Amigos do Fingidor

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Menino não tinha vontades



Pedro Lucas Lindoso


Em outubro, comemoramos o dia das crianças. E o aniversário de Manaus, onde passei minha infância.  Muitos como eu estudaram e até sabem de cor o poema “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu. Decoraram pelo menos a famosa primeira estrofe: “Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”
Sempre me chamou a atenção a estrofe que dizia: “Livre filho das montanhas, / Eu ia bem satisfeito / Da camisa aberto o peito / Pés descalços, braços nus. /Correndo pelas campinas”.
Só que em Manaus não havia montanhas e nem campinas. Mudamos para Brasília. Lá no Planalto Central também não há montanhas. Deve ser essa a razão de me encantar tanto com a paisagem do Rio de Janeiro. O Corcovado, o Pão de Açúcar, a Pedra da Gávea, os Dois Irmãos. Lindas montanhas.
Se fosse parafrasear Casimiro de Abreu a estrofe ficaria assim:
Livre filho de ruas e quintais / Eu ia bem satisfeito / Da camisa aberto o peito / Pés descalços, braços nus / correndo nas chuvas de Manaus.
E se ficasse gripado e com tosse? Aí tem uma lembrança não muito poética. Minha mãe preparava uma mistura de copaíba com andiroba. A base era um remédio vermelho chamado de colubiazol. A mistura era feita numa xícara. O dedo da minha mãezinha era encoberto por gaze e algodão. Após besuntar o dedo com a terrível e poderosa mistura, dava a ordem cruel e definitiva.
– Abre a boca!
Então era feita a temida embrocação. Para quem não sabe o que é embrocação, explico: aplicação de líquido oleoso com fins terapêuticos, em parte doentes; no caso, nas nossas gargantas inflamadas.
Eu não tinha vontade de fazer embrocação. Eu tinha vontade de assistir na TV o desenho dos Flintstones quando passava Tom e Jerry. Tinha que me conformar. Não tinha escolha.
Hoje a meninada toma antibiótico. E podem ficar à vontade em assistir na TV ou NETFLIX, a qualquer hora, o seu desenho animado favorito. É só ter vontade.
Sou de um tempo em que os adultos diziam e era verdade:
– Menino não tem vontades.