Amigos do Fingidor

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A poesia é necessária?

 

Paisagem aquática

Almir Diniz (1929-2021)

 

Imaginei-me poeta

quando me vi remar sonhos

na igarité das ideias

singrando o líquido dorso

dos lagos de minha infância:

– o do Rei e o Marajá –

bordados de canarana

e lendas de cobra-grande

e ilhas de matupá

de bubuia contra o vento

nas asas do meu momento.

 

De passagem, as oiranas

povoadas de ciganas

compunham a valsa da vida

no dolente baticum

dos remos tangendo notas

nas falcas do casco leve

feito de louro-gamela,

fendendo o doce mistério

da ternura adolescente,

na corrente e nos sonidos

dos paranás dos meus idos.

 

No remanso e no rebojo

o meu remo garimpava

salpicos de melodia

vertendo brilhos difusos

que iam tingir de prata

os fornos esmeraldinos

da deusa vitória-régia

repletos de jaçanãs,

falenas, socós, intãs,

de aruás e de magia

a semear poesia.

 

A viagem dos cardumes,

demandando corredeiras,

em fúria reprodutiva

desabrochava em minha alma

uns pendões de melodia

permeando de perfumes

as flores da inspiração

nos domínios da ilusão,

nos teclados da estesia.

Dos frisos das piracemas

nasciam belos poemas.

 

Imaginei-me um esteta,

pintor nativo, um aedo,

quando vinha a primavera,

ouvindo do passaredo

suaves canções nativas

de japiins, sabiás,

canários e curiós,

rouxinóis, uirapurus

saudando manhãs de luz,

a alma de sons vestida,

os olhos tecendo a vida.

 

O sol vindo desatava

clarões de rara beleza

tingindo de luz nenúfares,

sensitiva, mururés,

e os curvos pendões dourados

de arroz-brabo e canarana

atraindo a passarada

ao repasto matinal.

Então o vento lançava

chuva de grãos saciando

a piracema passando.