Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Linguagens-culturas, as heteropráxis e a coisa sagrada – 1/2

João Bosco Botelho



     “Por nove dias, as setas do deus dizimaram o exército... Filho de Atreu, quero crer que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado, no caso de à morte escaparmos, pois os Aqui­vos, além das batalhas, consome‑os a peste. Sus! consultemos, sem mora, qualquer sacerdote ou profeta, ou quem de sonhos entenda – que os sonhos de Zeus se originam – para dizer‑nos a causa de estar Febo Apolo indignado: se por não termos cumprido algum voto ou, talvez, heca­tombes, ou se lhe apraz, porventura, de nós receber o perfume de pingues cabras e ovelhas, a fim de livrar‑nos da peste.” Homero (Ilíada, I, 53).

     A análise das heteropráxis é indispensável para penetrar na íntima associação do conflito de competência entre a medicina e a religião, manifestada nas malhas sociais há milhares de anos. Essa possibilidade permite, a cada momento, entender as linguagens-culturas construindo–desconstruindo-reconstruindo a coisa sagrada, fazendo parte da religião popular desvinculada da estrutura hierárquica das academias e transformada na religião do corpo. Desse modo, torna-se possível entender como é possível que os curadores, adivinhos, magnetizadores, feiticeiros e benzedores nunca cessaram de receber os consulentes.

     Parece lógico pressupor que esse repensar deveria suscitar maior interesse aos médicos-oficiais, os curadores oriundos das academias.

     O processo reprodutor desse impressionante fenômeno social por meio das linguagens-culturas, a crença na coisa sagrada como instrumento de cura, não pode ser somente social. Se assim fosse, não seriam possíveis as reproduções idênticas em sociedades distantes milhares de quilômetros entre si e sem nenhum contato interétnico. O extraordinário elo comum é a crença, pessoal e coletiva, de a coisa sagrada dispor de poder intrínseco de curar a doença, o mal, a dor. Desse modo, antes de tudo, a coisa sagrada é aquilo que cura.       

     A claríssima presença da coisa sagrada como o mais importante elo norteador nas práticas da medicina-divina e da medicina-empírica junto à religião do corpo transcendeu no tempo e chegou a nós vivifi­cada tão intensamente que fica impossível saber onde terminam os limites. Esse fato se passa tão naturalmente e é compreendido com tamanha certeza que não existem muitos questionamentos da sua his­toricidade.

     Em consequência da disputa gerada com a medicina oficial, oriunda das universidades, raramente essa questão vem à tona despida das paixões parcimoniosas. A análise acaba contribuindo para que os pressupostos teóri­cos da medicina-oficial sejam conduzidos por fora dessa complexa relação. A importância social é diluída na polarização da luta de poderes que pode ser simbolizada na mesma essência da de Apolo e Dionísio, onde a medicina‑ciência se confronta com a religião‑medicina. Tudo é passado como se as linguagens-culturas e os componentes sociais, culturais, políticos e econômicos que acompanham que constroem e desconstroem as sociedades em nada interferissem nessa com­plexa relação.

     Se recuarmos no passado mais distante, as mensagens deixadas nas paredes das cavernas pelos nossos ancestrais deixam entender, quando associadas aos outros dados da paleoantropologia, que as práticas de curas e as expressões de religiosidade estão incrivel­mente atadas e dependentes desde ha muito tempo.

(Concui na próxima quinta-feira)