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sexta-feira, 16 de junho de 2023

Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e mistificação 8/8

Zemaria Pinto

 

Mito, o nada que é tudo. A narrativa de Carvajal é a semente da qual brotou o mito, envolto em polêmica e mistérios. Há gente séria que acredita poder achar, ainda hoje, as provas de que Carvajal não aumentou em muito a realidade que vivera. Ao longo do tempo, foram várias as tentativas de esclarecer o mito: um século depois de Orellana, Acuña fala das Amazonas com fé inabalável; Walter Raleigh, no século XVI, que descreveu animais fantásticos na Amazônia e anunciou ter descoberto o El Dorado, situou com precisão as terras das Amazonas; La Condamine, em 1745, acreditando que uma mentira tantas vezes repetida torna-se verdade, admite que “todas essas informações tendem a confirmar que houve neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, não havendo homens entre elas” (LA CONDAMINE, p. 84-85, apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 185); Alexander Von Humboldt, mais cuidadoso, no início do século XIX, observa que:

 

A fascinação pelo maravilhoso e o desejo de embelezar as descrições do novo continente através de alguns traços extraídos da Antiguidade Clássica contribuíram para que se atribuísse uma grande importância aos primeiros relatos de Orellana. Vários autores pensaram encontrar nos povos recentemente descobertos tudo o que os gregos nos ensinaram sobre a primeira idade do mundo e sobre os costumes dos bárbaros. (HUMBOLDT, p. 127-131, apud MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 187)

 

O poeta Gonçalves Dias, que andou pela região em missão oficial, em 1861, escreveu um ensaio – A lenda das amazonas – onde tenta demonstrar matematicamente a impossibilidade da existência das amazonas: de 1.000 mulheres, 800 ficariam grávidas; destas, 200 abortariam, ficando apenas 600 a procriar; a maioria a nascer, especialmente nos primeiros anos, é de homens; logo, nasceriam, se muito, apenas cerca de 150 meninas; considerando que cada mulher só iria procriar de 3 em 3 anos, e como as gêmeas teriam que ser exterminadas e deduzindo-se, ainda, as que morressem até os 15 anos e as adultas que sucumbissem de enfermidade, acidente ou em combate, “antes que as primeiras filhas chegassem à idade de poder encurvar o arco, já deixaria de ter existido semelhante república” (DIAS, apud TOCANTINS, p. 23).

O poeta procura explicar o porquê de o mito haver se expandido, contando com a colaboração dos nativos, afirmando que estes

 

Crédulos e mentirosos, amigos de contos e de maravilhas, como crianças respondem muitas vezes no sentido em que supõem que desejamos a resposta, e prestam facilmente o seu testemunho a coisas que nunca viram. (DIAS, apud TOCANTINS, p. 22)

 

O grande poeta do indianismo brasileiro não confiava nos modelos de suas personagens.

A persistência do mito se dá também por meio dos muiraquitãs – um simpático sapinho esculpido em uma pedra verde, uma espécie de jade, que foi encontradiço na região, sem que haja explicação racional para tal, inclusive porque não existe a jazida que poderia fornecer a matéria-prima. O muiraquitã é um amuleto que, reza a lenda, era presenteado pelas mulheres-guerreiras aos pais de suas filhas. Em pleno século XXI, é moda entre as jovens amazonenses o uso desses talismãs, produzidos em escala industrial. Mas essa é uma história fora do nosso escopo, pós-Carvajal. 

Devaneio ou verdade, mito ou mistificação – a relação de Carvajal é o texto fundador da literatura feita no Amazonas. Os seus possíveis excessos fazem parte da nossa história e da nossa memória. Se não é ficção, também não é história – talvez seja um livro de amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu Deus; amor pela sua Ordem, da qual ele foi líder influente.

O Brasil e o Amazonas, em particular, devem à memória de Carvajal uma edição nova, traduzida diretamente dos originais, cotejada com as anotações do próprio Orellana, as crônicas de Oviedo e outras obras de vulto que mantiveram uma relação dialógica com Descobrimento do rio de Orellana. Certamente, pouca novidade trará essa nova edição, mas consolidará uma obra que, gravada no bronze da memória, deve ser eternizada. Como o mito que ela fundamentou. 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BARLETTI, José. Los pueblos amazônicos em tiempos de la llegada de Orellana. Pontifica Universidad Catolica del Perú.

Disponível em: http://red.pucp.edu.pe/ridei/buscador/files/inter82.PDF  

Acesso em 23/11/2010, às 19h00.

BÍBLIA SAGRADA. Coordenador Geral: L. Garmus. Edição Vozes/Círculo do Livro, 1982.

CARVAJAL, Gaspar de. Descobrimento do Rio de Orellana. In: Descobrimentos do Rio das Amazonas. Tradução: C. de Melo-Leitão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.

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HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano no Ocidente Medieval. Tradução: Antonio José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990.

MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América mágica: quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. Tradução: Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

MARTINS, Maria Cristina Bohn. Descobrir e redescobrir o Grande Rio das Amazonas. As Relaciones de Carvajal (1542), Alonso de Rojas (1639) e Christóbal de Acuña (1641). In: Revista de História, n° 156. São Paulo: Portal de Revistas USP, 2007.

Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rh/n156/a03n156.pdf 

Acesso em 21/11/2010, às 11h20min.

NEVES, Auricléa Oliveira das. A Amazônia na visão dos viajantes dos séculos XVI e XVII: percurso e discurso. Manaus: Valer, 2011.

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