Amigos do Fingidor

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O efêmero eterno – simplicidade e leveza nas Folhas da selva

                                                                                                                  Zemaria Pinto*


Li essa historinha em uma antologia japonesa de contos para crianças. Tentarei recontá-la, condensando-a.

 O aluno pergunta:

 Mestre, onde posso encontrar o verdadeiro sentido da existência?

 Sem vacilar, o mestre responde:

 – O verdadeiro sentido da existência humana, gafanhoto, está na poesia.

 O garoto pensa alguns segundos. Vai se afastando, retorna, titubeante:

 – Desculpe-me, não consigo atinar...

 – É simples: se todos voltassem sua atenção, pelo menos algumas horas por dia, com sincera dedicação, à poesia, teríamos um mundo com menos espaço para a violência, para a poluição... E até para a corrupção. As relações seriam mais harmoniosas, baseadas na fraternidade, porque a poesia não está apenas nas palavras que se perdem no ar; ela está nos gestos, nos olhares e em muitos outros lugares: a poesia está no vento, na chuva, no céu estrelado, no pôr-do-sol, no correr do rio, na pluma que cai lentamente sobre o asfalto da estrada... Ter os sentidos aguçados para perceber a poesia da natureza não nos faz melhores, mas nos faz mais conscientes de nosso papel como seres humanos.

 Não consegui deixar de pensar naquele mestre como um haijin, um cultor da simplicidade poética do haicai, para quem tudo é transitório, impermanente, efêmero: é preciso cultivar o instante, como a uma flor. acrescentaria, fazendo graça, que os sentidos seriam mais bem explorados de forma sinestésica: olhos para comer, nariz para escutar, ouvidos para cheirar, mãos para ver e língua para tatear...  

 Agora, com Folhas da selva em mãos, penso o quanto vale toda uma vida dedicada integralmente à poesia. Aos 60 anos, o poeta Anibal Beça pode olhar para trás e avaliar, a partir de sua própria experiência, se o velho mestre tinha ou não razão. Reunindo a produção de haicais, presentes em sua obra publicada em livro desde Filhos da várzea, de 1984, Folhas da selva é um livro novo, mesmo quando nos deparamos com poemas familiares, uma vez que a disposição é outra, sendo conseqüente abstrair uma nova sensação dessa nova leitura. Os haicais de No país do carnaval e Dos olhos da amada, por exemplo, titulados e rimados, estão apropriadamente reunidos sob o título geral À maneira de Guilherme de Almeida, num tributo merecido àquele que vulgarizou, no melhor sentido dessa palavra, a prática do haicai no Brasil. Os poemas de Mínima fratura, de 1987, também são encontrados entre as Folhas da selva, dispersos, como se houvessem sido tangidos pelo vento. 

 Ao leitor menos afeito à leitura da poesia japonesa, termos como haibun, senryu e renga podem soar estranhos. Então, o professor que mora em mim pede o teclado. Renga, a haijin Rosa Clement explica, com muita propriedade, na introdução a “Chá das Quatro”, bela parceria com o poeta José Félix. Haibun é prosa poética, haicai em prosa ou haicai entremeado com prosa. Senryu é o haicai com finalidade cômica. Dadas as dicas, o leitor descubra por si mesmo o que afinal é poetrix. Voltei. Entendo ser imprescindível a união entre haicai e humor, no que este tem de graça, leveza, presença de espírito. E peço licença ao professorou será que ele voltou? – para lembrar Octávio Paz, para quem o bom haicai divide-se em duas partes:

·       uma, que reflete a condição geral, temporal e/ou espacial do poema – contendo em si a idéia de eterno, não no sentido metafísico, mas da repetição cotidiana, por isso eterna: uma flor, um pássaro, o nascer do sol, a lua cheia, uma formação de nuvens;

·       outra, refletindo o instante, o efêmero – a experiência jamais sentida. 

Uma parte enunciativa ou descritiva; outra, inesperada, relampejante. É isso que o haicai procura registrar: o agora em contraponto com o sempre. E se alguém mais atento estiver pensando que eu usei contraponto quando deveria ter usado contraposição, esclareço que foi de propósitoafinal contraponto é justaposição de vozes, sem perda de harmonia. 

Folhas da selva”, a coleção que abre e dá título ao livro de Anibal Beça, transborda de exemplos que ilustram essa “tese”:

 

Flauta na floresta

o vento sopra nos furos

do bambu brocado.

 

O vento e a floresta representam a condição geral, espacial do poema, o sempre. A música provocada pelo vento nos furos do bambu – a flauta – é o efêmero, a experiência única, o agora que não se repetirá jamais.

 

Olhos marejados –

saudade se misturando

aos pingos da chuva.

 

Se o humor não transparece, fica a leveza, o espírito do poeta ao vivenciar aquela cena sob a chuva, o elemento espacial. A abstração de que é a saudade que provoca aquela imagem única é, na verdade, uma quebra do distanciamento, mas, ao mesmo tempo, é um exercício de autoironia. 

Com Folhas da selva, Anibal Beça encerra um ciclo que prenuncia outro, pois a selva, assim como a relva, faz parte da condição geral do poema, do eterno que se renova porque se repete, folha a folha, poema a poema, até o infinito.

 

*Zemaria Pinto é poeta e dramaturgo, autor, entre outros títulos, de Música Para Surdos, Nós, Medéia e Dabacuri. Ocupa, desde 2004, a cadeira nº 27 da Academia Amazonense de Letras.