Amigos do Fingidor

sexta-feira, 7 de março de 2025

Entrevista ao Jornal do Commercio – lançamento de "Folia no Seringal"


Entrevistador: Evaldo Ferreira

Entrevistado: Zemaria Pinto

 

1 – Por que você usou o Clube da Madrugada como referência para o antes, o durante e o depois da literatura amazonense?

R: Na perspectiva que temos hoje, 70 anos depois da fundação do Clube da Madrugada, é que este é um divisor de águas na literatura feita no Amazonas: há um “antes” e um “depois” do Clube. E durante 30 ou 40 anos, o tempo da história do Clube, houve um “durante”. O Antísthenes Pinto dizia que enquanto ele vivesse o Clube existiria. Jorge Tufic tinha uma posição similar, publicando livros com o selo do Clube até o fim. Então, peguei essa ideia e coloquei no livro.

 

2 – O Amazonas tem uma literatura com características próprias? Se sim, quem seriam seus expoentes?

R: A literatura feita no Amazonas é a literatura feita no Brasil. Fazemos parte dela, ainda que alguns façam “bico” para o nosso “regionalismo”. Márcio Souza deixou-nos como legado, pouco antes de sua morte, um livro pequeno no tamanho mas gigante no conteúdo – Amazônia, Regional e Universal. E ele começa com a frase clássica de Tolstoi, que cito de memória: “se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Um francês, um inglês ou mesmo um paulista jamais diria isso. E Tolstoi era então um periférico. Não se iluda: a padronização é o fim da arte. Sempre que tentaram padronizar o fazer estético deram um passo para trás na produção da arte.

 


3 – O Brasil tem ícones nos vários estilos literários. No Amazonas, quem seriam os ícones: na crônica, no conto, na poesia e no romance?

R: Essa pergunta repete a anterior. Desculpe-me. Você sabe quem foi Coelho Neto? Se não, vou lhe dizer quem é Coelho Neto agora: um escritor esquecido. E já foi considerado um monstro sagrado, que conviveu com monstros “menores” que ele, como Machado de Assis e Olavo Bilac. A história da literatura mundial é cheia de exemplos desse tipo. Shakespeare passou duzentos anos no esquecimento até ser resgatado. Gregório de Matos, o “Boca do inferno”, morreu no final do século 17 e somente no século 20 se teve notícias dele. A vida é dura, meu caro. Inclusive para os ícones e canonizados.

 

4 – O que acha dos(as) escritores(as) ditos(as) ‘marginais’, que buscam um lugar à sombra, ou que até mesmo preferem continuar ‘marginais’?

R: A história dessa tendência “marginal” tem séculos, mas vamos falar do Brasil, segunda metade do século 20, quando surge uma poesia marginal muito forte, mas também um cinema marginal, uma música marginal, um teatro marginal etc. Eu conto isso no ensaio sobre os anões de Márcia Antonelli. Resumo da ópera: marginal é tudo o que o mercado ainda não absorveu. Quer um exemplo de marginal clássico? Lima Barreto. Hoje, ele seria um respeitável acadêmico. De minha parte, eu admiro os que assim se autoproclamam. Sempre fui admirador dos marginais brasileiros, mas tem um amazonense que é um ícone do movimento há 50 anos: Simão Pessoa, na persona de quem abraço a todos os marginais das novas gerações.

 

5 – Quem é, e onde se enquadra o escritor Zemaria Pinto?

R: Coloco-me como um trabalhador. Eu não escrevo por reconhecimento ou cargos. Eu escrevo porque tenho uma compulsão por escrever e isso me ajuda a me manter vivo. E eu me sinto útil. Depois de 28 livros (e mais um no prelo), só penso em organizar minha poesia completa e meu teatro completo. Com que finalidade, ainda não tenho certeza. 

 

6 – Hoje, vivos, quem você destaca na literatura amazonense, entre 50+ e jovens iniciantes?

R: Não destaco ninguém, para destacar a todos. A vida literária não é uma batalha. Particularmente, procuro ser amigo de todos, embora aqui e ali receba umas pedradas. Mas tenho sobrevivido. Agora, é preciso entender que, fora da iconicidade (existe isso?) e do cânone, e deixando de lado o fantasma de Coelho Neto, o futuro só acontecerá quando estivermos todos irremediavelmente mortos. 

 

7 – Por que esse título ‘Folia no seringal’ e para qual tipo de leitor seu livro é indicado?

R: “Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas”, de Rogel Samuel. É o título de um dos ensaios pós-Madrugada. Uma referência a “As folias do látex”, peça de Márcio Souza, e também a Mikahil Bakhtin, teórico da carnavalização. Só que para ler Rogel eu não uso Bakhtin, preferi o Joãosinho Trinta. 

