Amigos do Fingidor

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A inutilidade do padre
Padre L. Ruas
L. Ruas (1931-2000), em foto publicada a 28 de novembro de 1958, em O Jornal, por acasião do seu 27° aniversário. Acervo de Roberto Mendonça.

Não há ninguém tão inútil como o padre, no mundo. Principalmente no mundo atual. Hoje, os homens úteis são: o homem econômico, o homem político, o homem capitalista, o homem cientifico. Ora, o padre não é nenhum destes.

Por missão, o padre nada tem que ver com a economia nem com os sistemas econômicos. Ele não foi tirado de entre os outros homens para resolver seus problemas de troca e venda. Nem no plano pessoal, nem no nacional e muito menos no plano internacional [ilegível] o mercado é sua atmosfera. A política, por sua vez, não lhe compete. O governo dos povos e das comunidades puramente temporais não é da sua alçada. Sob este ângulo de vista seu lema há de ser o mesmo do seu Mestre: "o meu reino não é deste mundo". Não tem partidos. Não é nem por esta nem por aquela forma de governo. Vive uma indiferença que, às vezes, escandaliza, no governo forte das ditaduras, sob o cetro dos impérios ou na liberdade das democracias. No mundo onde o dinheiro é, de fato, a verdadeira alavanca, o padre deve pregar e viver a mensagem da pobreza. Deve ensinar a pobreza aos ricos e aos pobres, como dizia o vigário de Torey do Diário de um pároco de aldeia, de Bernanos.

Quanto à ciência, o padre muito se assemelha à Bíblia da qual já se disse que não ensina como foi feito o céu, mas como se vai para o céu. O padre não está no mundo para viver em laboratórios, ficar de olho enfiado nos microscópios entre tubos de ensaio e retortas. As experiências, os testes, os exames, as investigações, as lâminas, os bisturis, os microscópios, os bacilos, escorregam de suas mãos untadas com o óleo santo. Eis, portanto, um homem verdadeiramente inútil. E, ainda aqui, é cabível a observação do autor da Descoberta do Outro: “Já observei um fenômeno curioso a respeito das objeções que o mundo costuma levantar contra a Igreja Católica; quase sempre o descrente tem razão.” Para o descrente, e o descrente segundo Chesterton é por excelência o homem lógico, o homem, poderíamos dizer, das idéias claras, o padre é um homem inútil. Um parasita do Brasil, como dizia alguém ao ver um sacerdote passar.

E creio que pouquíssimas pessoas ainda não suspeitaram dessa inutilidade. Mesmo os que andam mais perto dos padres, algum dia, certamente, já se surpreenderam fazendo esta pergunta a si mesmos: “para que serve o padre?” E não vai nisso nenhum motivo de surpresa pois o próprio Paulo, que por antonomásia é chamado “o Apostolo”, falava dessa inutilidade usando até termos mais fortes: “nós nos tornamos semelhantes ao lixo do mundo, ao resto de todos...” Há inutilidade e há inutilidade. Há o inútil desprezível e há o inútil não-desprezível. O lixo é exatamente o desprezível. Portanto não nos admiremos quando alguém disser que o padre é um parasita. Ou quando na sua mente, leitor, transitar esta pergunta: para que serve o padre? Esta é uma pergunta muito natural porque todos nós somos quase sempre adultos e ateus. Ou ateus porque adultos. Somos econômicos e utilitaristas. E normalmente, pela condição humana, as necessidades temporais, possuem a primazia em nossa vida. Em alguns, habitualmente. Em alguns, isto é, em muitos. Na maioria absoluta. Em outros, de quando em vez. De repente. Em poucas horas. Ou em largos períodos. Mas todos vivemos neste jogo feio e desleal de entregar o cetro ora para o corpo, ora para a alma. Precisamente quando os interesses corporais conquistam ou recebem as rédeas, tudo aquilo que ultrapassa as nossas necessidades biológicas e mercantis, perde completamente o sentido. Então somos verdadeiramente adultos.

Para um adulto, o homem útil por excelência, é, talvez, engraçado ver uma criança passar horas a fio, vestindo e despindo bonecas ou desenhando calungas. Ou achará muito paciente o poeta que adormece na burilação de um poema. Ou estranho o padre gastar longas horas naqueles gestos esquisitos, na igreja. Mas isso tudo para ele é simplesmente inútil e um adulto jamais vestirá ou despirá bonecas. Daí também por que o adulto, particularmente o adulto-homem, em geral, não gosta de poesia. E a poesia nas sociedades adultas é considerada como uma secreção ou um sintoma intelectual próprio de uma fase orgânica do indivíduo. E se ouve dizer a todo momento que poesia é coisa de adolescente. Por quê? Porque o adulto é homem do concreto e do útil. É o real que lhe interessa. Real no sentido de sensível, de realizado, de feito. O adulto é marcadamente regional. É prudente: pesa, mede, calcula. Para ele vale unicamente o que é claro, lógico, conseqüente, explicável. Tudo o mais, é inutilidade, é perder tempo. O adulto é o econômico. E como as realizações são características dessa idade o que satisfaz suas necessidades de construir e de realizar. O útil é aquilo que satisfaz uma necessidade. Por isso a infância, a poesia e o mistério naturalmente são inúteis para o adulto.


O mundo da imaginação, da intuição e do invisível lhe são estranhos. Um adulto sabe perfeitamente com Alice no país das maravilhas. Uma criança irá ou pelo menos tentará atingi-lo. Um adulto sabe perfeitamente que a lua é um astro e que é impossível comer estrelas. Mas o poeta come estrelas e conversa com a lua. Um adulto resolverá um problema político-econômico por meio da política e da economia. O padre, porém, passará dias e noites em oração. O adulto não conhece os caminhos para-lógicos do mistério. Suas estradas são largas e claras. Entre o asfalto e o caminho rude o adulto prefere o primeiro. A criança e o poeta facilmente deixam o asfalto e caminham, descalços, pelos fios de água que correm ingenuamente à beira dos caminhos. E o padre não se preocupará em construir estradas asfaltadas. A infância, a poesia e o mistério, cada um, são inúteis ao seu modo. Todos três o são porque não são nem claros, nem lógicos, nem econômicos. Porque todos três são a presença ou o sinal da presença do Mistério. Para o adulto de qualquer idade cronológica, muitas e muitas vezes a poesia e o mistério devem ser deixados de lado como se deixam as crianças. Para não atrapalharem nossos projetos, não dizerem tolices em nossas reuniões, para não interromperem nossas conversas sobre bridge, golfe, política ou gravatas. E sempre, como as crianças ficam, em casa, dormindo e os poetas morrem na mendicidade, no mundo adulto e descrente, o padre será sempre inútil.

(Publicado no jornal Universal – domingo, 30 de outubro de 1955)

O historiador Roberto Mendonça, "curador" da obra do poeta, ensaísta e filósofo Luiz Ruas, nos informa que essa foi a última colaboração de Ruas para o Universal – semanário produzido pela igreja católica e distribuído nas igrejas aos domingos. Teria sido censurado? O Universal circulou entre 1953 e 1958, dirigido pelo cônego Walter Nogueira.