Amigos do Fingidor

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Senhora, uma leitura 5/6

Zemaria Pinto


Estrutura do romance

Em Senhora, José de Alencar exercita todo seu gênio criativo, apresentando estruturas formal e narrativa extremamente elaboradas. O romance divide-se em quatro partes, com os seguintes títulos: O Preço, Quitação, Posse e Resgate.

O preço – Em linguagem  jurídica, o preço é elemento natural  do contrato de compra e venda, é o valor do objeto contratado. Esta primeira parte, composta por treze capítulos, não é o “início” da história de Aurélia, uma vez que a narrativa começa após alguns acontecimentos que só se mostram ao leitor na segunda parte. Assim, a Aurélia que se apresenta é uma moça rica, autoritária, irônica, que desfila sua beleza e riqueza pelos salões da Corte, cotando

seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado  matrimonial.
(O Preço, I)

E é também em linguagem financeira que estipula que o tio seja o intermediário do contrato de casamento, não sem antes regatear o preço do “objeto” comprado:

 Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível;   mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo não faço questão do preço.
(O Preço, IV)

Esta primeira parte é encerrada na noite de núpcias, na qual Aurélia  demonstra toda a verdade do casamento “arranjado”. Note, leitor, que o capítulo termina com a promessa de que Aurélia revelará  ao marido os motivos que a levaram a comprá-lo. Entretanto, a continuação dessa “conversa” só será mostrada ao leitor no último capítulo da segunda parte. Entre esses  dois capítulos, que tratam da mesma noite de núpcias, passa-se toda a segunda parte, da qual trataremos abaixo.

Quitação – a quitação é um documento, um recibo, um ato através do qual alguém fica livre de uma obrigação. Composta por nove capítulos, há um “retorno” ao passado, sendo narrada a história de Aurélia, anterior à primeira parte. Vemos, então, uma pobre e romântica Aurélia, e a situação miserável em que sua família vive. Nesta parte, é narrado o romance de seus pais, a morte de sua família, o namoro com Seixas e a violenta decepção sofrida, ao ser trocada por um dote de 30 contos de réis.

Calma, leitor, não há só tristezas, não. É nesta parte que Aurélia torna-se a rica herdeira  de seu avô, que, pouco antes de morrer, reconhece a neta.

No capítulo IX, há a continuação da conversa da noite de núpcias. Observe que o narrador utiliza-se de um recurso cinematográfico, o corte/montagem de cenas:

Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.

Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando Seixas obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se, e fitava na moça um olhar estupefato.
(Quitação, IX)

Ah, leitor, o cinema ainda não fora inventado.

Aurélia revela que sempre considerou Seixas um ser especial, e, resignada, aceitaria até ser trocada por outra, mas jamais conceberia a degradação de vender seu corpo, como ele estava fazendo:

Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime.
(Quitação, IX)

Ao finalizar este capítulo, encerrando a segunda parte, vemos a “quitação” do título: Aurélia diz ser o tempo de concluir o mercado, passa um cheque no valor de 80 contos de réis, e dispara:

Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome de convenção.
(Quitação, IX)

Posse – a posse é o exercício dos poderes do domínio, da propriedade sobre coisas. Composta por dez capítulos, aqui é narrada a convivência dos cônjuges:  a encenação de casal feliz para a sociedade, e o duelo que travam na intimidade. Nesta terceira divisão, Seixas começa a “despertar” sua dignidade. Assim, ao deparar-se com o rico aposento ornamentado pela noiva 

Recuou com um gesto de repulsão. Esses primores de arte que pouco antes lhe acariciavam a imaginação, agora inspiravam-lhe nojo. Apartou-se do toucador, e chegou à janela.
(Posse, III)

A partir de um gesto simples, comprando uma escova e um pente de um mascate, no intuito de não se utilizar de nada do enxoval feito pela mulher, Seixas sofre a primeira das várias transformações que culminarão com sua revelação, ao final do romance, como um perfeito herói romântico. Assim, temos um Seixas diligente no trabalho, sem apego aos luxos. Às reclamações de Aurélia quanto ao seu comportamento (“avarento”,  conforme  os escravos), responde:

Vendi-lhe um marido; tem-no à sua disposição, como dona e senhora que é. O que porém não lhe vendi foi minha alma, meu caráter, a minha individualidade; porque essa não é dado ao homem alheá-la de si, e a senhora sabia perfeitamente  que não podia jamais adquiri-la  a preço d'ouro.
(Posse, V)

No capítulo VIII, há outro “retorno” à noite de núpcias, mostrando o que aconteceu com Aurélia, quando Seixas retira-se do aposento:

Naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas horas antes; vendo-o tranquilo e disposto a aceitar como natural a terrível  situação;  pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se a  uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera um verdadeiro ímpeto de vingança.
(Posse, VIII)

É recorrente, assim, por toda terceira parte, o exercício de poder de Aurélia sobre Seixas: ela é a dona, a senhora; ele, o objeto, o escravo.

Resgate – Resgatar é pagar, é liberar-se, libertar-se de uma dívida. São nove capítulos, iniciando-se com Aurélia exercendo seu domínio:

No meio das adorações que a perseguiam, retirou-se orgulhosamente reclinada ao peito desse homem, tão invejado, que ela arrastava após si como um troféu.
(Resgate, I)

Seixas, entretanto, nesta altura da “reeducação”, já demonstra  para si o amor à senhora e, por vezes, sente desejo:

Seixas desviou os olhos, como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação, e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem.
(Resgate, I)

Aurélia percebe que Seixas a ama, e observa as mudanças do marido:

Durante estas pausas, Aurélia observava o marido, e assistia comovida à transformação que se fora operando naquele caráter, outrora frágil, mundano e volúbil, a quem uma salutar influência restituía gradualmente à sua natureza generosa.
(Resgate, VI)

Assim, ao conseguir o dinheiro para comprar sua liberdade, Seixas está pronto para desempenhar, finalmente, seu papel de herói. O pagamento da dívida ocorre no último capítulo desta parte, que encerra o romance. Ambos agem friamente: 

– Agora nossa conta; continuou Seixas desdobrando uma folha de papel. A senhora pagou-me cem contos de réis: oitenta em um cheque do Banco do Brasil que lhe restituo intato; e vinte em dinheiro, recebido há 330 dias. Ao juro de 6% essa quantia lhe rendeu 1:084$710. Tenho pois  que entregar-lhe 21:084$710, além do cheque. Não é isto?

Aurélia examinou a conta corrente; tomou uma pena e fez com facilidade o cálculo dos juros.

- Está exato.
(Resgate, IX)

Entretanto, ao romperem solenemente o vínculo que os unia, ocorre a conciliação dos amantes e, na mesma câmara nupcial em que, na noite de núpcias, havia nascido o abismo entre os dois, dá-se a consumação do casamento, a vitória do amor, que tem origem divina, sobre a mesquinhez, falha tipicamente humana.