Amigos do Fingidor

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Beckett, Krapp, a solidão e o nada
Zemaria Pinto
Samuel Beckett (1906-1989).
Foto: autor desconhecido (por mim).

Se alguém tinha alguma dúvida de que o universo se estrutura de forma binária, o computador, esse eletrodoméstico indispensável (eu não tenho forno de microondas ou aspirador de pó, por exemplo – nem sinto falta), o computador, eu dizia, construído a partir do conceito de bits, um código representado pelos números 0 (zero) e 1 (um), vem, definitivamente, escancarar aos incréus o caráter binário do mundo que nos cerca – por todos os lados. Deus e o diabo, esquerda e direita, progressistas e conservadores, tradicionalistas e iconoclastas, operários e pequeno-burgueses. O bem e o mal. O cru e o cozido. A ética e a bandidagem. Vocês podem escolher quaisquer das infinitas combinações imagináveis. Não há meio termo.

Século XX, segunda metade. Ainda sob o trauma da agressão atômica, o mundo civilizado consome-se nas reflexões existencialistas e nas inflexões socialistas. A guerra fria institui uma nova divisão política e a velha lengalenga volta à tona: artistas devem ou não engajar sua arte à revolução? Muita gente, é claro, acha que não. Do novo centro do poder, a águia americana desova uma nova ordem no teatro. Tragédias familiares neorrealistas dão a tônica. Na Europa, Sartre, Camus e Brecht vão na contracorrente. O irlandês Samuel Beckett é um dos esteios de uma nova forma de pensar o teatro.

Junto a nomes como Ionesco, Adamov, Artaud e Arrabal, Beckett arquiteta o que, à revelia deles, passou a ser conhecido como “teatro do absurdo”. À revelia, sim, porque eles estavam certos de que o que representavam era tão-somente a realidade. Neste sentido, eram conservadores, aristotélicos. Mas qual realidade era essa? Não a das tragédias familiares. Não a das reflexões filosóficas. Não a dos grandes dramas coletivos. A realidade do homem só, destroçado, abandonado pela família, pelo Estado e por Deus.

O homem pós-atômico precisava reinventar o seu futuro. E ao teatro não restava outra alternativa senão negar toda a cultura clássica, base de conservadores e progressistas. Não às convenções de tempo e espaço. Não ao vínculo indissociável de causa e efeito. Não à palavra como espetáculo. Não ao desenvolvimento psicológico dos personagens. E, acima de tudo, não a qualquer coisa que lembrasse o realismo. Assim, voltando à ordem natural das coisas, isto é, ao caráter binário das relações humanas, o teatro pós-atômico cinde-se em duas grandes correntes: a da tradição aristotélica e a da experimentação.

Beckett escreveu Esperando Godot. Nada mais precisava ser dito, até porque muita bobagem já se disse sobre essa obra-prima da literatura universal – sim, porque teatro é literatura, enquanto houver o vínculo (indissociável?) com a palavra. Mas Beckett escreveu também, entre tantos, A última gravação de Krapp, peça em um ato, que era o objeto inicial deste artigo, que só agora emerge da minha inútil prolixidade.

A última gravação de Krapp é um monólogo. Krapp, já velho, passa o tempo lembrando seus fantasmas. E ouvindo-os: a voz que ele inicialmente identifica como sua é na verdade a voz das suas lembranças que se misturam e se confundem com suas fantasias. O velho se diverte e ri e chora e se comove e vive. Krapp é uma metáfora não apenas da solidão da velhice – esta é a leitura óbvia, imediata, preguiçosa. Ele simboliza, antes de mais nada, o ensimesmamento do homem, a incomunicabilidade que ele se autoimpõe, o anonimato e o desamparo. Sem família, sem o Estado, sem Deus. Ao contrário da arte engajada e muitas vezes superficial de Brecht e Sartre, onde a objetividade impera, o texto de Beckett é puro escárnio. Angústia, abandono, solidão. E o nada. Quanta metafísica entre tanta banalidade. Impossível sair ileso.