Zemaria Pinto
I
Para efeito deste
trabalho, delimitei a abordagem da obra de Antísthenes Pinto à sua poesia de invenção e ao seu trabalho de ficcionista-artesão,
avaliado a partir de romances e novelas, deixando de fora da análise os contos,
além de crônicas e ensaios. Esta é a razão do título. E por que os contos
ficaram de fora? Porque não se enquadram nessa categoria de “ficção artesanal”,
estando mais próximos da invenção, o que exigiria uma análise à parte e um
tempo/espaço de que não dispunha. Fico devendo, bem como sobre crônicas e
ensaios, gêneros que passam ao largo deste escopo.
II
Ezra Pound classificou os escritores em seis categorias:
lançadores de modas, beletristas, bons escritores sem qualidades salientes,
diluidores, mestres e inventores. Imagine uma pirâmide. Na base, estão os
lançadores de moda, os best-sellers.
Os beletristas especializaram-se em reproduzir fórmulas gastas. Os bons
escritores sem qualidades salientes destacam-se dos demais, mas não tanto
assim: são epígonos, seguidores de uma determinada corrente. Os diluidores
especializaram-se em reproduzir a técnica dos grandes mestres. Os mestres são
aqueles que estão no penúltimo patamar da pirâmide – sobre eles não há questionamentos.
Mas e os inventores, o topo da hipotética pirâmide? Reproduzindo as palavras do
próprio Pound: os inventores são escritores que “descobriram um novo processo
ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo” (1977, p. 42).
Longe de mim querer classificar os escritores amazonenses pelos parâmetros do norte-americano,
até porque eles só se aplicam quando uma literatura – um conjunto significativo
de obras – é analisada com o devido distanciamento histórico. A lembrança de
Pound, entretanto, tem para mim uma motivação sentimental: foi tema de algumas
das primeiras conversas que tive com Antísthenes Pinto – lá pelos idos de 1981,
há quase 40 anos. E também porque, para mim, seu livro de poemas Angústia numeral,
o primeiro de Antísthenes que li, representava – no âmbito da literatura
produzida no Amazonas – aquilo a que Pound chamava de invenção.
Eu sou velho
porque antes que todos
me chamem de
velho eu o sou;
eu sou as paredes
das cidades abandonadas,
eu sou a flor que
renasceu na terra e no ar,
eu sou os
respingos da chuva que o chofer de taxi limpa para ver a estrada,
eu sou a
primavera desmaiada no pântano,
(...)
eu sou o rio que
esquecido de si mesmo
constrói novas
águas e o leito, e as margens
de garças
escarlates
e passa e passa
como os teus olhos no vazio.
(1976, p. 59)
De alguma forma, aqueles
poemas de Angústia numeral ecoavam Allen Ginsberg, num dos mais
terríveis poemas escritos no século XX.[1]
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água
quente, flutuando sobre os tetos da cidade contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e
viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de
cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e
radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake e entre os
estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos
& publicarem odes obscenas nas janelas do crânio (...)
(GINSBERG, p. 41)
De alguma forma, aqueles poemas de Angústia
numeral dialogavam com Roberto Piva e seus instantâneos de uma São Paulo
delirada.
A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de
morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
na Tarde de esterco
Praça da República dos meus Sonhos
onde tudo se fez
febre e pombas crucificadas
onde beatificados
vêm agitar as massas
onde Garcia Lorca
espera seu dentista
onde conquistamos
a imensa desolação dos dias mais doces
(PIVA, p. 11)
De alguma forma, aqueles poemas de Angústia
numeral eram reflexos da poesia do próprio Ezra Pound.
a pantera negra jaz debaixo da roseira
e vêm faunos farejar-lhe os flancos
(1983, p. 113)
De alguma forma,
Ginsberg, Piva e Pound, estavam presentes na poesia de Antísthenes Pinto.
Os guarda-chuvas
abertos à rua
vertical e a
lepra por baixo num euforismo
de canção.
As janelas
caladas deixando o vento túmido
passar as suas
patas ciclópicas
e o imenso
monociclo levando para nenhuma parte
o homem de
cabeça decepada
e as mulheres
todas com o sexo
sangrando
cobrindo os olhos
congestionados.
Execrável o
leporino fala que chegou o tempo
das estátuas se
masturbarem
e há o suicídio
coletivo lindo, lindo
e me liberto das
carcomidas parede e saio à chuva
como o
recém-nascido do ventre da mãe morta.
(1976, p. 12)
[1] O
anacronismo entre os poemas citados e a bibliografia é apenas aparente, porque
os autores eram amplamente divulgados, em jornais e revistas alternativos, além
de circularem em edições clandestinas.