Quanto ao leitor, eu indicaria, em primeiro lugar, aos alunos de Literatura. Depois, às pessoas que gostam de literatura, ainda que não do ponto de vista técnico. Em terceiro lugar, eu indicaria para quem nunca leu um livro: quem sabe ela encontre uma razão de viver...

quinta-feira, 6 de março de 2025

A poesia é necessária?

 

O estupro

Dani Colares

 

Numa rua deserta

De uma hora qualquer

Abriram o meu peito

E estupraram o meu coração

 

Amassaram-no, pisaram-no

Foderam sem piedade

Eu gritava e ninguém ouvia

E enquanto me segurava,

Eu implorava para que o arrancasse de uma vez

 

Cuspiu-me na cara

As lágrimas formaram crateras em meu rosto

E buracos no chão

Eu carregava a dor que asfixia,

que se materializa, aprisiona,

vomita, grita e implora

A dor que provoca a inércia de morte

 

Meu rosto, transfigurado de dor

Se contentava a olhar o nada

Fiquei ali, nua na rua imunda

Sem dignidade, força ou identidade

Vendo meus sentimentos jogados

Por todos os lados no asfalto

 

E assim, de peito aberto

Com saliva, sangue e sêmen

Levantei-me

Metade vivo, metade morto.

E o bandido? Solto.



quarta-feira, 5 de março de 2025

Folia no Seringal – lançamento

Zemaria Pinto


Começo agradecendo a presença de todos: a família – esposa, filhas, netas e irmãs; os parceiros Mauri Mrq e Tenório Telles; o time da Valer – Isaac Maciel, Neiza Teixeira, Bruna Chagas; amigos velhos, ex-alunos, pessoas que estou conhecendo hoje... E destaco ainda a presença do mestre Marcos Frederico Krüger, e do nosso decano Elson Farias, em cujas personas cumprimento a todos os presentes. Num hipotético país parlamentarista das letras, o Marcos seria o primeiro ministro e o Elson, o presidente.

Vigésimo oitavo livro publicado, ainda não me acostumei com o estresse dos lançamentos, e às portas dos setenta anos, tomo o cuidado de trazer estas breves palavras pré-escritas, para não correr o risco de gaguejar ou de simplesmente esquecer – não só o que ia falar, mas o que estou mesmo fazendo aqui?...

E olha que setenta anos não é pra qualquer um, que o digam os meus amigos Antônio Paulo Graça, Anibal Beça, Sérgio Luiz Pereira... e Torquato Neto, Paulo Leminski, Ana Cristina César... e Glauber Rocha, Raul Seixas, Sergio Sampaio, Cazuza... e Jimi Hendrix, Janis Joplin, Amy Winehouse... Mas, de uma coisa fiquem certos: com a chegada da velhice, nós aprendemos que não sabemos nada do que pensávamos que sabíamos quando jovens. Por favor, não me cancelem, isto não é etarismo; é apenas uma autocrítica. Se não, vejam.

Professora Neiza Teixeira, que conduziu o evento.

Entre os 15 e os 17 anos, estudei o Científico, equivalente ao ensino médio de hoje, no Colégio Estadual (ou simplesmente Estadual). Ficava vendo de longe os componentes do Clube da Madrugada que frequentavam o Café do Pina, na praça em frente – a da Polícia. Moleques, eu e Geraldo dos Anjos ficávamos horas a falar mal dos “funcionários públicos da literatura amazonense”. Estúpidos, nós dois, não demoraria muito para tomarmos consciência dessa estupidez. Mas, a juventude, vocês sabem, não acaba aos 17 anos... É um processo. E de repente vem a artrose, a artrite, a arritmia, a glicose, as viroses a pressão alta, a pressão baixa, a falta de... razão... E estamos irremediavelmente velhos.

Folia no seringal é um balanço da minha aventura como ensaísta, reunindo doze exemplares da minha produção no gênero, desde “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, publicado em 1999, como prefácio de Papéis Velhos... roídos pela traça do Símbolo, na histórica Coleção Resgate, coordenada por esse mítico guerreiro das Letras amazônicas, Tenório Telles, até textos escritos nesta década, vinte e tantos anos passados. E tudo tendo como eixo o Clube da Madrugada, fundado em 1954. Com este livro, celebramos os 70 anos do Clube.

Folia no seringal faz um passeio pela trajetória do Clube, que é o caminho traçado pela literatura feita no Amazonas, mostrando que há um antes e um depois do Clube da Madrugada, sendo o durante a própria existência do Clube. Comecemos pelo princípio.

