Zemaria Pinto
Os três tomos escurecidos, com cerca de 40
centímetros de altura e 20 de largura, dominavam o centro da pequena estante,
tomada por outros livros – amarelados, raquíticos, esfarrapados. Herdados de
seu pai, aqueles três volumes, editados em Lisboa, mas impressos em Paris, eram
sagrados para Armando: a biografia de Armand Jean du Plessis, primeiro-ministro
de Luís XIII, duque de Richelieu e Fronsac, cardeal de Richelieu, a mente
diabólica por trás do conceito de absolutismo, em que um ser humano, frágil e falível
– e, invariavelmente, canalha –, detém poderes que só aos deuses é permitido
acumular. Mas era exatamente essa ousadia, capaz de seduzir o rei da nação mais
poderosa da época, que atraía pessoas simplórias como Armando e, antes, seu
pai, o rábula Diogo Silva. O nome do menino, claro, não era mera coincidência.
Desde adolescente, Armando, um orador vibrante, mas de um
palavreado vazio e desconexo, que não articulava um pensamento completo, tinha
comportamentos esquisitos, como andar imitando o que seria conhecido, muito
tempo depois, como o “passo do ganso”: a perna levantada, jogada para frente, e
o braço correspondente, em movimento assimétrico, jogado para trás. Não demorou
muito para que os moleques começassem a molestá-lo, atirando pedras e taxando-o
de doido. Minto, o processo foi lento, pois Armando alternava lucidez e
estranheza. Os anos foram passando e Armando ficou conhecido como o “doidinho”
da cidade. Um deles, na verdade, pois outros havia, inclusive o famoso Andaluz.
A cidade, Vila Bela da Imperatriz, que já fora Vila Nova da
Rainha, era pouco menos que um ponto nos mapas da nova Província, com algumas centenas
de almas, dispersas em duas ou três ruas e dezenas de sítios, espalhados não só
pela ilha, mas também na extensão rural que ia do Paraná do Ramos até o
Nhamundá.
Armando começou a inspirar cuidados de doente mental perigoso
quando recebeu uma encomenda da Corte: um penico esmaltado, ricamente trabalhado
por um fino artesão francês. A curiosidade geral perguntava o que ele iria
fazer com aquela obra. A resposta foi imediata: Armando passou a exibir o belo
penico, para cima e para baixo. Com seu andar idiota, o braço esquerdo agora ficava
em estado de permanente tensão, carregando, em riste, o rico vaso. Ele
explicava no seu estranho linguajar: “próximo do coração, o penico guarda com
meu peito uma relação metonímica.” Perguntado sobre o que o penico representava,
Armando dizia, com os olhos marejados, que aquela joia pertencera ao Cardeal de
Richelieu. Nele, a “inteligência suprema da humanidade” escarrou, urinou e, com
um pouco de sorte, até “defecou fezes luzentes, inefáveis e indizíveis” no
pequeno receptáculo cardinalício e ducal.
– Aberrações em forma humana, vocês deveriam ajoelhar-se
diante deste pequeno milagre da “art de France”!
Foi quando Armando desandou a falar francês. De início, algumas
palavras ou frases curtas. Em pouco tempo, já estava discursando em francês, o
que não fazia diferença nenhuma já que ninguém o entendia em português. Armando
atribuía sua “évolution” a “le pot de chambre miraculeux de Richelieu”.
Conhecido na Vila e arredores como “Le Petit Richê” ou
simplesmente “Richê” – num lugar que ganharia fama futura por apelidar até os
apelidos –, Armando foi eleito vereador e só não chegou à presidência da Câmara,
o que equivalia a ser o alcaide do lugar, porque um juiz de maus bofes, desses
que vivem nas sombras, vindo de um paraná das redondezas, declarou-o relativamente
incapaz. “Moi, relativement incapable?”, perguntava-se Richê, denunciando ao
Baixo Amazonas e ao mundo a injustiça de que fora vítima. “Le peuple a perdu!”
Em não raros momentos, Armando declarava seu sonho de fundar
uma Academia, “avoir l'académie française comme modèle”. Mas, naquele fim de
mundo, como encontrar intelectuais a sua altura? “Ici, la médiocrité règne. Je
suis seul.”
Passaram-se os anos, Armando foi definhando a olhos vistos.
Abandonou o passo de ganso e passou a usar o penico como chapéu. Numa tarde de
setembro, ele assistia ao pôr-do-sol – em tons de laranja e azul, dignos de
Renoir – do alto de um barranco. Foi a última vez que o viram. Ninguém explica
o que aconteceu, embora não faltem teorias: foi atraído e levado pela
Mãe-d’água, foi abduzido por selenitas, metamorfoseou-se em cágado... A
verdade, entretanto, é uma só: Armando Silva, conhecido como Le Petit Richê,
sumiu, desapareceu, escafedeu-se, deixando como única prova de sua passagem por
este mundo o penico de Richelieu, àquelas alturas já bastante deteriorado – pelo
que ficou ao léu, e, sem que ninguém atinasse ao seu valor histórico-sentimental,
foi anulado da memória da Vila.
Mas, Armando não foi de todo esquecido: há pesquisadores – na
UFAM, na UEA e até na UFOPA – que defendem a tese de que as cores de dois
famosos bois-bumbás da região o homenageiam, usando as cores de França. Como
diria Richê, “le bleu et le rouge, unis par le blanc.”
PS1: esta história me foi contada por uma aluna, em
janeiro de 1989, quando estive, por três semanas, em Parintins, dando aulas de
Teoria Literária. Pelo lado materno, essa aluna descendia dos Tupinambás; pelo
lado paterno, da família do patriarca Diogo Silva. Mas, o assunto em casa era
tabu, pois acreditavam que a loucura é hereditária. Por isso não revelo seu
nome – mas, guardo em mim a lembrança de uma lua cheia refletida em seus
infinitos olhos negros.
PS2: quase vinte anos depois – não por acaso, em uma
noite de lua cheia –, numa memorável sessão do Chá do Armando, o velho Sumaúma,
que era parintinense e exímio contador de causos, narrou, com riqueza de
detalhes, a mesmíssima história, ouvida por vários amigos presentes, alguns dos
quais ainda vivos.
Aos dois – à moça Tupinambá e ao Armando Sumaúma de Menezes –
ofereço, dedico e consagro.