Amigos do Fingidor

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Luiz Bacellar



Inácio Oliveira

Hoje lembrei-me de Luiz Bacellar. Tive a oportunidade de conviver com ele e a desperdicei. Quando cheguei a Manaus, vindo do interior: inocente, puro e besta; conheci o Zemaria Pinto, autor de Fragmentos de silêncio, livro que eu lia nos porões da biblioteca pública de Óbidos. Ele me convidou para seu aniversário de 52 anos, disse-me que seria num bar chamado El Perikiton que havia fechado, mas que abria excepcionalmente para receber a Panelinha. A Panelinha, ele me explicou, tratava-se de uma sociedade lítero-gastronômica que se reunia ordinariamente aos sábados. No dia combinado eu fui o primeiro a chegar, pontualmente ao meio dia, esperei mais de uma hora até que os primeiros membros da “panelinha” começaram a aparecer por volta de uma da tarde. Primeiro apareceu o jornalista e escritor Marco Adolfs, o compositor Nato Neto, depois a atriz Koia Refkalefsky, mais tarde os professores Alisson Leão e Marcos Frederico, os poetas Cláudio Fonseca e Dori Carvalho, e ainda Tenório Telles, por último apareceu o aniversariante e um senhor franzino de uns setenta anos, discreto e elegante. Que me foi apresentado como Luiz Bacellar, ele me ignorou solenemente, é claro.
Lembro que ao todo havia doze pessoas à mesa, lembro-me disso porque alguém fez um gracejo dizendo que éramos os doze apóstolos e que o Bacellar devia sentar-se à cabeceira como se fosse o Cristo, mas ele se recusou, então calhou dele sentar-se ao meu lado. Eu conhecia sua fama de ranzinza e não tive coragem de lhe dirigir a palavra. Ele cruzou as pernas, sacou um cigarro e fumou no meio de nós, como alguém que estivesse nos anos 50. Depois comeu sardinha frita e limpou a boca com a toalha da mesa, gesto que não chocou ninguém, mas que contrastava com sua postura de lorde.
Todos ali tinham tanto a oferecer e eram tão generosos, eu tinha apenas os meus 19 anos e fiquei calado a maior parte do tempo com medo de dizer qualquer tolice. Eu havia lido, ocasionalmente, um ou outro poema do Bacellar e é evidente que tinha ouvido falar dele, mas não tinha a menor noção da grandeza de sua, breve e intensa, obra que só vim a conhecer de fato muito tempo mais tarde.
Hoje eu penso que a ideia que se fazia do Bacellar, como de alguém de trato difícil, talvez fosse exagerada. Lembro que naquela tarde memorável, enquanto o Nato Neto cantava e tocava no violão canções que ele havia composto de vários poemas, ele se dirigiu a mim e pediu que eu pedisse para o Nato tocar um poema seu que ele havia musicado. O Nato tocou uma música linda que falava sobre juritis. Depois ele me perguntou gostastes? Gostei, é muito bonito. Essas foram as únicas palavras que trocamos naquela tarde.
Depois desse dia eu só fui aparecer na panelinha anos depois, quando o Bacellar já havia morrido. E saber que houve tantos sábados que eu podia ter estado lá, teria gostado de vê-lo comer peixe e ouvir quando ele falasse. Eu o vi umas duas vezes mais: uma vez na Quarta literária e outra vez na Cafeteria do Pina. Soube que ele estava doente e que vivia seus últimos dias no Instituto Dr. Thomas, ensaiei diversas vezes ir visitá-lo, mas eu não tinha nada para lhe dizer e temia lhe aborrecer. Certo dia vi a notícia da sua morte no jornal, pensei em ir no seu enterro, mas não sei se esse gesto teria algum sentido.
Depois fui lendo sua obra e fui me dando conta da dimensão quase milagrosa da sua poesia, que poeta incrível era o Sr. Bacellar! A minha vida e o próprio mundo tornaram-se mais suportáveis. E pensar que este poeta andava por um rua incerta da mesma cidade que eu. Hoje se eu o encontrasse eu apenas diria muito obrigado!