Amigos do Fingidor

domingo, 19 de dezembro de 2010

Roda gigante num parque de desilusões

Jorge Bandeira


O monólogo A dama da noite, dirigido por Paulo Altallegre, com Arnaldo Barreto, é uma narrativa teatral a partir do famoso conto do escritor Caio Fernando Abreu. Dama da Noite, originalmente, faz parte do livro de contos Os dragões não conhecem o paraíso, publicado em 1988. O conto repercute as tendências dos anos 80, incluindo a questão sexual naqueles momentos iniciais da propagação do vírus da AIDS.

A incompletude do amor é claro na encenação, onde as tentativas de busca ao prazer são sempre e interrompidas, numa vertente de solidão que conduz o personagem nos 50 minutos de espetáculo a questionar sua angustiante situação, interpelando o boy imaginário, causando momentos patéticos de sua situação, entre o desespero e a angústia. A atuação de Arnaldo Barreto começa em um ritmo claudicante, mas logo vai ganhando ares de conquista no espectador, pois sua atuação concentra momentos de humor e sarcasmo, e sua personagem vai se revestindo da fortaleza necessária a um texto de extremo zelo estilístico, de um mestre do conto, Caio Fernando Abreu.

É um monólogo da solidão, dos que são feitos vampiros que percorrem as noites em busca de corpos e que se banham de sangue contaminado. Uma das características da verve de Caio Abreu, inserindo seus personagens num universo de causas perdidas, que são ensaios e tentativas que sempre serão frustradas nesta busca pelo amor e pelo prazer. É feito um coito que não se completa, um tantra mental que faz o corpo desfalecer pela falta do contato real, de sensações muito particulares ao mundo do homoerotismo.

Caio Fernando Abreu é um escritor dos classificados como derrotados e perseguidos, mas que curiosamente tem uma grande aceitação nos mais heterogêneos leitores, fruto sem dúvida alguma de seu gênio como escritor que não se basta por um rótulo, é excelente literatura que fala por si mesma, não precisa de bandeiras que se levantem para sua defesa. Seu magnânimo estilo é a sua defesa.

Dama da Noite é um monólogo feito com apuro, com intuição estética, e é claro seu aparato homoerótico, onde a Dama posta em cena é na verdade uma drag, nesta abordagem como um performista que encena um personagem. Daí o simbólico da exclusão, de pessoa que ficou “fora da roda”, da vida normal, da normalidade, dos condicionantes sociais, de uma exclusão que se faz até na finalização do prazer, onde seu gozo é uma pálida sombra de uma satisfação sexual. É esse espaço de urbanidade onde vive a Dama da Noite que é revestido de um perigo assustador, a insegurança aos comportamentos ditos “desviantes” pela sociedade conservadora fazem da Dama uma vítima em potencial da AIDS, seria mesmo a própria Dama uma espécie de personificação da AIDS.

A opção do diretor Paulo Altallegre foi ter esta dicotomia no palco, ora fazendo de sua Dama uma companheira para o boy imaginário, ora fazendo a plateia ser seu interlocutor imediato. O Belo Indiferente, de Jean Cocteau, é uma referência que logo aparece, nesse tipo de monólogo onde o invisível boy é alçado ao patamar de coadjuvante que jamais aparece, sendo elemento de sonho e delírio da Dama.

A tensão de cena é permanente, recurso sensório conduzido por uma Iluminação em penumbra, que algumas das vezes deixa o semblante do ator refém dessa escuridão, lembrando que a personagem é caracterizada pela escuridão até pelo nome, Dama da Noite. É uma drag-vampira, que se anuncia logo de cara como ser do elemento crepuscular. Crepuscular que necessita copular, que precisa de sangue de homens, que tem ânsia de prazer.

O ambiente de cabaré e music-hall é típico dos anos 80, e as inserções musicais elencadas pela encenação percorrem estilos díspares, de uma banda como o Tom Tom Club, formado por integrantes do Talking Heads, passando pela passional e visceral canção de Jacques Brel Ne me quitte pas, na voz bela de Maysa e Maria Bethânia, estilos diversos, que criam as atmosferas necessárias nos momentos de comoção da personagem.

Uma personagem que está aprisionada a um tempo de reminiscências nostálgicas, é uma múmia que anda pela noite, que tem um boy, um garoto novo, que é tratado com ironia pela Dama, um menino bonito, mas que não gosta de ler, somente assiste televisão, joga videogames, navega na internet e tem comunidades no orkut. Usa, inclusive, as pulseiras do sexo que foram proibidas em muitas escolas. Esses achados de atualização do texto de Caio é um mérito da encenação, que insere elementos contemporâneos com muita propriedade, não descaracterizando a obra de Caio.

A triangulação Boy invísivel/Dama/Plateia foi a responsável pelo controle da audiência, um público que acompanhou com atenção a triste história da Dama da Noite, suas forças e fraquezas. Logo no hall do Teatro Amazonas o público é recebido pelos anunciantes da “Roda Gigante”, da esfera opaca da vida e da morte, e Caio Fernando Abreu nos brinda com uma das mais belas visões poéticas sobre a ceifadeira, a Morte que acometerá a todos. A Entrada com dois travestis e uma prostituta recepcionando o público preparam para uma volta na roda gigante da solidão, um figurino com cores vibrantes, e um ator com um “feeling” e “timing” adequados para conduzir o sentimento do público aos giros intermináveis dessa roda gigante da existência dos excluídos.