 

Mauri Mrq, músico e compositor.

Antes – o ensaio de abertura, “A paisagem na literatura de viajantes e nativos”, começa com Frei Gaspar de Carvajal, que escreveu, no seu relato, Descobrimento do rio de Orellana, a nossa certidão de nascimento; e faz um breve inventário dos viajantes e nativos que tomaram a paisagem como personagem: Cristóbal de Acuña (Novo descobrimento do grande rio das Amazonas), Henrique João Wilkens, o poeta do genocídio (Muraida), Julio Verne (A jangada, 800 léguas pelo Amazonas), Conan Doyle (O mundo perdido), Raul Pompeia, autor de O Ateneu, escreveu Uma tragédia no Amazonas, com 17 anos; Euclides da Cunha (que estava escrevendo Um paraíso perdido quando foi parado pela bala de um desafeto); Ferreira de Castro (e o superestimado A selva); e os amazonenses Octavio Sarmento (A Uiara) e Violeta Branca (Ritmos de inquieta alegria).

Destaco, no já citado “Maranhão Sobrinho, o místico de Satã”, o poeta que, vivendo em Manaus, na minha Cachoeirinha, e aqui morrendo, foi o autor que logrou maior reconhecimento nacional na era pré-Madrugada. Nenhuma antologia séria do Simbolismo brasileiro o ignora.

O terceiro ensaio, fechando esse grupo, diz ao que veio já no título: “Romancistas e contistas: a literatura de ficção na Academia Amazonense de Letras”. Porque sempre tem um incomodado a reclamar que a Academia tem escritores de menos. E é verdade, mas isso não chega a ser nenhuma catástrofe, porque os escritores da AAL dominam outros saberes, além da literatura de ficção. Vejam. Em cem anos de existência, 1918-2018, contam-se 15 ficcionistas, em um total de 148 acadêmicos; 10%, portanto; o que significa que os outros 90% dominam outros saberes. E escrevem livros sobre eles.

 

Tenório Telles, escritor e crítico literário.

Clube da Madrugada – o ensaio que abre este capítulo não se isenta de polêmica, em três frentes; duas afirmações e uma pergunta. Primeira afirmação: o Clube da Madrugada não se constituiu como um movimento, uma vez que não tinha um programa estético, e sim político. Segunda afirmação: o Clube da Madrugada não foi o Modernismo no Amazonas. E a pergunta: até onde vai, cronologicamente, o Clube da Madrugada? Costuma-se dizer, eu mesmo já o disse várias vezes, que o Clube da Madrugada foi fruto de uma geração excepcional. Na verdade, foram pelo menos três gerações.

Na sequência, quatro ensaios sobre quatro autores emblemáticos do Clube: Luiz Bacellar (Frauta de barro), Astrid Cabral (Alameda), Elson Farias (Memórias literárias) e Ernesto Penafort (uma visão geral de sua obra, mostrando que havia muita poesia além do azul). Esses quatro autores representam as mais de duas dezenas de autores que gravitaram em torno do Clube.

Eu lembro que, há exatos 10 anos, em um 9 de março, Eu e o Mauri, juntamente com o Tenório, o Marcos Frederico, o Alisson, a Nícia e outros amigos, lançávamos na sede da Academia o livro-objeto Lira da Madrugada, homenagem aos 60 anos do Clube – aliás, não fomos eu e o Mauri, mas sim o Mauri e eu. O Mauri cantou, tocou, fotografou, produziu, deu palpite em tudo. Eu só desorganizei as ideias poéticas, para dar um toque de não sei quê. Parece que faz tanto tempo: até o conceito de livro-objeto, nestes tempos virtuais, fica difícil de entender. Vou tentar: eram dois livros e um CD. O CD era um disquinho compacto, um compact disk... É melhor parar por aqui...

 

Depois – reunindo três ensaios de autores que surgiram após o auge do Clube da Madrugada, comenta-se a dramaturgia amazônica de Marcio Souza – A paixão de Ajuricaba, Jurupari, a guerra dos sexos, A maravilhosa história do Sapo Tarô-Bequê, As Folias do Látex, Tem piranha no pirarucu e muitas outras; o romance histórico de Rogel Samuel, O amante das Amazonas; e três títulos da escritora Márcia Antonelli, que tem a figura de um adulto portador de nanismo como protagonista e como isso se desenvolve entre o grotesco, o fantástico e o marginal: são eles O enterro do anão, O anão do açougue e O anão trompetista. De novo, quero deixar bem claro que isso não é capacitismo, até porque os anões de Márcia, além de protagonistas, são personagens com uma carga trágica muito forte. E foi isso o que me encantou neles, além da já conhecida capacidade da autora de engendrar tramas fantásticas. Antonelli representa, no livro, a literatura produzida no Amazonas neste século 21. É, portanto, o que há de mais novo em nossa literatura.   

