Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de julho de 2019

A poesia é necessária?



Noturno
Antísthenes Pinto (1929-2000)


Há um luar azul percorrendo o meu corpo.
Todas as aves brancas construíram ninhos no meu coração
e seus cânticos são de uma tristeza inenarrável.

Vou absorvendo o orvalho noturno
com a mesma quietude da árvore curvada no barranco.
Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar do rio comumente tranquilo.

A outra metade de mim vive no espelho
que deforma a minha paz. Tantas ruas
cruzam-se em meus pés, tumultuosas, salpicadas de pranto
e seios de todas as cores e vícios e viços.

As auroras e os crepúsculos das cidades,
o ar plúmbeo, cinzento das cidades
arrancaram todo o humor que eu tinha pelos homens.
(No entanto o sangue corre nas minhas veias frias).

Ah se a memória se limitasse ao presente,
todavia, o passado me inunda a alma
e cicatrizes das mais torpes
se espalham nos meus ossos, nos meus nervos,
na minha sombra espectral, estática sombra roxa.

Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar do rio, comumente tranquilo.