Zemaria Pinto
Mito, o nada que é tudo. A narrativa de Carvajal é a semente da qual
brotou o mito, envolto em polêmica e mistérios. Há gente séria que acredita
poder achar, ainda hoje, as provas de que Carvajal não aumentou em muito a
realidade que vivera. Ao longo do tempo, foram várias as tentativas de
esclarecer o mito: um século depois de Orellana, Acuña fala das Amazonas com fé
inabalável; Walter Raleigh, no século XVI, que descreveu animais fantásticos na
Amazônia e anunciou ter descoberto o El Dorado, situou com precisão as terras
das Amazonas; La Condamine, em 1745, acreditando que uma mentira tantas vezes
repetida torna-se verdade, admite que “todas essas informações tendem a
confirmar que houve neste continente uma república de mulheres que viviam
sozinhas, não havendo homens entre elas” (LA CONDAMINE, p. 84-85, apud
MAGASICH-AIROLA e DE BEER, p. 185); Alexander Von Humboldt, mais cuidadoso, no
início do século XIX, observa que:
A fascinação pelo maravilhoso e o desejo de
embelezar as descrições do novo continente através de alguns traços extraídos
da Antiguidade Clássica contribuíram para que se atribuísse uma grande
importância aos primeiros relatos de Orellana. Vários autores pensaram
encontrar nos povos recentemente descobertos tudo o que os gregos nos ensinaram
sobre a primeira idade do mundo e sobre os costumes dos bárbaros. (HUMBOLDT, p. 127-131, apud MAGASICH-AIROLA e
DE BEER, p. 187)
O poeta
Gonçalves Dias, que andou pela região em missão oficial, em 1861, escreveu um
ensaio – A lenda das amazonas – onde
tenta demonstrar matematicamente a impossibilidade da existência das amazonas:
de 1.000 mulheres, 800 ficariam grávidas; destas, 200 abortariam, ficando
apenas 600 a procriar; a maioria a nascer, especialmente nos primeiros anos, é
de homens; logo, nasceriam, se muito, apenas cerca de 150 meninas; considerando
que cada mulher só iria procriar de 3 em 3 anos, e como as gêmeas teriam que ser
exterminadas e deduzindo-se, ainda, as que morressem até os 15 anos e as
adultas que sucumbissem de enfermidade, acidente ou em combate, “antes que as
primeiras filhas chegassem à idade de poder encurvar o arco, já deixaria de ter
existido semelhante república” (DIAS, apud TOCANTINS, p. 23).
O poeta
procura explicar o porquê de o mito haver se expandido, contando com a
colaboração dos nativos, afirmando que estes
Crédulos e mentirosos, amigos de contos e de maravilhas, como crianças
respondem muitas vezes no sentido em que supõem que desejamos a resposta, e
prestam facilmente o seu testemunho a coisas que nunca viram. (DIAS, apud
TOCANTINS, p. 22)
O grande
poeta do indianismo brasileiro não confiava nos modelos de suas personagens.
A
persistência do mito se dá também por meio dos muiraquitãs – um simpático
sapinho esculpido em uma pedra verde, uma espécie de jade, que foi encontradiço
na região, sem que haja explicação racional para tal, inclusive porque não
existe a jazida que poderia fornecer a matéria-prima. O muiraquitã é um amuleto
que, reza a lenda, era presenteado pelas mulheres-guerreiras aos pais de suas
filhas. Em pleno século XXI, é moda entre as jovens amazonenses o uso desses
talismãs, produzidos em escala industrial. Mas essa é uma história fora do
nosso escopo, pós-Carvajal.
Devaneio
ou verdade, mito ou mistificação – a relação de Carvajal é o texto fundador da
literatura feita no Amazonas. Os seus possíveis excessos fazem parte da nossa
história e da nossa memória. Se não é ficção, também não é história – talvez
seja um livro de amor: amor pela aventura; amor por seu Capitão; amor por seu
Deus; amor pela sua Ordem, da qual ele foi líder influente.
O Brasil e
o Amazonas, em particular, devem à memória de Carvajal uma edição nova,
traduzida diretamente dos originais, cotejada com as anotações do próprio
Orellana, as crônicas de Oviedo e outras obras de vulto que mantiveram uma
relação dialógica com Descobrimento do
rio de Orellana. Certamente, pouca novidade trará essa nova edição, mas
consolidará uma obra que, gravada no bronze da memória, deve ser eternizada.
Como o mito que ela fundamentou.
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