Zemaria Pinto.

Fechando o capítulo, um ensaio – “Miniconto, microconto, nanoconto, contos são?” – onde se discute uma tendência minimalista do conto contemporâneo, que chega a usar os muros da cidade como veículos para o texto, lembrando a Poesia de Muro, teorizada pelo poeta madrugadense Jorge Tufic.

Por fim, sempre me têm perguntado “por que Folia no seringal”? Talvez estranhando um súbito relaxamento na sisudez com que se trata a literatura sobre a época. Lembro o amigo Márcio Souza, a quem presto todas as reverências que um discípulo deve ao mestre: a peça As folias do látex, encenada pela primeira vez em 1976, me deu a senha. Então, eu li o lírico romance do amigo Rogel Samuel como se fora um desfile carnavalesco, trocando o circunspecto Bakhtin, teórico da carnavalização, por um glamoroso e feliz Joãosinho Trinta. Evoé!   

O livro é de vocês! 

          

 Fotos: diversos autores; obrigado a todos.

terça-feira, 4 de março de 2025

Carnaval: encontro de ritmos

Pedro Lucas Lindoso

 

O Carnaval chega sempre vibrante e pulsante, colorindo as ruas e os corações. É um momento em que a alegria se torna uma linguagem universal e todos, independentemente de origem ou crença, se reúnem para celebrar. Nas esquinas, o frevo se mistura ao samba, o axé contagiando os passantes, e a toada do Boi de Parintins trazendo um sabor especial ao carnaval amazonense.

O frevo, com sua energia contagiante, é a cara do Carnaval pernambucano. Os passos rápidos e acrobáticos, as sombrinhas coloridas que dançam ao vento, e a música que nos arrasta para o meio da folia.

No Rio de Janeiro, as escolas de samba se preparam o ano todo para o desfile, onde a passarela se transforma em um espetáculo de luzes, plumas e muito brilho. O samba é um ritmo que conta histórias, desde as mais tristes até as mais alegres. Cada verso carrega consigo a luta e a resistência de um povo que encontrou no ritmo uma forma de expressão.

E não podemos esquecer do axé, que traz a energia da Bahia para o Carnaval. Com suas letras que falam de amor, axé e alegria, esse ritmo faz todo mundo querer dançar. Os trios elétricos tomam conta das ruas, e a festa é uma verdadeira celebração da cultura afro-brasileira. O axé é um convite à descontração, uma mistura de ritmos que faz do Carnaval baiano uma experiência única. Pergunte a quem já foi lá!

Mas aqui na nossa terra temos o Carnaboi. Essa festa que reúne Carnaval e Boi Bumbá, esse ano de 2025, terá seu ápice dias 7 e 8 de março. Afinal, o Boi Garantido e o Boi Caprichoso não são apenas símbolos de uma festa, mas verdadeiros ícones da nossa cultura. As toadas, cheias de emoção e poesia, servem como uma luva também para se pular o Carnaval. E por que não? As vozes se elevam, e a música ressoa pela galera animada. O ritmo das toadas, tão familiar ao amazonense, no período do Rei Momo acaba envolvendo a todos em um abraço sonoro e muito, mas muito mesmo, animado.

Assim, o Carnaval se torna um mosaico de ritmos e tradições. Cada expressão musical traz consigo a história do nosso Brasil. Tão diverso. Carioca, nordestino ou amazônida, acaba sendo unicamente e essencialmente brasileiro. Um só povo, suas lutas e suas vitórias. Na avenida, no bloco de rua, nos clubes e arenas ou na casa de amigos, a festa se faz presente, e por alguns dias, as diferenças se desfazem em meio à música e à dança.

Ao final, quando os últimos acordes se apagarem e os confetes e serpentinas se assentarem, restará a memória de dias de pura alegria. E, assim, o Carnaval nos ensina que a vida, com suas cores e ritmos, é uma grande festa que merece ser celebrada. Portanto, na cadência do frevo, no balanço do samba, na energia do axé e na leveza da toada de Boi, encontramos a verdadeira essência do ser brasileiro: um povo que dança, ri e celebra a vida em todas as suas nuances.

  

domingo, 2 de março de 2025

Manaus, amor e memória DCCXII


Carnaval de 1905.