde Garcia Lorca espera seu dentista

onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces

(PIVA, p. 11)

 

De alguma forma, aqueles poemas de Angústia numeral eram reflexos da poesia do próprio Ezra Pound.

 

a pantera negra jaz debaixo da roseira

e vêm faunos farejar-lhe os flancos

(1983, p. 113)

 

De alguma forma, Ginsberg, Piva e Pound, estavam presentes na poesia de Antísthenes Pinto.

 

Os guarda-chuvas abertos à rua

vertical e a lepra por baixo num euforismo

de canção.

As janelas caladas deixando o vento túmido

passar as suas patas ciclópicas

e o imenso monociclo levando para nenhuma parte

o homem de cabeça decepada

e as mulheres todas com o sexo

sangrando

cobrindo os olhos congestionados.

Execrável o leporino fala que chegou o tempo

das estátuas se masturbarem

e há o suicídio coletivo lindo, lindo

e me liberto das carcomidas parede e saio à chuva

como o recém-nascido do ventre da mãe morta.

(1976, p. 12)

 

Para mim – crítico incipiente – aquilo era invenção.


(Este ensaio será postado em quatro partes, todas as sextas-feiras, até 14 de julho.) 


[1] O anacronismo entre os poemas citados e a bibliografia é apenas aparente, porque os autores eram amplamente divulgados, em jornais e revistas alternativos, além de circularem em edições clandestinas.