Pedro Lucas Lindoso
“São só ilações”, explicou o presidente a todos os
brasileiros, sobre as denúncias a que ora responde no Congresso Nacional.
Todas as vezes que me deparo com uma palavra considerada
“difícil” ou desconhecida do falante médio do português, me vem à mente o clássico
conto de Arthur Azevedo – Plebiscito.
Quando é dita por autoridade constituída, explicando algo aos
brasileiros, me lembro do escândalo da parabólica. Rubens Ricúpero, no ano de
1984, então ministro da Fazenda do Brasil, enquanto se preparava para entrar no
ar ao vivo no Jornal Nacional, afirmou: "Eu não tenho escrúpulos; o que é
bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde." Essa transmissão foi
feita por meio do canal privativo de satélite da Embratel, acessível, naquela
época, somente por antena parabólica.
Eu sempre faço o teste dos porteiros. Naquele dia perguntei
ao porteiro de meu prédio:
– Pereira, você tem escrúpulos? No que ele respondeu:
– Nunca peguei esse troço, não doutor.
O que me levou à ilação de que no máximo dez por cento da
população brasileira sabia o que era escrúpulo. Mesmo assim o ministro caiu.
Há alguns anos, no mesmo Jornal Nacional, o Ministro Marco
Aurélio usou a locução latina “a priori”. William Bonner poderia ter explicado
“a posteriori” a expressão utilizada pelo magistrado. Nem todos os brasileiros
são bacharéis em Direito. Graças a Deus.
“São só ilações” é uma expressão usada quando queremos
afirmar que um dado não é de todo preciso, que é baseado apenas em vagas
deduções. Ao ouvir isso do presidente, resolvi fazer novamente o teste do
porteiro.
O porteiro de onde moro atualmente não se chama Pereira.
Chama-se Wallysson, e ao ser perguntado se sabia o que era ilação, me
respondeu:
– Serve mesmo para que, doutor?
Na época dos escrúpulos achei que só dez por cento dos brasileiros
entenderam o Ministro. Como a Educação piorou muito, a ilação que faço é que
provavelmente só um por cento da população sabe o significado dessa palavra.
Mas acho que Wallysson tem razão. Ilação. Serve mesmo para
quê?
Em anexo, para os que não conhecem, o magistral conto, já
centenário, mas atualíssimo, de Arthur Azevedo. Vale a pena ler ou reler.
Plebiscito – conto de Artur Azevedo
A cena passa-se em 1890. A família está toda reunida na sala
de jantar. O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de
balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, está muito
entretida a limpar a gaiola de um canário-belga. Os pequenos são dois, um
menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à
mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio. De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir
que dorme. O pequeno insiste:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma
depois do jantar, que lhe faz mal. O Senhor Rodrigues não tem remédio senão
abrir os olhos.
— Que é? Que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes
ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que
continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é
plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser
nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se
sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!…
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que
não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a
mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou,
falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre
que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um
doce se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na
presença destas crianças!
— Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples
dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário,
meu filho”.
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não
dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá
para o diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala
de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto
havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor
de laranja e um dicionário…
A menina toma a palavra:
— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem
que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse
francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o
causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e
façam as pazes.
— Sim! Sim! Façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e
suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por
causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do
quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se
por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio;
— é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!…
A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua, num
tom profundamente dogmático:
— Plebiscito…
E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém
que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano,
estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil!
É mais um estrangeirismo!...