Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Linguagens-culturas, as heteropráxis e a coisa sagrada – 2/2


João Bosco Botelho


A questão que relaciona a coisa sagrada à religião foi analisada por Croce que negou a independência de uma “categoria religião” e a considerava como subproduto da “categoria moral”, enquanto Otto se esforçou para demonstrar a realidade da experiência do “sagrado” como fundamental para qualquer religião. Por outro lado, Gramsci desconsiderou qualquer conceito de religião sem a correspondente relação cultural entre o indivíduo e o objeto sagrado. Os estudos gramscianos colocaram a religião como integrando uma concepção da vida cotidiana contida no conjunto ideológico ligado à ética e por isso contribuindo, em certas circunstâncias, para que o homem aceitasse as desigualdades sociais. Durante as ditaduras comunistas no Leste europeu, que encantou tanta gente, os intelectuais marxistas e stalinistas construíram linguagens-culturas forjadas no absoluto desprezo pelas ideias e crenças religiosas, pré-entendidas como antítese da ciência e inimigas do povo. Sem êxito, esses ideólogos, representantes maiores do cerne da ciência como indispensável à “libertação dos oprimidos”, tentaram transferir para o Partido Comunista a coisa sagrada das igrejas de muitas crenças e ideias religiosas.

Outros intelectuais, com forte influência cartesiana, tentaram interpretar as ideias e crenças religiosas a partir das palavras latinas “relegere” e “religare”, atadas às complexas regras e interdições que norteiam o entendimento das coisas sagradas, as mesmas que as heteropráxis mostraram não serem exclusivas e diretamente relacionadas à adoração de divindades e celebrações religiosas.

As polaridades da inflexibilidade comunista e cartesiana podem ser encontradas na concepção de Portter: “A religião foi a mãe das ciências e das artes”. Entre essas intolerâncias, as análises das heteropráxis induzem na ampliação desses horizontes restritivos, na direção de Jung, como outra opção analítica, que fundamentou a confissão religiosa na transformação provocada pela experiência do “numinoso”, sentida e seguida no conjunto de atitudes fundamentadas na fé e fidelidade à coisa sagrada.

Não é possível esquecer que diferentes formas de expressões religiosas estão presentes nos quatro cantos do mundo, no passado e presente, com as linguagens-culturas construindo-reconstruindo a coisa sagrada entre os consulentes. Do mesmo modo, esses mesmos povos também entendem a causa das doenças e os processos de curas como partes da mesma ordem social, onde o cerne da “coisa sagrada” é transformado continuamente, sob múltiplas roupagens metamórficas, a partir de sincretismos com os antigos mitos de origem, que relatam as primitivas relações do homem com os outros animais e com a terra.

Os livros de medicina e religião não pararam de ser escritos, de geração a geração, estritamente atados aos sistemas de valores de referência aos quais se ligam, sejam as universidades ou as igrejas. A maioria foi elaborada apoiada numa história linear quantitativa longe dos simbolismos das heteropráxis, onde as estruturas mentais e o cotidiano foram seguidamente pouco valorizados. Felizmente, alguma literatura especializada atual está se afastando dessa postura, entre a contemplação e a crítica destrutiva, e se enriqueceu ao associar a coisa sagrada às heteropráxis.

Essa nova abordagem a partir das heteropráxis possibilitou compreender outros significantes simbólicos da coisa sagrada como instrumento de cura, desde o passado longínquo até a atualidade. Por essa razão, tornou-se visível o quanto são semelhantes entre povos nos cinco continentes.

Assim, não parece ser adequado afirmar que essa impressionante manifestação coletiva seja somente de caráter social. O historiador Mircea Eliade, com propriedade incomparável, atribuiu a dificuldade quase intransponível de se buscar as explicações no fato de que as crenças e as ideias não são fossilizáveis. Quando os arqueólogos descobrem um túmulo com significação histórica, todos os detalhes do esqueleto, do esquife e dos acompanhamentos são importantes para compreender o grupo social do morto, porém os pensamentos religiosos do morto continuarão em vagas suposições. Essas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida em que se recua no tempo.

Tentando estabelecer o início desse processo, a relação dos nossos ancestrais distantes com a coisa sagrada, por meio das datações paleopatológicas e arqueológicas, o antropólogo Leroi-Gourhan assumiu posição crítica em relação à religiosidade na pré-história anterior há 30.000 anos. Dessa época, existem muitas sepulturas rituais, onde os mortos foram enterrados com artefatos de caça e pesca, generosos pedaços de carne e agasalhos adicionais, que sugerem fortemente a crença no renascimento.

O imaginável renascimento após a morte, parte importante da coisa sagrada, tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar cada vez mais o tempo de vida e oferecer a sensação calmante da possibilidade de desfrutar do conforto noutro mundo. Essa fantástica busca pode ter começado com a idéia religiosa arcaica, junto à coisa sagrada, de que seria possível renascer a partir dos ossos, provavelmente ligada à prática do sepultamento rituali. Nesse sentido, são claras as passagens do Antigo Testamento explicativas do aparecimento da mulher a partir da costela (Gn 2, 21 24) do primeiro homem e do renascimento a partir dos ossos descarnados (Ez 37, 1 8).

Essas citações bíblicas fazem pensar que o culto aos ossos e, a partir dele, o renascimento tiveram o seu início nos primórdios da sagração dos objetos pelo homem, depositárias da certeza de que esses ritos se confundem com a origem do próprio homem. Assim, não deve parecer estranha a crença no poder curador da coisa sagrada.

As linguagens-culturas que constroem a coisa sagrada junto ao corpo da medicina-divina e da medicina-empírica ajustam a sedução na eficiência simbólica dos ritos suplicantes como instrumentos para unir, em atitude mágica de credulidade o consulente e a coisa sagrada.