A Poesia
Ferreira Gullar (1930-2016)
Onde está
a poesia? indaga-se
por toda parte. E a
poesia
vai à esquina
comprar jornal.
Cientistas
esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a
máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma
portaria: é proibido
misturar o poema com
Ipanema.
O poeta depõe no
inquérito:
meu poema é puro,
flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem
futuro.
Não sabe a fel nem
sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito a
traça
pois tem a proteção do
inseticida.
Creia,
o meu poema está
infenso à vida.
Claro, a vida é
suja, a vida é dura.
E sobretudo
insegura:
“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3.ª Vara
de Família,
afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor
acaba, seu juiz’.”
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou
Era pouco? era
muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que transpassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era
louco,
um mergulho
no fundo de tua seda
aberta em flor embaixo
onde eu morria
Branca e verde
branca e verde
branca branca branca
branca
E agora
recostada no divã da
sala
depois de tudo
a poesia ri de mim
Ih, é preciso
arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o
jantar
É preciso ir buscar
o menino no colégio
lavar a roupa limpar
a vidraça
O amor
(era muito? era
pouco?
era calmo? era
louco?) passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
a tua grácia!
E pensar que nunca
mais a terei
real e efêmera (na
penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai
se juntar
ao esqueleto das
noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um
cigarro
talvez se deflagre
com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E
só).
Poesia – deter a
vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo
em nossa voz. Po-
esia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada
sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão
E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? o pás-
?
Como chamá-lo?
Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há
pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos
zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução
(Santiago, 12/7/73)