Amigos do Fingidor

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Lábios que beijei 33


Zemaria Pinto

Marcela


Fosse eu um personagem machadiano, diria que Marcela me amou por seis meses e alguns milhões de cruzeiros. Não é apenas uma coincidência de nomes, é uma maldição. Cento e oitenta e oito dias foi o tempo da ventura. O montante é uma abstração monetária: o bastante para instalar apartamento confortável, com tudo do melhor disponível à época. Marcela fazia de mim seu sultão, ela meu harém. Aos 19 anos, Marcela era múltipla e absolutamente talentosa em tudo o que fazia, especialmente em se tratando de sexo. Aliás, tiremos o especialmente, que aqui fica sem função. Resumindo Marcela: com ela eu fiz tudo o que imaginei fazer com uma mulher – e mais alguma coisa que só ela poderia imaginar. Um final de tarde, chegando sem avisar ao apartamento, nos altos de um velho sobrado do centro histórico, vi de longe uma figura conhecida indo na mesma direção que eu. Estanquei o passo. Vi que ele entrou onde eu temia que entrasse. Não podia ter dúvidas. Sentei-me idiotamente no meio-fio, com a esperança de que a visita fosse rápida e houvesse uma desculpa razoável depois. Perdi a noção do tempo. Em meu estômago, a sensação de um soco atingindo fígado e baço, se é que tal golpe é possível. No dia seguinte ela me procurou. Sem dizer uma palavra, devolvi-lhe o soco: olho esquerdo roxo, nariz sangrando, escândalo, denúncia, depoimento, abafa. Paguei mais dois meses de aluguel e risquei Marcela do livro-caixa da minha vida. Contudo, ainda hoje, cinquenta e tantos anos passados, desperto em meio à madrugada escutando sua gargalhada sarcástica. Maldita!